Mateus 26.6-19

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O autor registra três cenas que se encarregam de demonstrar as únicas reações possíveis provocadas pelo anúncio do evangelho, revelando salvação ou perdição.

Notes
Transcript
“[...] Porque é chegado o Reino dos céus” (Mateus 3.2).
Pr. Paulo U. Rodrigues
Introdução
Após ter exortado seus ouvintes/leitores quanto a confiarem no controle absoluto do Pai e de seu Filho, Jesus Cristo, sobre a confabulação dos anciãos de Israel para prenderem o Messias, o autor passa a narrar as cenas iniciais que culminarão com a paixão do Senhor Jesus (traição, prisão, crucificação, morte, ressurreição e ascensão).
A presente perícope centraliza uma cena que se encarrega de desenvolver as duas possíveis reações em relação ao que nela ocorre: em primeiro lugar, é descrita a unção de Cristo em Betânia (vs. 6-13), que demonstra sua preparação ("embalsamamento (cf. v. 12 "ela o fez para o meu sepultamento")) para a morte; em seguida, Mateus registra a ação de Judas e dos demais discípulos: o primeiro, frente ao evangelho encenado, decide trair Jesus; os outros, submetem-se à vontade do Senhor, preparando-lhe a páscoa.
O caráter exortativo emerge da narrativa exibindo aos ouvintes/leitores as únicas duas formas por meio das quais alguém pode responder ao anúncio do evangelho: com rebelião iníqua ou obediência devota (como exemplo do segundo: a própria mulher que derrama o perfume sobre o Senhor).
A iminência da paixão do Senhor também intensifica o demonstrativo da grandeza da obra expiatória que Cristo está por executar, e os efeitos dessa obra são adiantados por Mateus a fim de que se perceba toda a amplitude do que o Messias realizou.
Considerando isso, o trecho do evangelho de Mateus 26.6-19 a apresenta a demonstração do evangelho e as reações resultantes de sua contemplação.
Elucidação
Tal como introduzido, as cenas desenvolvidas no presente texto, propõem um adiantamento com relação à reação que os discípulos terão frente ao evangelho, isto é, diante da obra que o Senhor Jesus Cristo realizará.
Passaremos a analisar o fluxo narrativo de acordo com a estruturação cênica do autor.
Cena A (vs. 6-13): A cerimônia de embalsamamento - o evangelho encenado.
A narrativa inicia situando o Senhor Jesus na casa de certo Simão, apelidado "leproso", por ter sido provavelmente curado por Cristo, conforme também registra o texto de Marcos 14.3. Nessa ocasião, estando Cristo já à mesa, uma mulher chamada Maria (cf. Jo 12.3), derramou sobre Cristo um perfume de nardo de extremo valor, avaliado segundo o evangelho de João em 300 denários (cf. Jo 12.5).
Ao fazer ela isto, é dito que os discípulos protestaram (v.8); entretanto, a narrativa redigida por João especifica que apenas Judas manifestou contestação:
João 12.4–5 ARA
Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, o que estava para traí-lo, disse: Por que não se vendeu este perfume por trezentos denários e não se deu aos pobres?
A divergência narrativa pode ser explicada através da compreensão de que possivelmente os outros discípulos partilhavam do mesmo pensamento que Judas, mas apenas este se manifestou. Embora Mateus não tenha especificado que discípulo(s) se pôs (puseram) contra a ação de Maria, o contraste entre atitudes em relação a isso será estabelecido a partir das cenas posteriores. O que o evangelho de João faz explicitamente, Mateus o fez implicitamente, através da própria história, retratando que apesar do espanto dos discípulos, a reação ao que viram terá repercussão diferente entre eles mesmos.
Nada obstante, de acordo com o texto, a resposta dada por Cristo ao questionamento dos discípulos é que focaliza a tônica do registro da narrativa mateana. Cristo alude que a presente situação era impar: "os pobres, sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes" (v.11). Mais salutar que esta declaração — que inclusive ecoa o princípio legal, segundo registra Dt 15.11 — é a afirmativa de Cristo de que em primeiro lugar, Maria teria derramado o perfume sobre o Senhor "para o [seu] sepultamento" (v.12). Em segundo lugar, tal ação é comparada ao anúncio do evangelho, conforme o próprio Senhor asserta:
Mateus 26.13 (ARA)
Em verdade vos digo: Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua.
O pronome demonstrativo usado para definir "o evangelho" (gr. "τὸ εὐαγγέλιον τοῦτο)" particulariza a ação de Maria, enfatizando que naquele momento, ela (inconscientemente, porém não incredulamente) o teria preparado — numa espécie de embalsamamento prévio — para sua morte; parte do evento que veio executar como cumprimento do plano redentivo.
Maria havia embalsamado (ainda que figurativamente) o Senhor Jesus, e com isso, estava anunciando sua morte. Nesse ponto, uma conexão textual entre essa primeira cena e a seguinte, sugere que há implicações ou reverberações da primeira sobre as outras, isto é, o que ocorreu nesse episódio, ecoará para os próximos.
Cena A1 (vs. 14-16): Reação 1 - rebelião e traição.
A expressão conectiva explicativa "τότε" (trad. "então, logo em seguida, após isso") remete ao fatos anteriores mediante a ação dos personagens descritos. "Um dos doze, chamado Judas Iscariotes" (v.14), aquele que, segundo o evangelho de João, manifestou oposição contra a encenação evangélica que presenciara, foi ao encontro dos principais sacerdotes, propondo pagamento para lhes entregar o Senhor Jesus Cristo.
O arranjo narrativo agora exibe implicitamente as intenções do coração de Judas: não tendo concordado ou aceitado o que vira na casa de Simão, o discípulo em questão decide voltar-se contra o Senhor. O aspecto teológico da narrativa é suavizado pela implicitude, mas é suficientemente claro ao ponto de servir como ponto exortativo tencionado pelo autor para compreensão de seu público-alvo.
O fator que desencadeou a reação de Judas não foi outra coisa senão a exposição ao evangelho, ainda que encenado, referenciando futura execução. A contemplação da obra vicária de Cristo deflagrou a rebelião no coração daquele que na verdade, não era verdadeiramente discípulo do Senhor.
Mateus enfatiza esse ponto, reforçando a distinção que diversas vezes o próprio Cristo havia estabelecido, e também explica aos ouvintes/leitores de seu evangelho, o porquê da traição de Judas. Ele não traiu a Cristo porque deixou de crer, ou porque cedeu à uma tentação pontual (como por exemplo será o caso de Pedro, por temer retaliação), mas porque nunca havia sido chamado ao Reino, e o evangelho revelou sua proscrição.
Frente ao mesmo evangelho, filhos do Reino e inimigos da fé são revelados; mesmo depois da execução da obra redentiva propriamente dita, seu testemunho reverbera o mesmo efeito, como os próprios cristãos em Roma eram testemunhas, pois a partir da publicação do evangelho pela igreja, alguns eram trazidos à fé, enquanto outros, como feras, o rejeitavam. O evangelho é o divisor de águas entre salvos e inimigos.
A identificação de Judas como opositor da obra evangélica é intensificada na conclusão da cena: E, desse momento em diante, buscava ele uma boa ocasião para o [Cristo] entregar" (v.16).
Por outro lado, o mesmo cuidado descritivo é notado na terceira cena registrada por Mateus, exibindo outra reação no tocante à encenação do evangelho.
Cena A2 (vs. 17-19): Reação 2 - obediência devota.
Haja visto o costume mateano de desdobrar sua narrativa a partir de descolamentos geográficos e mudanças temporais, notando a referência introdutória temporal (cf. v. 17: "No primeiro dia da Festa dos Paes Asmos (i.e. Páscoa)"), é digno de nota que a presente narrativa também deve ser compreendida como que retomando a descrição dos eventos até a crucificação-morte e ressurreição do Messias.
Porém, essa retomada fora realizada pelo autor a fim de estabelecer proximidade com as cenas anteriores, reforçando o argumento de que também está sendo usada como contraste claro em termos da reação dos discípulos frente ao vislumbre do evangelho que presenciaram anteriormente. A presente cena retoma o fluxo narrativo-cronológico em que a paixão do Senhor se aproxima, isto é, o registro da unção de Cristo em Betânia e a trama de Judas e dos principais sacerdotes ocorre 6 dias antes da Páscoa (cf. Jo 12.1); Mateus agora volta para o tempo presente, dois dias antes da festa (cf. v.2) narrando essa cena, para que sirva, como dito, de contraste entre as reações de Judas e dos demais discípulos.
A iniciativa dos discípulos enquadra essa ideia, por virem até o Senhor, apresentando o desejo de realizar os preparativos para que comessem à Páscoa. A presteza dos discípulos é posta em oposição a ida de Judas aos anciãos de Israel para trair Jesus, como é narrado após terem recebido instruções do Senhor em relação ao que deviam fazer: "E eles fizeram como Jesus lhes ordenara e preparam a Páscoa".
Tendo presenciado o Evangelho (ou seu anúncio), os demais discípulos aceitam e submetem-se à vontade do Senhor Jesus, agindo de acordo com sua ordem. Novamente, o caráter exortativo imbuído no texto pelo autor, embora implícito, fica evidente: todo discípulo de Cristo; todo aquele que foi chamado ao Reino pela graça do Pai no poder do Espírito, compreendendo que o evangelho é a vontade do Deus Triuno, submete-se com obediência devota, revelando assim sua condição como salvo e transformado pelo evangelho, buscando testemunhar dele e viver por digno do tal.
Transição
A iminência da crucificação torna ainda mais intensa a busca do autor por demonstrar a execução do evangelho, e com ele, a publicação da chegada do Reino dos céus através de Jesus Cristo. Quanto mais próximo tal evento, mais forte o efeito distintivo que ele provoca se torna, e a revelação entre os que verdadeiramente creem no Messias dos que não creem também fica mais vivaz.
Só há duas possíveis reações ao anúncio do evangelho: ou nos convertemos ou o rejeitamos, e tal imagem é colocada diante dos ouvintes/leitores do evangelho de Mateus, a fim de que percebam a veracidade de grandeza da obra que Cristo Jesus realizou em favor dos eleitos.
Diante disso, o texto de Mateus 26.6-19 revela a seguinte verdade a ser apreendida pela igreja:
Aplicação
O evangelho provoca duas possíveis reações, ao ser anunciado ou exposto: salvação e condenação.
Em sua vinda a esse mundo, Cristo não estava apenas cumprindo o plano redentivo em termos da salvação dos eleitos; suas ações delimitam apenas duas reações possíveis frente a exposição de alguém ao evangelho que executou: submissão mediante fé e obediência, revelando aquele que assim procede foi destinado à vida; ou rebelião, através de repúdio e iniquidade, expondo que tal pessoa foi proscrita do Reino dos céus.
Judas e os discípulos foram expostos à mesma cena que prenunciava a morte expiatória de Cristo, e mesmo o primeiro tendo justificado sua oposição com intenções supostamente "boas", mostrou que na verdade seu coração estava distante da compreensão de que estava diante do Messias, e que não cria nem se submetia ao evangelho ao qual foi exposto.
Esse efeito duplo vem sendo reverberado ao longo dos séculos: nesse momento, em várias partes do mundo, mediante o testemunho da igreja, Cristo está salvando uns e condenando outros através da mesma mensagem: ele foi morto e ressuscitado, pois é o único meio de salvação e de ingresso ao Reino.
Salvação e condenação são como duas faces da mesma moeda: a traição de Judas e a devoção dos discípulos também encenam o que vem acontecendo desde o início dos tempos: o sacrifício do Cordeiro de Deus é a mensagem que gera no coração dos justos o amor e devoção, atraindo-os à graça eterna, e no coração dos réprobos, ódio e pecado, confirmando sua também eterna, reprovação.
Conclusão
Como Cristo prometeu assim se fez e faz: Maria jamais será esquecida, pois quando derramou o perfume sobre Cristo, ela expôs o evangelho, e em todas as partes do mundo em que um pecador é salvo, ou condenado, por ter sido exposto a esse evangelho, lá esta a lembrança do que ela fez: demonstrou a grandeza da obra realizada por aquele em cuja mãos está o poder de salvar e condenar.
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