A INSPIRAÇÃO E A AUTORIDADE DA ESCRITURA
A menos que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou por razão clara (pois não creio somente no Papa ou em concílios, visto que se sabe muito bem que eles já erraram e se contradisseram muitas vezes), estou constrangido pelas Escrituras que já citei, e minha consciência está cativa à Palavra de Deus. Não posso me retratar e não me retratarei de coisa alguma, porque não é seguro nem correto agir contra a consciência. Não posso agir de outro modo. Mantenho a minha posição. Que Deus me ajude. Amém.
Os reformadores diziam que, embora a Bíblia apresentasse um livro de cada vez e tivesse sido escrita por seres humanos, o autor supremo da Bíblia não foi Paulo, Lucas, Jeremias ou Moisés, e sim Deus mesmo. Deus exerceu sua autoridade por meio dos escritos de autores humanos que serviram como porta-vozes dele para o mundo.
Os reformadores acreditavam que, embora Deus não tivesse escrito pessoalmente as palavras que aparecem nas páginas da Bíblia, elas eram as palavras dele como se tivessem sido entregues a nós diretamente do céu.
B. B. Warfield ressaltou, certa vez, que o significado real de 2 Timóteo 3.16 tem a ver não tanto com a maneira pela qual Deus comunicou sua informação (por meio de escritores humanos), e sim com a fonte dessa informação. Literalmente, Paulo escreveu nesta passagem que toda a Escritura é theopneustos, ou seja, “soprada por Deus”. E isso tem a ver com o que Deus sopra e não em quem Deus sopra. O significado por trás das palavras de Paulo é que toda a Escritura é soprada para fora por Deus.
Quando falamos de inspiração como um conceito, estamos falando da obra do Espírito Santo, que veio sobre pessoas em tempos diferentes e as ungiu por seu poder, para que fossem inspiradas a escrever a verdadeira Palavra de Deus.
Não sabemos como Deus superintendeu o registro da Escritura Sagrada, mas o ponto saliente para a igreja hoje é que tudo que temos na Escritura, embora reflita as personalidades, os vocabulários e os interesses dos escritores humanos, foi escrito sob a supervisão de Deus, e os autores não estavam escrevendo em seu próprio poder.
Além disso, historicamente a igreja tem acreditado que a inspiração da Bíblia foi verbal. Em outras palavras, a inspiração se estende não simplesmente a um esboço amplo da informação comunicada pelos autores humanos, mas às próprias palavras da Escritura.
O erudito alemão Rudolf Bultmann (1884–1976) rejeitava amplamente a ideia da origem divina das Escrituras. Teólogos neo-ortodoxos estão interessados em restaurar a pregação da Bíblia na igreja e em oferecer uma opinião mais elevada da Bíblia do que aquela que foi deixada pelo liberalismo do século XIX, mas também rejeitam a inspiração verbal e a revelação proposicional. Karl Barth (1886–1968), por exemplo, disse que Deus se revela por meio de eventos e não de proposições.
A morte de Jesus na cruz, por exemplo, foi tanto registrada para nós quanto explicada nos evangelhos e nas epístolas. Pessoas viram a morte de Jesus de maneiras diferentes. Para muitos de seus seguidores, ela causou desilusão trágica; para Caifás, bem como para Pôncio Pilatos, a morte de Jesus foi uma questão de conveniência política. O apóstolo Paulo, quando expõe o significado da cruz, apresenta-a como um ato cósmico de redenção, como uma expiação oferecida para satisfazer a justiça de Deus, uma verdade não evidente a partir de uma simples observação do evento.
A única maneira de sabermos o ponto de vista de Jesus sobre a Bíblia é lermos a Bíblia, o que nos leva a um argumento circular: Jesus ensinou a inerrância da Bíblia, mas sabemos o que Jesus disse apenas por causa da Bíblia. Entretanto, há uma concordância geral até entre os críticos de que as porções menos disputadas da Escritura com referência à autenticidade histórica são aquelas que contêm as afirmações de Jesus sobre a Escritura.
Quando dizemos que a Bíblia é a única regra de fé e prática, nós o fazemos porque cremos que esta regra foi delegada pelo Senhor, a quem pertence a regra. Portanto, dizemos que a Bíblia é inerrante e infalível. Dos dois vocábulos que consideramos neste capítulo, inerrância e infalibilidade, inerrância é o termo secundário; flui naturalmente do conceito de infalibilidade – se algo não pode errar, então, ele não erra. A fim de passar no teste da crítica, a Bíblia tem apenas de ser coerente com suas próprias afirmações; e, se definimos a verdade do modo como o faz o Novo Testamento, não há razão válida para alguém contestar a inerrância da Bíblia. Se a Palavra de Deus não pode falhar, e se ela não pode errar, ela realmente não falha nem erra.
Obtemos a palavra cânon de outra palavra grega, kanon, que significa “vara de medir” ou “norma”. Chamar a Bíblia de “o cânon de Escritura” é o mesmo que dizer que seus 66 livros funcionam juntos como a vara de medir ou a autoridade suprema para a igreja.
A primeira marca ou teste usado para averiguar a autoridade de um livro foi sua origem apostólica, um critério que teve duas dimensões. Para ser de origem apostólica, um documento precisava ter sido escrito por um apóstolo ou sob a sanção direta e imediata de um apóstolo.
A segunda marca de aceitação para o cânon foi a recepção por parte da igreja primitiva.
A terceira marca de canonicidade foi a causa de maior parte da controvérsia. Os livros considerados apostólicos ou sancionados por um apóstolo e também recebidos pela igreja primitiva constituíam o conjunto básico do Novo Testamento e foram recebidos no cânon sem qualquer controvérsia real, mas houve um segundo nível de livros sobre os quais houve algum debate.
De acordo com os protestantes, cada livro presente na Bíblia é um livro infalível, mas o processo realizado pela igreja referente a que livros incluir no cânon não era infalível. Cremos que a igreja foi guiada providencialmente pela misericórdia de Deus no processo para determinar o cânon e, por isso mesmo, fez as decisões certas, de modo que cada livro que deveria estar na Bíblia está realmente na Bíblia. Entretanto, não acreditamos que a igreja era inerentemente infalível, naquele tempo ou mesmo agora. Por contraste, a fórmula católica romana diz que temos os livros corretos porque a igreja é infalível e qualquer coisa que a igreja decide é uma decisão infalível. No entendimento católico romano, a formação do cânon se fundamenta na autoridade da igreja, enquanto no entendimento protestante ele se fundamenta na providência de Deus.
Em última análise, a autoridade suprema e inquestionável para a igreja está nas palavras dos apóstolos na Escritura Sagrada ou no corpo de mestres que servem presentemente como bispos do rebanho de Deus? Essa foi a questão debatida no século XVI, quando os reformadores determinaram que a Escritura sozinha é a revelação suprema e autoritária de Deus. A igreja não tem autoridade em nível de igualdade com a Escritura.
Podemos achar a verdade de Deus em lugares além da Bíblia. Podemos achá-la em livros corretos sobre teologia, contanto que sejam corretos, mas eles não são a fonte original da revelação especial. Entretanto, a Igreja Católica Romana se prende a uma “teoria de fonte dupla”, na qual há duas fontes de revelação especial: uma é a Escritura, a outra é a tradição da igreja. Esta teoria tem o efeito de colocar a igreja em nível de igualdade com a própria Bíblia no que concerne à autoridade.
Portanto, em termos de doutrina, a Igreja Católica Romana apela tanto para a tradição da igreja quanto para a Bíblia; e isso é o que torna o diálogo ecumênico bastante difícil. Quando uma doutrina específica é colocada em escrutínio, os protestantes querem estabelecer sua posição estritamente na autoridade da Bíblia, enquanto Roma quer incluir as interpretações dos concílios da igreja ou das encíclicas papais.
Os reformadores restringiram a autoridade normativa às Escrituras porque estavam convencidos de que as Escrituras são a Palavra de Deus e que somente Deus pode reger a consciência e tem autoridade plena.
No processo de finalizar o cânon da Escritura, a igreja usou uma palavra latina, recipemus, que significa “nós recebemos”. Isto indica que a igreja não foi tão arrogante ao ponto de afirmar que estava criando o cânon ou que o cânon recebia sua autoridade da igreja. Em vez disso, a igreja reconheceu que os livros do cânon tinham autoridade normativa sobre todos.
A igreja está sempre subordinada à autoridade da Bíblia. Isto não significa que a igreja não tem autoridade. O estado e os pais têm autoridade, mas essas autoridades foram delegadas por Deus. Eles não tem a autoridade plena que segue em igualdade com a própria Palavra de Deus. Portanto, qualquer autoridade afirmada pela igreja está subordinada à autoridade da Escritura.
A crise que existe em nossos dias não é meramente sobre se a Bíblia é infalível, inerrante e inspirada. A crise é sobre o conteúdo da Bíblia. Gastamos tanto tempo considerando questões acadêmicas sobre o que chamamos de “prolegômenos” – a datação, a cultura e a linguagem da Escritura – que pastores podem estudar num seminário sem sequer lidarem com o conteúdo da Escritura.
Você sabe o que a Bíblia contém? Este volume sobre teologia sistemática é ousado em abordar muitos assuntos; porém, muito mais importante do que estudar teologia sistemática é que o povo de Deus chegue ao conhecimento do conteúdo da Escritura. No entanto, embora lidemos bem com o conteúdo da Escritura e sustentemos doutrina sã, ficamos com a questão de como ser intérpretes responsáveis da Bíblia. Não somos infalíveis, e, em algum ponto, podemos distorcer as Escrituras. Essa é a razão por que precisamos aprender algo sobre os princípios básicos de interpretação bíblica.