Mateus 26.47-56
Série expositiva no Evangelho de Mateus • Sermon • Submitted • Presented
0 ratings
· 3 viewsO autor apresenta, através do episódio da prisão de Cristo, o paradoxo da obediência voluntária como a base da perfeição da obra redentiva executada pelo Senhor, para a glória do Pai e cumprimento das Escrituras.
Notes
Transcript
“[...] Porque é chegado o Reino dos céus” (Mateus 3.2).
Pr. Paulo U. Rodrigues
Introdução
Compondo o quadro no qual Cristo é apresentado como o Servo Sofredor, encarregado de, para que se cumprissem as Escrituras (cf. vs. 54, 56), se entregar como sacrifício pascal, realizando a obra redentiva, e progredindo a narrativa evangélica que culmina então com sua morte e ressurreição, Mateus descreve a cena em que Cristo é preso, identificando sua postura de entrega às autoridades judaicas com aquela faceta da postura do Messias que "como cordeiro foi levado ao matadouro; e como ovelha muda perante seus tosquiadores, ele não abriu a boca" (cf. Is 53.7).
Tendo compreendido que o cálice que estava para beber era parte indispensável de sua obra, o qual não podia ser passado dele, Cristo, demonstrando inteira submissão à vontade do Pai, agora procede de acordo com o que orou instantes antes no jardim do Getsêmani (cf. v.42), e põe-se voluntariamente sob o poder da turba da qual fazia parte o traidor.
A profundidade temática da cena é feita mediante a fala de Cristo de que seria possível que, caso quisesse, veria-se completamente livre daquela situação, podendo rogar ao Pai e ele lhe enviaria "mais de doze legiões de anjos" (v.53). Logo, tudo o que está acontecendo é resultado da operação soberana do Pai em guiá-lo até aquele momento, para que se cumprissem as Escrituras, e também de sua própria vontade, isto é, ele, de maneira inteiramente livre, está optando por entregar-se.
A obra redentiva não foi executada de maneira arbitrária por Cristo, tendo sido imposto sobre ele qualquer coisa que o fizesse submisso a todo o sofrimento que já estava sentido em sua alma, e que seria intensificado posteriormente; muito pelo contrário, cada um dos momentos registrados nos evangelhos apontam para a livre vontade do Senhor que, sendo o redentor, entrega-se para glória do Pai e salvação de seus discípulos.
Esse paradoxo entre o ordenado e o expontâneo é enfatizado por Mateus para que a força do que está ocorrendo, segundo seu registro, seja percebida por seus ouvintes/leitores: o plano redentivo de publicação do Reino está em perfeito andamento, e agora é chegada a hora em que toda a obra do Pai e do Filho (este sob o poder do Espírito) será realizada: o sacrifício ocorrerá; o Cordeiro será entregue.
Notando os contornos teológicos da presente seção do evangelho de Mateus, o texto de Mt 26.47-56 expressa o início da paixão do Messias: Cristo; o servo sofredor - pt 2.
Elucidação
De acordo com as análises anteriores, Mateus, a fim de retratar o percurso que guia Cristo até o momento de sua crucificação e ressurreição, estabelece um conjunto de cenas que se sobrepõem, como é o caso desde o início do capítulo 26.
As últimas cenas (vs.20-46) encarregaram-se de demonstrar o sofrimento de Cristo de um ponto de vista antecipatório, isto é, os anúncios da traição de Judas e negação dos discípulos, junto ao momento de dor e angústia no Getsêmani, enfatizam um sofrimento de aspecto mais espiritual. Agora, porém, esse sofrimento começa a tornar-se concreto, isto é, o Messias deparar-se-á com o tormento físico que o guiará até o calvário.
Outro ponto de especificidade da atual seção, é o paradoxo (repetido por todos os quatro evangelistas) da situação de Cristo diante da proposição do sacrifício que executará: a dualidade entre a noção de entrega voluntária e obediência submissa funde-se numa única cena, demonstrando que ambos os aspectos confirmam sua identidade messiânica.
Isto posto, passaremos a analisar a presente seção a partir de dois atos que compõem essa cena: Ato 1 (vs.47-51): traição e prisão, e Ato 2 (vs. 52-56): o paradoxo messiânico.
Ato 1 (vs. 47-51): Traição e prisão.
A cena inicia-se com a súbita chegada de uma guarnição "vinda da parte dos principais sacerdotes e dos anciãos do povo" (v.47), e dentre estes está "Judas, um dos doze". Um comentário autoral interrompe o fluxo narrativo, a fim de explicar a ação deste em relação a Cristo: "Ora, o traidor lhes tinha dado este sinal: Aquele a quem eu beijar, é esse; prendei-o". A traição do discípulo é então executada: ao aproximar-se do Messias, Judas o saúda, da mesma forma como havia feito enquanto estava à mesa junto com os onze: ao invés de referir-se a Cristo como "Senhor" (gr. "κύριος"; termo usado quase exclusivamente para referir-se ao imperador), como era habito entre os outros discípulos (cf. v.22), Iscariotes lhe chama de "mestre"(gr. "ῥαββί"), um termo empregado mais comumente a todo mestre da lei ou ancião do povo, demonstrando claramente certo distanciamento afetivo de Jesus.
Nesse ponto, um diálogo é iniciado, embora não concluído, pois Cristo, tendo retoricamente questionado Judas quanto ao porquê de estar ali, é logo preso pela guarnição. A abruptalidade com que os fatos são narrados, constroem a tensão encarregada de preparar a atenção do ouvinte/leitor para os momentos seguintes.
A aproximação da guarnição, a saudação e beijo de Judas, e a fala de Cristo, são resumidas a fim de que o ambiente de conflito se estabelecesse, alimentando principalmente a expectativa dos leitores/ouvintes quanto a como o Senhor Jesus reagirá diante daquela situação. Nesse momento, "um dos que estavam com Jesus" (v. 51) — o qual se sabe à luz do evangelho de João que foi Pedro (cf. Jo 18.10) — saca a espada, e fere o servo do sumo sacerdote (i.e. Malco), aumentando ainda mais a tensão da cena.
O foco da situação concentra-se, como dito, na forma como o Messias reagirá ao que transcorria. Naturalmente, o público para o qual Mateus havia escrito seu texto, era conhecedor do fato de que Cristo havia sido de fato crucificado, ou seja, eles conheciam a história. Entretanto, para Mateus não importava apenas que seu público conhecesse o desenrolar dos eventos que culminaram com o sacrifício do Salvador, mas que estivessem cientes daqueles fatos sob a ótica do evangelho.
Desde o início do seu ministério, Cristo, estando sob o poder do Espírito Santo, cumprira todas as profecias a seu respeito, as quais constam no Antigo Testamento. Isto indicava que todo o percurso histórico de Cristo estava perfeitamente de acordo com o plano redentivo, e isso incluía o atual momento. Considerando isto, um "ponto de virada" começa a se desenrolar na narrativa, a partir de uma anticlímax ou quebra na tensão, que propõe o paradoxo messiânico que resolve o presente conflito.
Ato 2 (vs.52-56): O paradoxo messiânico.
Emitindo uma ordem a Pedro, Cristo lhe diz que guarde a espada, "pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão" (v.52). Com isso, ele introduz outra parte de sua fala; esta, demonstrando uma hipérbole que elucida sua vontade diante de todo aquele embaraço: "Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos?" (v.53).
À guisa de informação, uma legião romana — donde o conceito de legião fora extraído — poderia conter aproximadamente 6.000 soldados. O que o Senhor Jesus afirma é que, caso quisesse, poderia lhe ser enviado 72.000 anjos, que facilmente o poriam livres de toda aquela situação. Claramente a discrepância numérica é uma forma intencional de Cristo exprimir a Pedro que a sua vontade é de estar ali, naquele momento, pronto a ser preso e submetido às autoridades dos judeus, como vinha avisando desde que começou a dirigir-se à Jerusalém (cf. 16.21).
De contra partida (e aqui reside o paradoxo), ele complementa essa afirmação com um indicativo de que, caso tivesse feito tal solicitação ao Pai, "como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve (gr. "δεῖ") suceder?".
Por um lado, Cristo salienta que tem completa autonomia sobre o que ocorre, principalmente quando diz que seu Pai atenderia seu pedido. Por outro, as Escrituras indicavam que aquele era o percurso que ele deveria trilhar, e estava, portanto, cumprindo-as.
Assim o paradoxo se completa: submetendo-se em obediência resoluta à todo o sofrimento proposto como cumprimento das Escrituras, Cristo publica ser o perfeito sumo sacerdote e perfeito sacrifício por meio do qual o cosmos e o povo de Deus seriam redimidos. Por outro lado, a livre vontade do Senhor em entregar-se, também asseguram a majestade e soberania do Redentor, sendo ele o publicador do Reino dos céus.
Tal perspectiva fica clara, quando o próprio Cristo explica às multidões que todo o transcurso de sua vida até aquele ponto, fluiu naturalmente para que fosse executado o plano trinitário:
Naquele momento, disse Jesus às multidões: Saístes com espadas e porretes para prender-me, como a um salteador? Todos os dias, no templo, eu me assentava [convosco] ensinando, e não me prendestes. Tudo isto, porém, aconteceu para que se cumprissem as Escrituras dos profetas. Então, os discípulos todos, deixando-o, fugiram.
Se Cristo era de fato um mero agitador, como acusavam os anciãos do povo, por que esperaram tanto tempo até prendê-lo, tendo em vista que sempre esteve às vistas de todos, pregando e ensinando? A turba armada, parecia estar atrás de um perigoso criminoso, mas o acusado — no caso, Cristo — lhes era muito conhecido. Por que somente agora decidiram prendê-lo? A resposta é perturbadamente simples: tudo ocorreu exatamente como ele, o Pai e o Espírito haviam determinado. E assim como isso estava escrito, a fuga de seus discípulos também o estava, complementando o quadro cênico que eleva Cristo como o majestoso Cordeiro de Deus, encarregado de, livremente, entregar-se para a a glória do Pai.
Transição
A dupla face da ação de Cristo frente ao sofrimento, exibe a beleza da obra messiânica, e é exatamente para essa perspectiva grandiosa que Mateus deseja fazer seu público perceber.
Ao ter sido preso, o Senhor Jesus não estava sendo combatido por forças rebeldes que o poderiam subjugar de fato; ele, soberana e livremente, atendendo a vontade do Pai, estava se entregando, para que, mediante sua perfeita obediência e voluntário sacrifício, executasse a obra redentiva que garantiria (como assim aconteceu) a redenção do cosmos (o que inclui seus discípulos e publicação do Reino dos céus.
Assim, o texto de Mateus 26.47-56, sintetiza como verdade central a ser contemplada a seguinte aplicação:
Aplicação
O paradoxo da obediência voluntária do Senhor Jesus, fundamenta a riqueza e a perfeição da obra redentiva executada por ele, garantindo nossa salvação.
A ambiguidade apresentada pelos evangelistas é intencional, e não devemos achar que precisa ser resolvida. Em nossa limitada compreensão, entendemos que alguém que obedece uma ordem ou palavra anteriormente proferida a seu respeito, o faz por imposição da vontade daquele alguém sobre si. Logo, não está livre para, caso queira, despojar-se de tal obrigação.
O dado bíblico desenvolve um pensamento contrário: Cristo, como a Segunda Pessoa da Trindade, e portanto, da mesma substância divina do Pai e do Espírito, por ninguém pode ser obrigado a fazer qualquer coisa, pois ele é aquele através do qual o próprio universo veio a existência, sendo assim a própria palavra criadora (i.e. o "λόγος"; cf. Jo 1.1). Como complementa Calvino:
As Institutas, Volumes 1–4 5. Cristo Consumou-Nos a Redenção Mediante Sua Obediência e Morte Vicária
na própria morte de Cristo ocupa o primeiro plano sua sujeição voluntária, porquanto seu sacrifício de nada teria servido à justiça, a não ser que fosse oferecido de livre vontade.
De contra partida, como estabelecido no plano redentor, do qual fez parte como quem o concebeu, junto ao Pai e ao Espírito, Cristo cumpre as Escrituras, executando-as por meio de sua entrega aos que o prenderam.
Em Cristo, vemos o majestoso Cordeiro Mudo, já sendo preso a fim de ser conduzido ao matadouro, onde de lá, proporcionou nossa completa libertação do poder do pecado e da justa condenação que merecíamos.
Obediência resoluta e livre vontade ocupam o mesmo espaço no glorioso enredo redentivo, que garante a publicação do Reino dos céus naquele que, tendo se submetido voluntariamente, foi erguido à mais elevada altura, assentando-se à destra da majestade, publicando seu triunfo.
Conclusão
A imagem bíblica de Cristo resume bem o caráter de sua obra: Cordeiro e Leão são as duas faces do redentor da Igreja de Deus; duas posturas que retratam a grandeza do Rei que, fazendo preso, libertou escravos.