Mateus 27.1-10
Série expositiva no Evangelho de Mateus • Sermon • Submitted • Presented
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· 7 viewsO autor apresenta o desfecho da história de Judas em paralelo com a narrativa anterior em relação à Pedro, contraponto os personagens a fim de enfatizar a operação do decreto divino na eleição e sustento dos discípulos de Cristo, e condenação dos réprobos.
Notes
Transcript
“[...] Porque é chegado o Reino dos céus” (Mateus 3.2).
Pr. Paulo U. Rodrigues
Introdução
Tomando como base a passagem anterior, especificamente o adendo feito por Mateus em que, implicitamente (isto é, apenas para os leitores/ouvintes de seu texto) responde o sarcástico questionamento dos anciãos de Israel (cf. v.68: "Profetiza-nos, ó Cristo, quem é que te bateu!"), provando que de fato Cristo era o Messias: o inocente Cordeiro de Deus, dois personagens são emparelhados a fim de que essa mesma ênfase seja expandida: Pedro e Judas são colocados lado a lado a fim de que, mediante a narrativa, o ouvinte/leitor perceba dois pontos concomitantes: a salvação dos eleitos (apesar de seus pecados), e a perdição daqueles que em seus pecados, foram destinados à condenação; ambas cumprindo as Escrituras.
O autor, que havia deixado Judas em segundo plano, oculto desde a prisão do Senhor, agora o traz novamente à superfície cênica de sua narrativa. O diálogo entre o traidor remorseado e os anciãos corruptos e impenitentes, enseja o desfecho daquele que foi destinado a ser o instrumento por meio do qual Cristo seria entregue às autoridades: Judas suicida-se, convicto de que pecou "contra sangue inocente" (v.4), representando sua separação para condenação. Por outro lado, embora Pedro tenha cometido pecado semelhante, e tenha sofrido "chorando amargamente" (cf. v. 75), teve outro destino (cf. Jo 21.15-23).
A intenção autoral ao estabelecer essa distinção, é demonstrar aos seus leitores as resultantes daquelas duas facetas da obra redentiva, demonstradas anteriormente, por exemplo, na ocasião em que o evangelho foi encenado na casa de Simão, o leproso (vs. 6-10): aqueles que, pelo poder de Deus, respondem ao evangelho com obediência e submissão, demonstram a eleição divina, e embora falhem e pequem nesse mundo (à da negação de Pedro), são encaminhados, por graça, à vida. Por outro lado, a aversão ao Reino exibe reprovação, e por fim, condenação.
Isto posto, o texto de Mateus 27.1-10 resume como ideia central a ser transmitida a exposição do decreto divino através no Cordeiro de Deus.
Elucidação
A descrição narrativa do autor no tocante a esta cena, inicia-se com o amanhecer do dia em que a reunião (agora, possivelmente, em número completo) dos anciãos do povo ocorre, e os principais sacerdotes, escribas e fariseus "entraram em conselho contra Jesus, para o matarem" (v.1). Tendo determinado executar o Senhor, a comitiva de anciãos conduz Cristo até o governador Pilatos (v.2), visto não terem em si autoridade para condenar uma vítima à pena de morte.
Nesse ínterim, um detalhe crucial é adicionado ao enredo: "Judas, o que o traiu, vendo que Jesus fora condenado, tocado de remorso, devolveu as trinta moedas de prata (...)". (v.3). Embora não seja possível determinar onde Judas de fato estava (se na própria reunião ou se escondido em algum lugar no ambiente), o fato é que, ao lermos a presente informação, o leitor/ouvinte do texto é lembrado de que o traidor estava junto com a turba encarregada de prender Jesus (cf. 26.47-50), o que também sugere que ele acompanhou a guarnição até a casa do sumo sacerdote. Isso o teria possibilitado estar ciente dos desdobramentos da reunião do sinédrio.
O comentário autoral que descreve o sentimento de Judas ao ter sabido que Cristo havia sido de fato condenado, não tem por finalidade causar alguma dúvida no leitor quanto a "situação espiritual" do traidor. Mateus não tem em mente alimentar no público para o qual direciona seu texto, algum tipo de esperança quanto à Judas; alguma possibilidade de ele ser restaurado. O ponto de Mateus é demonstrar que agora o traidor toma ciência quanto às implicações de seus atos. Conforme as palavras do próprio Judas, após ter quisto devolver as trinta moedas, ele afirma: "(...) Pequei, traindo sangue inocente" (v. 4).
Se levarmos em consideração as cenas anteriores, uma simétrica ironia eclode da narrativa: o Messias é preso e conduzido ao local onde, por homens corruptos, será injustamente acusado e, não tendo cometido qualquer crime, condenado à morte. Por outro lado, conduzido por sua própria ganância e corrupção, Judas estando no mesmo local, apercebe-se da atrocidade que cometera, e vê a si mesmo como culpado de traição.
Indiferentes a tudo isso, os principais sacerdotes asseveram não se importar com o ressentimento de Judas: "Eles, porém, responderam: "que nos importa? Isso é contido" ("a responsabilidade é sua" NVI). Nesse ponto, outro paralelo é implicitamente delineado por Mateus, este mais proximamente ligado ao personagem em foco na narrativa anterior: Pedro.
Quando questionado sobre se realmente era seguidor de Cristo, tendo negado, Pedro é lembrado da profecia do Senhor que adiantara sua negação (cf. 26.75), "e saindo dali, chorou amargamente". Judas, após a fala dos anciãos e depois de atirar em direção ao santuário as trinta moedas, também retira-se, porém vai "enforcar-se".
O abrupto fim do falso discípulo tem a intenção de indicar a inexorabilidade de sua condição, não dando ao leitor qualquer indício de que ele poderia ter tido um desfecho diferente. Tanto Pedro quanto Judas estavam agindo de acordo com a ordenação divina que deveria encaminhar Cristo ao sacrifício, porém, em relação a Pedro, apesar do intenso sofrimento que sente, podendo ser atribuído a ele profundo remorso, a conclusão de sua história fica em aberto, dando margem a expectativa de sua restauração. Judas, de contra partida, é de imediato sentenciado: ele tem seu pecado trazido à mente, e em seguida, é tomado pelo terror de ter traído O Inocente Filho de Deus.
Outra vez Mateus faz orbitar na elíptica de sua narrativa, os temas da condenação e salvação tendo Cristo como causa primeira. O traidor foi encaminhado, por seu pecado, ao destino certo que lhe aguardava. O impacto de tal narrativa sobre os leitores ouvintes é intensificado: Pedro nega a Cristo, como possivelmente muitos a quem Mateus agora se dirigia em seu texto e que também estavam sendo perseguidos, sentiam-se tentados a fazer. Mas isso não os apartaria de sua condição diante de Cristo, e tal segurança não lhes era comunicada pelo tamanho de sua fé ou firmeza dela, mas unicamente pela graça do Salvador em mantê-los, apesar de sua fragilidade, junto a si. Judas é o contraponto disso; ambicionando bens ou coisas superficiais, ou ainda a estabilidade e leveza de vida que tinha antes de ser chamado como discípulo de Cristo, pecou contra sangue inocente, e o resultado foi que, no vazio de suas ações, encontrou sua destruição.
O encorajamento de Mateus à permanência na fé, mesmo em meio as dificuldades oriundas da perseguição, agora leva em consideração o fim daqueles que, rejeitando a Cristo, tornam às coisas desse mundo (não necessariamente riquezas). A profecia bíblica é cumprida perfeitamente nos dois casos: Pedro e Judas pecaram contra o Senhor, mas o critério eletivo vigora soberanamente através dos próprios personagens, em suas respectivas ações: Pedro peca, e por isso sofre, mas por fim, será restaurado. Judas, precipita-se (cf. Atos 1.18), tendo escolhido a parte que lhe cabia: trair o Salvador em troca de moedas.
Essa perspectiva de cumprimento profético é apresentada pelo autor na sequência ao enforcamento do traidor. Apanhando as moedas lançadas em direção ao santuário, os anciãos de Israel reconhecer que "não é lícito deitá-las no cofre das ofertas, porque é preço de sangue" (v.6). Então resolvem dirimir a impiedade de suas ações adquirindo um campo que serviria de cemitério para estrangeiros. Como confirma Craig Keener: "os sumos sacerdotes viram, sem dúvidas, a compra de um terreno como um gesto piedoso!" (KEENER, 2017, p. 134).
A despeito de sua tentativa de suprimir ou disfarçar o envolvimento na ilegal condenação de Jesus, os anciãos de Israel, sem perceber, acabam cumprindo uma profecia bíblica específica, que já havia adiantado toda aquela seção do enredo redentivo. Mateus, usando uma referência cruzada entre duas profecias, afirma que
Então, se cumpriu o que foi dito por intermédio do profeta Jeremias:
Tomaram as trinta moedas de prata, preço em que foi estimado aquele a quem alguns dos filhos de Israel avaliaram;
Embora o profeta citado tenha sido Jeremias, a profecia corresponde, literalmente, a descrição encontrada em Zc 11.12-13. No texto, Zacarias registra o oráculo profético no qual o SENHOR, sendo o bom pastor de Israel, é rejeitado, e "anulando" sua aliança (no texto referenciada por duas varas; uma chamada graça e a outra, união), recebe 30 moedas de prata como fosse seu salário pelo serviço prestado, as quais lança para dentro do santuário, no texto representado como a casa do Oleiro (cf. Zc 11.13 "ao oleiro"). Paralelo a essa passagem, em Jeremias 19.1-15, um grande derramamento de sangue é adiantado, como sendo fruto da disciplina divina sobre o povo de Israel, devido seus pecados.
Ambas as passagens, unidas e combinadas, armam o palco para o que ocorre no registro evangélico de Mateus, que aponta seus respectivos cumprimentos: Cristo, o bom pastor de Israel, é rejeitado, e trinta moedas de prata são o pagamento pelo câmbio feito por aquele que o trai (ou rejeita), e o fruto desse pecado é o derramamento de seu sangue, o qual é representado pela compra do "Campo do Oleiro".
A intenção de Mateus, como referenciado anteriormente, consiste em apontar para o concomitante cumprimento profético tanto no caso de Pedro e demais discípulos, quanto na situação de Judas: ambos são veículos sobre os quais opera a divina providência, que guia Cristo ao altar onde, como Cordeiro, será sacrificado.
Transição
A abordagem mateana inside sobre seus leitores e ouvintes uma perspectiva ampla sobre o discipulado cristão, sobretudo levando em consideração a ordenação divina que guiou Cristo ao sacrifício, momento em que o chamado à salvação e o decreto condenatório são efetivados.
Dois discípulos pecam; ambos, em alguma medida, rejeitam o Senhor. O que os distinguirá afinal? como perceber algum tipo de diferença entre Judas e Pedro? Certamente a resposta a essas perguntas não podem ser encontradas nos personagens em si, pois ambos demonstram reações muito próprias de seres caídos e corrompidos: Pedro teme ter o mesmo fim de seu mestre, e por isso nega ter qualquer vínculo com ele. Judas, ambiciona as coisas desse mundo e os estratagemas humanos que o poderiam beneficiar, e assim, trai o Messias.
Quando olhamos porém, através do locus do autor divino/humano do texto, percebemos qual é a disjunção entre ambos: Pedro foi chamado à, mesmo fraco e falho, seguir a Cristo; vocação que o levará à restauração de sua condição como servo e discípulo do Salvador. Judas por outro lado, foi convocado externamente a seguir o Cordeiro de Deus, mas tal chamado só revelou que sua condição corrompida nunca foi alterada, e sua ambição e traição confirmam o decreto divino, tal como os profetas haviam vaticinado.
De modo intencionalmente ambíguo, Mateus direciona esse texto ao seu público, fazendo-o perceber exatamente isso: como discípulos do Senhor Jesus, somos tão propensos a negá-lo e traí-lo quanto Pedro ou Judas. Entretanto, o que garante nossa condição como verdadeiros discípulos do Mestre, é a vocação interna operada em nós pelo Espírito Santo que, em nossas quedas e falhas (i.e. negações de Cristo), nos restaura e reconduz à estrada trilhada pelo Cordeiro de Deus, que abriu caminho para que nós, seus discípulos, o seguíssemos rumo à glória, e não à forca.
Em vista disso, o texto de Mateus 27.1-10 nos apresenta uma clara verdade, a ser apreendida e fixada em nosso coração:
Aplicação
O verdadeiro discipulado cristão, ocorre antes de tudo, como cumprimento da vontade de divina, que nos fornece a certeza de que, mesmo caindo e falhando, seremos sempre restaurados e fortificados em nossa fragilidade, para continuar seguindo o Cordeiro de Deus.
A forca aguardava Judas desde muito antes de trair o Senhor. Mas, embora sua condição fosse inexorável, o percurso que o guiou até lá, evidentemente mostrou que seu coração de fato estava longe de Cristo, embora tenha passado muito tempo ao seu lado. Pedro não é diferente: seu temperamento intrépido não o livrou do temor da morte ou da perseguição, e seu coração também falhou como Salvador.
Em Cristo, ambos tiveram sua natureza corrompida exposta, e pecaminosamente, apartaram-se do Mestre. Isso estava ordenado; os profetas já haviam revelado que assim seriam, bem como também haviam profetizado a restauração daquele que foi escolhido por Deus como verdadeiro discípulo.
Em nosso coração, há pecado suficiente para agirmos como Pedro ou como Judas, mas o que nos aproxima do primeiro e nos distancia do segundo, não é algo que é encontrado em nós, mas sim, que é operado em nós. O que nos garante que seremos erguidos do amargor de nosso choro devido nossas falhas e quedas, não é a fortaleza de nossa fé, mas o gracioso amor de Deus, que nos ergue para continuarmos seguindo a ele, como afirma Calvino:
"(…) Foi necessário que nós tivéssemos aqui estes dois espelhos, a fim de que sejamos tanto melhor capazes de saber que sem que sejamos chamados pela graça especial para compartilharmos do fruto da paixão e morte do Filho de Deus, [nosso esforço] seria inútil".
Calvino, João. Pedro e Judas, por João Calvino: O Quarto de uma Série de 8 Sermões sobre a Paixão de Cristo . O Estandarte de Cristo. Edição do Kindle.
Conclusão
O fim de Judas foi ligeiro. Traindo o Messias, demonstrou a vileza de sua condição ímpia, e enforcando-se, demonstrou que o decreto divino não falha. Pedro, do fundo de seu sofrimento, por também ter negado o Senhor, depois de Cristo ressuscitar, tendo vencido o pecado que reinava no coração de seus discípulos, ouviu a terna voz do Cordeiro dizer-lhe novamente: "Segue-me" (cf. Jo 21.19), chamado-o de volta ao lugar que, pela graça, lhe pertencia.
Assim será com todo aquele que fora chamado 'discípulo de Cristo': nem mesmo nós, em nosso pecado, teremos forças para lutar contra o amor de Deus que nos chamou para segui-lo.