Mateus 26.57-75

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O autor segue na apresentação de Cristo como o perfeito Cordeiro de Deus que injustiçado, submete-se a sofrer nas mãos de pecadores como cumprimento profético de seu percurso messiânico.

Notes
Transcript
“[...] Porque é chegado o Reino dos céus” (Mateus 3.2).
Pr. Paulo U. Rodrigues
Introdução
Progredindo as cenas da paixão de Cristo em seu sofrimento messiânico e vicário, que cumpre o plano redentivo por meio do qual o Reino dos céus será publicado, e ainda ecoando muito das perspectivas apresentadas anteriormente, em que o Senhor é visto como o Cordeiro Mudo entregue para padecer, Mateus narra agora a humilhação que Cristo sofrerá diante das autoridades (tanto judaicas (vs. 57-68) quanto romanas (cf 27.11-26)).
A presente seção enquadra dois momentos: o testemunho de Cristo diante das autoridades judaicas (vs.57-68), quando é inclusive acusado injustamente pelo anciãos do povo, porém, como cumprimento das Escrituras (cf. Is 53.9); e a negação de Pedro (vs.69-75), que jungido ao ponto anterior, enfatiza a identidade profética — e portanto, verdadeira, do Messias —.
A entrega voluntária de Cristo (vs.47-56) também em submissão à vontade do Pai declarada nas Escrituras, evolui agora para o momento de sua humilhação. O trajeto redentivo proposto ao Salvador, reserva um momento em que, mesmo sendo visto inequivocamente como o Filho do Homem (cf. v.64 - Dn 7.13), é acusado de maneira ilegal por aqueles que resistem ao Reino dos céus, no caso, os fariseus, escribas e os principais sacerdotes.
A perfeição do Messias consiste não somente em ele cumprir todas as Escrituras, mas também em ser achado integro e inculpável diante de seus acusadores que, ignorando a própria Lei de Deus, determinam sua execução.
Ligado a isso, a intenção autoral do evangelista é também traçar para os seus leitores, o quadro teológico que interpreta a morte de Cristo como aquele evento narrado e prometido nas Escrituras do Antigo Testamento, como o momento em que a salvação do povo de Deus seria efetivada e a redenção do cosmos mediante a publicação do Reino dos céus ocorreria. Entretanto, de forma mais específica, uma identificação referencial entre Cristo e seus discípulos também é feita: tal como analogamente ocorrerá nas seções posteriores, assim como os agentes do Reino, o Senhor Jesus também prestou testemunho de sua identidade diante das autoridades, atraindo com isso a perseguição injusta por parte daqueles que se avessaram ao Reino.
O trajeto messiânico e a jornada cristã são novamente aproximados pelo autor, a fim de ratificar a fé daqueles que, agora, diante das autoridades, confessam ser filhos do Reino, e mesmo que sofram com a rivalidade e hostilidade mundana, deverão contemplar no Cristo glorificado o fim de sua trilha.
À luz dos desdobramentos apresentados, o texto de Mateus 26.57-75 sintetiza como ideia central o testemunho messiânico de Cristo: a acusação contra o inocente Cordeiro Mudo.
Elucidação
O enredo anterior construído por Mateus, centraliza Jesus como o soberano cordeiro de Deus, que, paradoxalmente, entrega-se de maneira voluntária mas também em cumprimento à vontade do Pai, como aquele que proporciona a execução do sacrifício que redime os discípulos e agentes do Rei, bem como toda a criação, que será palco da publicação do Reino dos céus.
A partir do versículo 57, a narrativa é continuada. Já sob a custódia da guarnição que o encaminhará às autoridades e de lá, à cruz, o evangelista narra o momento em que Cristo é evidenciado como inocente, porém mesmo assim, condenado diante dos opositores do Reino, que, ignorando todo os princípios da Lei que tanto dizem defender, ardilosamente encaminham o Messias ao governador como culpado de blasfêmia e motim.
A reunião do sinédrio na casa do sumo sacerdote (i.e. Caifás (cf. v. 57)) é mencionada concomitantemente à presença de Pedro em perseguição do Messias, "para ver o fim" (cf. v. 58), o que se mostrará intencional da parte de Mateus ao fim da narrativa.
Tendo Cristo sido trazido pela guarnição, o "julgamento" é iniciado, e Mateus registra um comentário, informando que "os principais sacerdotes e todo o Sinédrio procuravam algum testemunho falso contra Jesus, a fim de condená-lo à morte" (v. 59). A interpretação do autor ressalta as intenções escusas dos líderes judaicos ali reunidos: eles não estão interessados em examinar quem Cristo verdadeiramente é, mas sim, em condená-lo.
Entretanto, mesmo tendo sido trazido testemunhas falsas, a acusação não se sustenta, e novamente, a parcialidade maligna do Sinédrio contra Cristo é exibida. Isso porque, segundo determina o texto de Deuteronômio 19.16-21
Deuteronômio 19.16–21 ARA
Quando se levantar testemunha falsa contra alguém, para o acusar de algum transvio, então, os dois homens que tiverem a demanda se apresentarão perante o Senhor, diante dos sacerdotes e dos juízes que houver naqueles dias. Os juízes indagarão bem; se a testemunha for falsa e tiver testemunhado falsamente contra seu irmão, far-lhe-eis como cuidou fazer a seu irmão; e, assim, exterminarás o mal do meio de ti; para que os que ficarem o ouçam, e temam, e nunca mais tornem a fazer semelhante mal no meio de ti. Não o olharás com piedade: vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé.
Ao ser identificado o falso testemunho, aqueles que o prestaram deveriam, segundo o rigor da Lei, ser no mínimo disciplinados, pois pecaram contra o SENHOR, suprimindo a verdade. Todavia, a narrativa continua com o comparecimento de duas últimas testemunhas (v.60) — o que indica que os anciãos não se preocuparam com o preceito da Lei supra citado —, que afirmam a respeito de Cristo: "este disse: "posso destruir o santuário de Deus e reedificá-lo em três dias"".
A afirmação, intencionalmente deturpada, tem a finalidade de atribuir a Cristo a pecha ou discriminação de agitador ou ameaça ao templo e a nação de Israel. Diante dessa acusação, o sumo sacerdote Caifás (cf. v. 57, 62), questiona Cristo quanto a sua recusa em defender-se, e nesse momento a cena atinge seu auge, pois as iniciativas da parte do Senhor, centralizam a descrição narrativa que o evangelista tece até este ponto. Segundo o texto: "Jesus, porém, guardou silêncio" (v.63).
O silêncio do Senhor não é uma admissão de culpa ou exibição de indiferença, mas uma resposta altissonante quanto a sua identidade: parte da caracterização narrativa feita pelas Escrituras do Antigo Testamento, reserva a informação de que o Messias deveria ser injustiçado, conforme, por exemplo, o texto (já citado em análises anteriores) de Isaías 53 estabelece. O Servo Sofredor, assumindo a postura de Cordeiro, mantém-se mudo "perante seus tosquiadores" (Is 53.7).
Essa informação é transmitida aos leitores a fim de que, mediante o desenrolar de toda a narrativa, novamente a identidade messiânica de Cristo Jesus seja atestada. Mesmo num momento em que claramente a conspiração do anciãos é conduzida de maneira profundamente iníqua, nem assim os eventos fugiram do controle supremo do Pai, Filho e do Espírito: toda a grande injustiça sofrida por Cristo está debaixo de seu supremo controle, e assim ocorre para que seu sacrifício seja propiciado, e a salvação, executada.
Diante do silêncio de Jesus, Caifás insiste com o Senhor inquirindo-o: "Eu te conjuro ("eu exijo!" rf. NVI) pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus" (v.63). Além da preocupação com a alegação de que o acusado destruiria o templo, Caifás deseja extrair de Cristo alguma confissão blasfema, numa que recusava-se a crer que ele de fato era o Messias. Todavia, a incompreensão do sumo sacerdote quanto a identidade do Senhor, é o ponto de ironia da narrativa: Caifás em sua recusa em perceber o que lhe está patente, tentar forçar Cristo a cometer um pecado que, de fato, ele não poderia, por dois motivos: em primeiro lugar, porque nele não havia pecado, entretanto, essa informação não é de conhecimento do sumo sacerdote; e em segundo, por que ele não poderia mentir afirmando algo que condizia com a realidade: Cristo era o Filho de Deus, o Messias Prometido, e a resposta do Senhor registrada no versículo 64, clarifica isso:
Mateus 26.64 ARA
Respondeu-lhe Jesus: Tu o disseste; entretanto, eu vos declaro que, desde agora, vereis o Filho do Homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.
A resposta do Senhor evoca uma imagem extraído da AT, mais especificamente do texto de Daniel 7.13 — já anteriormente citado por Jesus (cf. 24.30) —, em que uma figura, identificada no texto como "um como um filho de homem", que por sua vez dirige-se ao "Ancião de Dias", recebe deste "o domínio, a glória e o reino" (cf. Dn 7.14). A junção das duas personagens exprime a relação entre Cristo e o Pai, o que confirma o primeiro como o Salvador Ungido. Nada obstante, Caifás, apesar de não aquiescer à identificação do Senhor, compreende a associação, identificando-a como blasfêmia:
Mateus 26.65–66 ARA
Então, o sumo sacerdote rasgou as suas vestes, dizendo: Blasfemou! Que necessidade mais temos de testemunhas? Eis que ouvistes agora a blasfêmia! Que vos parece? Responderam eles: É réu de morte.
O julgamento rebelde e ímpio de Caifás é seguido por seus pares: os anciãos reunidos opinam que Cristo é réu de morte pelo pecado de blasfêmia. Nada obstante, esse julgamento (além de injusto, levando em consideração o Messias), é ilegal, pois, à luz do texto de Levítico 24.10-23, o pecado de blasfêmia consiste numa profanação do nome de Deus, isto é, amaldiçoá-lo (como fez o hebreu naquela ocasião), ou tomá-lo em vão. Jesus, ao afirmar ser o Filho do Homem — mesmo os anciãos resistindo em vê-lo assim — não estava nem fazendo uma coisa nem outra. Além disso, para executá-lo, era necessário que primeiro o pecado de blasfêmia fosse comprovado (KEENER, 2017, p. 132); esforço não empreendido por Caifás e por qualquer outro, que sumariamente sentenciam o Senhor Jesus.
Ironicamente, Mateus registra um último lance na cena em que Cristo é condenado pelas autoridades judaicas: sendo agredido e humilhado pelos anciãos, uma indagação é feita a Cristo: "Profetiza-nos, ó Cristo, quem é que teu bateu!" (v.68).
Usando de sarcasmos, os anciãos exigem de Cristo uma prova de que é o Messias, e esta seria ele exercer o ofício profético. Nesse momento, Mateus retorna ao registra da cena simultânea centralizada em Pedro e sua negação.
A narração de Mateus é feita de maneira sintética, porém, é suficientemente clara em termos de expor sua intenção autoral: em três ambientes e momentos diferentes, algumas pessoas reconhecem Pedro como um dos seguidores de Jesus:
"Ora, estava Pedro assentado fora no pátio; e, aproximando-se uma criada lhe disse: "Também tu estavas com Jesus, o galileu"" (v. 69).
"E, saindo par ao alpendre, foi ele visto por outra criada, a qual disse aos que ali estavam: "Este também estava com Jesus, o Nazareno" (v.71).
Logo depois, aproximando-ose os que ali estavam, disseram a Pedro: "Verdadeiramente, és também um deles, porque o teu modo de falar o denuncia" (v.73).
Nas três vezes em que foi indicado que Pedro pertencia ao grupo dos que seguia Jesus, o discípulo veementemente negou a informação, tendo nas duas últimas inclusive jurado (cf. v. 72, 74). Na última vez, porém, que negou ser discípulos do Senhor, Mateus registra o comentário de que "cantou o galo" (v.74, também referenciando o momento que Cristo havia dito que antes que o galo cantasse, Pedro o negaria três vezes (cf. v.34).
Tal referência não é aleatória, mas uma resposta ao questionamento sarcástico dos anciãos do povo: embora o Senhor, por guardar silêncio, não tenha revelado quem o estava agredindo — mesmo porque era óbvio —, a confirmação messiânica do Senhor por meio do de um cumprimento profético é feita: tal como o Messias, Cristo Jesus, havia dito, assim se cumpriu: seus discípulos o abandonaram e o negaram.
Transição
Mateus (assim como todos os evangelistas) preocupa-se em descrever a propriedade de Cristo como o Ungido do SENHOR: aquele que executaria a obra redentiva. Para que tal retrato fosse corretamente exibido, além do sofrimento vicário experimentado pelo Redentor, a inocência de sua pessoa — apontando esta para sua perfeição como o Cordeiro de Deus —, e a injustiça de sua humilhação sob mãos iníquas também delineia tal imagem.
O cálice amargo o qual Jesus tinha rogado não beber, embora tenha também pedido que a vontade do Pai fosse toda executada nele (cf. vs. 36-46), agora começa a ser sorvido: Cristo é apresentado à facção corrupta dos anciãos de Israel como inocente, no qual não encontraram dolo, sendo ilegalmente condenado.
A mensagem direcionada pelo autor do texto ao seu público alvo, consiste em exatamente perceber nesse cenário horrendo de injustiça e corrupção, a propriedade do Messias como sendo o Cordeiro Mudo de Deus, guiado agora para o matadouro por seus tosquiadores, e mesmo vendo-se agredido, não abre a boca.
Onde os fariseus viram a supressão de um agitador, os leitores/ouvintes do texto do evangelho de Mateus deveriam contemplar a grandeza do evangelho: era necessário que o Messias padecesse toda aquela injustiça para que fosse encaminhado sacrifício que executaria a redenção. No quadro negro da corrupta e ilegal condenação de Cristo, esconde-se a glória do Redentor.
Em adição a isso, a cena descrita no texto não era de todo estranha aos leitores: muitos estavam sendo acusados pelo único crime de proclamarem no coração do império romano, que somente Cristo Jesus é "κύριος" (trad. "Senhor").
A trilha messiânica, aberta por Cristo, deveria ser também percorrida por todos os seus discípulos. Apesar da fraqueza de Pedro em tê-lo negado, mesmo ele haveria de aprender que aquilo que sofreu o mestre, é referencialmente disposto à igreja, e de fato ele o sentiu. Isso não deve provocar nos eleitos qualquer temor: se a via dolorosa percorrida pelo Messias atestava sua propriedade enquanto salvador, da mesma forma a perseguição e injustiça que porventura possam ser sofridas pelos seguidores de Cristo, publicam seu pertencimento ao Reino dos céus.
Observadas essas considerações, o texto de Mateus 26.57-75, evidencia algumas verdades a serem apreendidas pela igreja contemporânea. Quais sejam:
Aplicações
1. O episódio em que Cristo é injusta e corruptamente acusado, cumpre as Escrituras, declarando-o como o perfeito Cordeiro de Deus. Mesmo o vil conluio dos homens está sob o poder soberano do Rei dos reis, que submetendo-se ao escárnio de pecadores, consumou o plano redentivo.
Os céus da narrativa bíblica começam a se fechar: o Messias, apresentou-se em obediência voluntária ao Pai, sendo conduzido por iníquos, à humilhação de ser injustamente condenado. Entretanto, mesmo sob o tempestuoso céu do sofrimento, o cristão deve saber que acima das nuvens brilha a soberania do SENHOR.
Jesus, o Cordeiro Mudo, cumprindo a palavra antiga, foi, em silêncio, ao lugar de sua humilhação, para ser acusado; não para sua vergonha, mas para que a redenção fosse executada, e assim, a glória da salvação triunfasse.
Essa compreensão deve ser aclarada em nossa mente pelo texto bíblico, a fim de que saibamos que na injusta acusação de Cristo, o evangelho é executado, pois assim como a profecia quanto ao abandono que sofreria se cumpriu, da mesma forma foi consumado o sacrifício que o tornou digno de se assentar à destra da majestade.
2. Em algum momento da vida, é possível que sejamos submetidos à humilhação e perseguição dos ímpios, a fim de que também atestemos nossa condição de filhos do Reino.
A via crucis começa na humilhação e na possível experimentação da injustiça, que exprime toda a rebelião de um mundo caído contra o Reino dos céus.
Foi o próprio Cristo quem disse que seríamos entregues "aos tribunais e às sinagogas; sereis açoitados, e vos farão comparecer à presença de governadores e reis, por minha causa, para lhes servir de testemunho" (cf. Mc 13.9). Não podemos esperar outra coisa, senão que, se assim aprouver ao Criador, também sejamos expostos à ilegal aversão dos homens contra a obra redentiva em nós operada pelo Espírito, glorificando a Cristo: aquele que executou o sacrifício que nos garante a vida eterna, da qual o mundo não desfruta.
Entretanto, assim como ocorreu com o Senhor, se formos injustamente acusados e perseguidos por causa do evangelho, isso apenas testemunhará que a infalível palavra do SENHOR não passa, e estaremos, com nosso sangue, atestando que somos filhos do Reino.
Conclusão
Aquele que injustamente foi condenado à morte, livrou os que justamente deveriam sofrê-la. Com a injustiça sofrida por Cristo, somos justificados; com a falsa acusação que ele encarou, fomos perdoados da legítima sentença.
Glória a Deus pelo cordeiro que não abriu a boca!
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