1Coríntios 9.1-12

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O autor demonstra a validade dos direitos gerais dos cristãos, sob a ótica da abnegação como virtude difusora do evangelho de Cristo.

Notes
Transcript
"[....] Aos santificados em Cristo Jesus, chamados para ser santos" (1Co 1.2).
Pr. Paulo U. Rodrigues
Introdução
A partir do capítulo 9, o apóstolo realiza uma pausa (embora o tópico ainda faça parte dos questionamentos que recebera) em suas respostas às perguntas da igreja de Corinto, a fim de estabelecer uma defesa (cf. v. 3) em relação à um aspecto do seu apostolado que estava sendo objeto de contestações por parte de alguns membros.
O fato de o apóstolo não trabalhar ou não ter seu sustento garantido mediante um trabalho semelhante ao dos demais irmãos da igreja, incomodava alguns que não compreendiam o direito apostólico de "viver do evangelho" (cf. v. 14).
Como aquele que foi arregimentado pelo próprio Cristo ressurreto (v. 1) para o serviço ministerial, o apóstolo orienta a igreja quanto ao uso de suas prerrogativas, defendendo-as como concessão divina, o que por sua vez deve constranger os membros da comunidade cristã à percepção do cuidado paternal do Senhor em prover a edificação do povo de Deus mediante o trabalho dedicado e exclusivo de homens que chamou para isso.
Toda a defesa que desenvolve nesse trecho (v.1-12), e que ampliará na segunda parte da argumentação (vs. 15-27), resulta numa compreensão mais aprofundada daquele sentimento que introduziu no final do capítulo 8, quando chamou os crentes mais "sábios" a abrirem mão de sua liberdade, em favor do irmão mais fraco. Agora, o mesmo princípio é elevado e aplicado não somente à relação do mais experiente com o menos, mas de uns para com outros de maneira geral, de tal forma que os direitos que alguém possui diante de Deus, podem e devem ser colocados de lado, se o uso de tais direitos de alguma forma se mostrarem "obstáculos ao evangelho de Cristo" (v. 12).
Em face disso, a compreensão dessa primeira parte do texto de 1Coríntios 9, sintetiza a ideia da abnegação como ferramenta edificadora da igreja de Deus, estando essa primeira parte (vs. 1-12) voltada à noção da validade dos direitos apostólicos como referencial para o uso dos direitos gerais do cristão.
Elucidação
Embora o apóstolo não inicie o capítulo 9 com as mesmas expressões encontradas nos capítulos anteriores, por meio das quais referencia o começo de um novo tópico a ser tratado (i.e. "Quanto ao que vocês me escreveram" (cf. 7.1); "No que se refere às coisas..." (cf. 8.1)), o autor introduz abruptamente o início de um novo tema, a fim de chamar atenção dos leitores/ouvintes à emergência do que deseja comunicar.
Entendendo o capítulo como que tratando da defesa de Paulo em relação ao seu ministério apostólico, por meio da qual deseja elevar a igreja à compreensão da abnegação como princípio necessário na difusão e desenvolvimento da obra evangélica, o autor divide o texto em duas subseções: na primeira (v. 1 à 12), ele se dedica ao estabelecimento da validade de seus direito e prerrogativas enquanto ministro escolhido pelo próprio Cristo; na segunda (v.13-27), conduz seus ouvintes/leitores à noção de que, embora possa (sem ser constrangido por absolutamente nada) usufruir de seus direitos, ele abre mão deles (como é esperado que os crentes o façam) para que triunfe o evangelho.
O questionamento retórico inicial (i.e. "Não sou eu, porventura, livre? Não sou apóstolo?" v.1), restringe o pensamento dos leitores quanto à única possibilidade de resposta, o que por sua vez, ratifica a posição de Paulo diante dos cristãos coríntios, como aquele que de fato tem autoridade sobre aquela igreja; autoridade essa que não foi imposta totalitariamente, mas advém do esforço empreendido por ele ao ter se dedicado ao plantio daquela comunidade, conforme é registrado em Atos 18.1-5; fato para o qual ele mesmo chama atenção, quando diz: "Acaso, não sois fruto do meu trabalho no Senhor?" (v.1).
Em que pese isso, como já dito, ele identifica questionamentos com relação a legitimidade de seu apostolado. Tais contestações eram fruto da incompreensão de alguns naquela comunidade com relação ao direito do qual os apóstolos desfrutavam de serem sustentados pelas igrejas, não trabalhando, como os demais irmãos, noutras atividades.
Estabelecendo então uma defesa de seu ministério, o apóstolo torna a realizar questionamentos retóricos, a fim de confirmar seu apostolado: "A minha defesa perante os que me interpelam é esta: não temos nós o direito de comer e beber? (v.3–4). Assim como antes, a única resposta possível a essa pergunta era um "sim": qualquer pessoa, tendo exercido trabalho, tem resguardado pelo senso comum o direito de comer e beber, ou seja, de desfrutar dos frutos de seu labor. Ligado a isso, ele chama a atenção para o vínculo que possuía com os demais apóstolos, que também eram sustentados pelas igrejas devido sua dedicação exclusiva ao pastoreio do rebanho de Deus, o que inclui homens casados, como é o caso de outros apóstolo, e Cefas, um nome bastante conhecido dos crentes em Corinto (cf. 1.12).
Se aqueles irmãos, sendo também apóstolos, gozam desse direito (gr. "ἐξουσίαν"), "somente eu e Barnabé temos de trabalhar para viver?" (v. 6 NAA). O ministério de Cefas e dos demais ministros parecia não estar sob questionamento, usando eles do direito que tinham como servos do Senhor em sua igreja, de por ela serem supridos; por que então Paulo (e por implicação direta, Barnabé) estava sendo desconsiderado ou não visto como um apóstolo por essa mesma razão? Corroborando sua lógica argumentativa Paulo apresenta quatro exemplos, três extraídos do senso comum, e outro da própria Lei do Moisés, sendo este último expandido por uma referência interpretativa.
O primeiro exemplo que Paulo dá é do soldado à caminho da guerra: "Quem jamais vai à guerra à sua própria custa?" (v.7), isto é, o soldado, quando em serviço, é suprido pelo país e pelo exército, recebendo todo sustento necessário para que se dedique à convocação. Da mesma forma, o agricultor ara o solo e planta a erva, esperando comer do seu fruto, bem como aquele que cuida de um rebanho, se alimenta do leite tirado do gado. Todos esses trabalhos e ofícios fornecem ao trabalhador a recompensa ou "pagamento" por seu empenho, sendo isso visto como algo natural e inerente ao esforço que empenharam.
Se aos ofícios de soldado, agricultor e pastor de um rebanho está anexado o recebimento do sustento devido, não seria lógico aplicar o mesmo princípio também ao ministério pastoral? Aqueles que, dentre os membros da igreja de Corinto, negassem essa dinâmica, estariam indo de encontro com a lógica axiomática presente no exercício dos trabalhos citados. Tornando, porém, ainda mais claro sua tese, o último exemplo demonstrado tem a força da Lei de Moisés a seu dispor, e ratifica a exortação do autor:
1Coríntios 9.8–9 ARA
Porventura, falo isto como homem ou não o diz também a lei? Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi, quando pisa o trigo. Acaso, é com bois que Deus se preocupa?
Paulo cita o texto de Deuteronômio 25.4, em que, de acordo com todo o contexto, Moisés exorta o povo quanto à punição em relação à uma querela entre dois compatriotas. O ponto central da passagem consiste em enfatizar o julgamento justo, sem excessos ou parcialidades, inclusive no momento em que a pena for determinada:
Deuteronômio 25.2–3 ARA
Se o culpado merecer açoites, o juiz o fará deitar-se e o fará açoitar, na sua presença, com o número de açoites segundo a sua culpa. Quarenta açoites lhe fará dar, não mais; para que, porventura, se lhe fizer dar mais do que estes, teu irmão não fique aviltado aos teus olhos.
Reforçando esse ponto, o versículo 4 entra no bojo semântico do texto, enfatizando a justiça: o boi, quando está puxando o arado ou ceifando o trigo, se alimenta da folhagem que cai no processo, o que seria o justo "pagamento" pelo seu esforço. A correspondência que Paulo faz tenciona extrair esse último aspecto do arcabouço semântico exposto pelo texto de Deuteronômio: se é uma questão de justiça (como o era no caso do julgamento entre compatriotas) que o soldado, o agricultor e o pastor recebam o sustento e o pagamento por seu trabalho, também o era no caso dos apóstolos e dos que com eles servem à igreja de Cristo.
Intertexualizando a passagem citada, Paulo interpreta aquele texto afirmando:
1Coríntios 9.9–10 ARA
Porque na lei de Moisés está escrito: Não atarás a boca ao boi, quando pisa o trigo. Acaso, é com bois que Deus se preocupa? Ou é, seguramente, por nós que ele o diz? Certo que é por nós que está escrito; pois o que lavra cumpre fazê-lo com esperança; o que pisa o trigo faça-o na esperança de receber a parte que lhe é devida.
Não havia nenhuma excepcionalidade no fato de Paulo demonstrar que viver do serviço à igreja era algo que lhe cabia por direito (expressão que repete quatro vezes no trecho), como aquele que trabalhava (tal como o soldado, agricultor e pastor de gados) para benefício do corpo de Cristo, como ele mesmo confirma, usando outra perspectiva:
“Se nós vos semeamos as coisas espirituais (superiores), será muito recolhermos de vós bens materiais (inferiores em relação àquelas)? Se outros (apóstolos) participam (desfrutam) desse direito sobre vós, não o temos em maior medida?” (1Coríntios 9.11-12a).
A comparação constrastante proposta pelo apóstolo consiste em perceber que o trabalho pastoral enfatiza coisas superiores, "coisas espirituais". A edificação na Palavra, o ensino, a exortação, o direcionamento espiritual para que aquela igreja vivesse à luz do chamado à santidade realizado por Cristo Jesus ao redimi-los (cf. 1Co 1.2), além de todos os outros benefícios da salvação que receberam, não são muito melhores do que bens materiais? ainda sim, entendendo que esses bens são necessários à vida nesse mundo, seria muito entender que ele deve, por direito, receber da igreja bens materiais, principalmente levado em conta que ele desempenha o mesmo trabalho que outros apóstolos que não estavam sendo contestados por membros na comunidade de Corinto?
Nada obstante toda a defesa que desenvolveu, o apelo pastoral de Paulo transcende a reclamação ou exigência de seus direitos pastorais de sustento. Remontando ao princípio introduzido ao final do capítulo 8, quando afirma que abriria mão da liberdade que tinha para comer carne que era sacrificada á ídolos, se isto levasse um irmão mais fraco ao tropeço (princípio que permeará todo o capítulo 9 e parte do capítulo 10), o apóstolo usa-se como exemplo de abnegação.
Embora toda essa prédica demonstre claramente que o "viver do evangelho" é um direito, Paulo faz questão de apontar que não usufrui dele, "para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo" (v.12b). Isto é, em face de direitos garantidos, mesmo aqueles que o próprio Senhor Jesus concede, poderá haver momentos em que, para que a edificação do corpo de Cristo e triunfo do Reino ocorra, faz-se-á necessário abrir mão deles. Desta vez, não há o contexto de possibilidade de tropeço por irmãos mais fracos, o que expande o princípio ensinado para um nível mais geral da convivência entre irmãos.
Transição
Paulo exorta os crentes quanto a validade do pensamento de que "nem tudo que é direito deve ser à todo tempo desfrutado". Aqueles irmãos conheciam perfeitamente bem o quanto tal noção era verdade na vida do apóstolo, tendo ele por muito tempo trabalhado junto a Áquila e Priscila na construção de tendas para ter com o que se sustentar e assim, pregar o evangelho da graça de Deus naquela cidade (cf. Atos 18.1-3). Ele não havia exigido de imediato que recebesse o sustento dos crentes em Corinto, mesmo porque ele estava ali para plantar uma igreja - tendo sido inclusive ordenado a isso pelo próprio Senhor Jesus (cf. Atos 18.9-10) -.
Se a causa do Evangelho pede que se abra mão de algum direito, por mais que seja legitimado pela Escritura, o objetivo maior de que a glória de Deus seja difundida por meio do Evangelho deve ser a primeira escolha, pois nada há de mais precioso do o vínculo poderoso da igreja com Cristo, e o testemunho diante do mundo do poder salvador do Senhor.
Há algo muito mais elevado e nobre do que o usufruto pessoal de um direito: o evangelho de Cristo. A partir desse princípio, o autor divino/humano por meio do texto de 1Coríntios 9.1-12 transmite pelos menos duas verdades a serem aprendidas:
Aplicações
1. A valorização do ministério pastoral, mediante a aplicação da justiça estabelecida por Deus, deve ser percebida como um dever da comunidade para com aquele que foi chamado para afadigar-se no pastoreio da igreja de Cristo.
Como o apóstolo demonstra no texto, o trabalho pastoral foi designado pelo próprio Cristo, e dessa forma, o sustento pastoral não é uma obra de caridade que a igreja presta ao pastor, mas um direito do qual ele deve usufruir sem qualquer impedimento ou constrangimento, tendo em vista seu trabalho integral no serviço ao Senhor, servindo os irmãos.
Certamente, o presente texto tem sido imensamente distorcido por muitos falsos pastores, que oprimem seus igrejas, a fim de viverem regados à luxos e pompa. Porém, mesmo em face da má fé dos lobos, os verdadeiros pastores não podem ser lesados, e seu trabalho precisa ser valorizado e a justiça devida precisa ser aplicada, ao ter ele o seu sustento garantido com a digna compreensão dos membros. Não atemos a boca do boi enquanto pisa o trigo.
É digno de destaque que o direito do qual fala o apóstolo não incide somente sobre a questão do salário pastoral. O pastor precisa ser tratado como alguém legitimamente chamado para guiar o rebanho ao Supremo Pastor. Paulo estava não apenas tendo seus sustento contestado, mas o próprio apostolado. Assim, mesmo que o sustento material do pastor seja efetivado, se ele não é visto com o devido respeito, o princípio abordado no presente texto é violado.
2. O direito pastoral é reforçado a fim de servir de princípio exortativo quanto à abnegação aos direito gerais que um cristão usufrui, se de alguma forma esses direitos servirem de obstáculo ao evangelho.
Não podemos perder de vista o fato de que Paulo Não está tratando apenas de seus direitos ao sustento pastoral; há um motivo muito mais profundo do que este em vista.
A ideia do texto é apontar para inalienabilidade dos direitos gerais dos crentes que foram concedidos pelo próprio Senhor, mas que podem (e devem) ser postos de lado pelo próprio crente, se de alguma forma o usufruto desses direitos prejudicarem o testemunho e avanço do evangelho.
Como dito anteriormente, o apóstolo não identifica (como fez no capítulo 8), qualquer especificidade em que a abnegação à direitos cristãos deva ser exercida, como no caso do irmão mais fraco, o que significa que o principio agora ensinado deve ser aplicado em relação à qualquer membro da igreja, do mais maduro e experiente ao recém-convertido, incluindo até mesmo os ímpios, numa que o que está em jogo é o Evangelho do Senhor.
Novamente, assim como vimos no capítulo 8, poder fazer algo não significa que devamos. Porém, mais do que uma questão de conveniência, agora se tem uma causa muito maior do que nós ou outros; trata-se da glória do Evangelho de Cristo, que não pode ser obstruído nem mesmo por nossos direitos.
Devemos considerar abrir mão do que gostamos, do que queríamos, em termos de comer, beber, vestir, ir, ter ou qualquer outra coisa, pois tendo sido chamados à santificação, devemos compreender que não há nada mais importante do que vivermos como pessoas que verdadeiramente foram separadas para o Senhor Jesus.
Conclusão
A justiça bíblica não apenas nos mostra deveres por meio dos quais refletimos a obra da salvação executada ao nosso favor, mas também direitos e privilégios que desfrutamos em Cristo. Entretanto, a grandiosidade da obra em nós executada pelo Espírito, da mesma forma nos habilita a abrir mão de alguns desses direitos, para que a majestade do evangelho resplandeça e o nome do Senhor Jesus seja glorificado.
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