Atos 2.42-47

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O autor divino/humano registra a vida da comunidade dos discípulos de Cristo, que vivem sob o poder do Espírito a fim de cumprir seu chamado testemunhal.

Notes
Transcript
"(…) E sereis minhas testemunhas (…) até aos confins da terra" (Atos 1.8).
Pr. Paulo U. Rodrigues
Introdução
Como compreendido a partir das análises anteriores, o capítulo 2 do Livro de Atos é dedicado por Lucas ao registro do cumprimento da promessa do derramamento do Espírito Santo (vs. 1-13); cumprimento esse que aponta para a realização da obra de Jesus e sua ascensão e glorificação como Senhor e Cristo (14-36).
À luz da seção anterior (vs. 37-41), o autor salientou o efeito da ação do Espírito Santo através do testemunho da igreja, representada por Pedro e os demais apóstolos em seu discurso às multidões, que viram a manifestação do Espírito sobre os 120 no cenáculo.
A compreensão quanto a glorificação e exaltação de Cristo como o Rei Davídico, isto é, como o Messias prometido pelo Pai, gerou na mente dos ouvintes do discurso apostólico a noção de que estavam sob sentenciamento divino, tendo outrora agido como inimigos do Reino, ao crucificar o Senhor por mãos de iníquos (cf. v.23). A única via de salvação para eles é aquela anunciada por Pedro no versículo 38: "Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados".
Nada obstante, a presente seção (vs. 42-47) enfatiza outros efeitos dessa operação poderosa e capacitadora do Espírito. Lucas apresenta aos leitores/ouvintes de seu texto, a amplitude do ministério do Espírito Santo como consolador da igreja (cf. Jo 16.5-15), em primeiro lugar, fortalecendo o vínculo comunitário dos discípulos, e também confirmando a obra da salvação mediante o chamado de pecadores à Cristo, tal como profetizado por Joel e interpretado pelos apóstolos (cf. Jl 2.28-32; At 2.21,39).
O caráter de continuidade das ações referidas por Lucas, conforme exposto no uso de verbos no imperfeito ao longo da narrativa, reitera o tom comprobatório de seu texto, aludindo a uma obra que continuava ocorrendo e permaneceria em andamento ao longo de toda história da igreja, até que Cristo retorne em glória, manifestando seu Reino (cf. 1.6-9).
Considerando essas percepções, o texto de Atos 2.42-47 salienta como ideia central os efeitos da obra do Espírito Santo sobre a igreja.
Elucidação
O discurso apostólico, tal como analisado anteriormente, serve à narrativa (para além do objetivo que o fez ser proclamado) também como evidência de que os discípulos de fato foram feitos testemunhas do Senhor Jesus, tal como ele mesmo prometera em 1.8. A proclamação da efetivação da promessa do Pai a Cristo, no envio do Espírito Santo como publicador da glória do primeiro (vs.14-37), e a resposta das multidões em arrependimento e fé em Jesus, ratifica para o(s) leitor(es) ouvintes do texto que o poder do Espírito está operando através da igreja. O autor então preocupa-se em registrar o modo como a igreja vivia logo após o evento do Pentecostes, salientando essa realidade.
A expressão conjuntiva-explicativa “ἦσαν δὲ” (trad. “Acontecia, pois...”) conecta ambas as seções, como dito, interligando os fatos agora narrados com os que dantes ocorreram; isto é, o que passa a ser descrito a partir do versículo 42, representa as reverberações do testemunho apostólico. Dada essa perspectiva, uma listagem inicial é introduzida sintetizando as ações seguintes, ao que depois são expandidas. A intenção de Lucas é declarar que o Espírito Santo, além de proclamar a exaltação de Cristo e chamar pecadores ao arrependimento e fé nele, também age na consolidação e fortalecimento da igreja, tal como demonstra o versículo:
Atos dos Apóstolos 2.42 ARA
E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações.
Segundo afirmado, essas três orações, coordenadas entre si, sintetizam o modo como vivia a igreja, refletindo perfeitamente a atuação do Espírito Santo na comunidade dos discípulos de Cristo, a partir de um comentário desenvolvido pelo autor. O esquema estrutural da passagem consiste na seguinte correlação a ser pormenorizadamente analisada:
v.42a "E perseveravam na doutrina dos apóstolos...". — v.43
v.42b "(....) E na comunhão...". — v. 44-45.
v.42c "(…) No partir do pão e nas orações". — v.47a.
A) Perseverança e temor (v.42a > v.43).
O primeiro ponto destacado por Lucas é a perseverança dos discípulos (que agora não são apenas 120, mas sim 3120 (cf. v.41)) na doutrina dos apóstolos, sendo isso evidenciado pela realização de "prodígios e sinais feitos por intermédio dos apóstolos" (v.44).
Tomando por base a ocorrência anterior dessa mesma expressão usada por Lucas para "perseverança" (gr. "προσκαρτεροῦντες") em 1.14, tendo em vista que lá a mesma indica a obediência dos discípulos às palavras do Senhor Jesus que os instruiu a permanecerem em Jerusalém até que recebessem a promessa do Espírito (cf. 1.4-5), Lucas conecta ambas as seções, fornecendo ao leitor uma compreensão clara de que a obra do Espírito não mudou a essência da ação primordial à qual a igreja foi convocada a executar. A comunidade dos discípulos, tal como dantes, deve manter-se em obediência às determinações do Senhor Jesus, com o diferencial de que agora agirão sob o poder do próprio Espírito Santo que os fará ser fiéis a esse propósito.
O Espírito Santo foi dado a igreja para que esta opere e viva de acordo com a vontade do Senhor Jesus, e a prova concedida pelo autor disso, é que o poder do Espírito gera na igreja temor (cf. v.43 "Em cada alma havia temor" (gr. "φόβος")).
B) Unidade e Comunhão (v.42b > v.44-45).
A segunda marca destacada por Lucas, é o vínculo comunitário experienciado pela igreja. A ação do Espírito sobre os discípulos dotou-os com a percepção de que fazem parte de uma unidade, que requeria deles atenção e cuidado de uns para com os outros:
Atos dos Apóstolos 2.44–45
Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
A liberalidade e espontaneidade do amor fraternal que crescia na igreja, tinha origem na ação Espírito. A narrativa lucana desenvolve a evidência da atuação do poder do Espírito na igreja, através da capacidade recebida por aqueles irmãos de unirem-se; antes, as multidões estavam confusas com relação ao que havia ocorrido no cenáculo, chegando alguns a zombarem dos discípulos (cf. v.13); agora, porém, todos viam-se como irmãos, ao ponto de entregarem seus próprios bens para socorro dos que dentre eles estavam necessitados.
C) Adoração e Alegria (v.42c > v.47a).
A iniciativa obediente da igreja em relação a guarda da ordenança da Ceia do SENHOR é a última das evidências relacionadas por Lucas.
A repetição da expressão "perseveraram" no início do versículo 44, ecoa o que foi abarcado anteriormente (cf. 1.14; 2.42), aplicando aqueles arcabouços semânticos também à essa ação da igreja. Noutras palavras, a comunidade dos discípulos, em reflexo de sua obediência à Cristo através da permanência na doutrina dos apóstolos, também mantém-se firme em sua expressão de fé por meio do atendimento e prática das ordenanças legadas pelo Senhor, dentre elas, a Santa Ceia, referenciado na passagem através da expressão "partir do pão", que ecoa, por seu turno, a cena da instituição do sacramento pelo próprio Cristo, tal como consta nos evangelhos (cf. Mt 26.26; Mc 14.22; Lc 22.19; "(… tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o partiu").
Além disso, o aspecto comunitário é reforçado a partir de uma perspectiva que revela o sentimento dos discípulos em relação às reuniões de culto onde partilhavam da Ceia, como consta no versículo 46:
Atos dos Apóstolos 2.46
Diariamente perseveravam unânimes (gr. "ὁμοθυμαδὸν" trad. "com uma mesma mente") no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração,
O teor transmitido por Lucas aos leitores do texto, a partir desse versículo, salienta o apego dos discípulos em se manterem unidos, não apenas em termos da doutrina que os leva à uma nova vida em Cristo e a um sentimento de comunhão, mas redundando também no serviço de adoração ao SENHOR, e isso "com alegria" (gr. "ἀγαλλιάσει" trad. "exultação", "felicidade"); uma adoração franca e sincera, expressa em submissão àquilo que Cristo estabeleceu (e.g. os sacramentos).
Levando em consideração a tríade de evidências anexada por Lucas nos versos analisados, a conclusão do texto resguarda aquela marca destacada ao longo de todo o capítulo, que enfatiza que todos os itens anteriores realizaram-se a partir do poder do Espírito Santo (segundo já reiteradamente argumentado); o chamado de pecadores ao arrependimento, tal como consta no versículo 47:
Atos dos Apóstolos 2.47
louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.
O acréscimo numérico é centralizado como arremate final da temática abordada no capítulo e resultado das obras anteriores operadas pelo Espírito através da igreja. A glória de Cristo testemunhada pelos discípulos como instrumento de chamado à salvação, é uma obra do Espírito Santo; Espírito que atua na comunidade, ratificando-a como emissária das boas novas do evangelho. A atuação do Espírito na igreja e através dela, fornece aos leitores do texto o quadro que os faz contemplar a ação de Cristo, tal como fora focalizado como tema central de todo o primeiro volume, continuado neste segundo (cf. 1.1-2) tendo com protagonista, o Espírito Santo.
O resultado da confirmação dos discípulos como testemunhas de Cristo vivendo sob o poder do Espírito, é a ação salvadora que inclui na comunidade aqueles que Deus desejava salvar.
Transição
O registro de como viviam os discípulos nos momentos iniciais da igreja, logo após Espírito ter sido ministrado por Cristo sobre eles, ressalta o poder que tem operado por meio da igreja.
Perseverança e temor; comunhão e fraternidade; adoração e alegria circunscrevem e apontam para uma realidade clara: o Espírito está entre aqueles que são testemunhas da glória de Cristo. Lucas transmite essa dimensão, encerrando o capítulo no qual tratou do cumprimento da promessa do Pai a Cristo, e assim, fornecendo o apelo pastoral de que seus leitores contemplem na igreja as provas de que, tendo o Espírito, vivam a partir sob seu poder.
De acordo com tais conclusões, as aplicações do texto de Atos 2.42-47 podem ser relacionadas a partir dos seguintes pontos:
Aplicações
1. O poder do Espírito que foi concedido à igreja, a evidencia como testemunha da glória de Cristo, e essa evidência é constatada no modo como a própria comunidade vive.
Muitos buscam responder a pergunta: como posso saber se minha igreja vive no Espírito? Isto é, como saber se ela desfruta do seu poder para ser igreja? o autor divino/humano do presente texto responde a esse questionamento a partir da lista tríplice de ações que exibe claramente a conexão entre o Espírito e Cristo, como uma agência cujo o objetivo é executar o plano redentivo.
A perseverança na doutrina dos apóstolos e o temor que o Espírito Santo gera na igreja, são a perseverança e temor às palavras (mandamentos) de Cristo. O sentimento comunitário e fraterno dos quais a igreja desfruta, solidifica o vínculo que possuem como corpo de Cristo, isto é, como aqueles que testemunham do Senhor Jesus e sua glória. A exultação efervescente na adoração comungando dos sacramentos, são experiências concedidas a que a igreja desfrute de comunhão com o próprio Cristo.
O Espírito Santo foi dado para publicar a glória de Cristo, e a prova de que uma igreja vive sob seu poder, sempre será a centralidade do próprio Cristo, vivendo da maneira como ele deseja que seus discípulos vivam.
2. A igreja deve rogar para que viva no e sob o Espírito Santo, mas deve compreender que o Espírito jamais descaracterizará ou mudará a essência da igreja: uma comunidade chamado a testificar da glória de Cristo.
Sob a égide de viver de acordo com o que o Espírito verdadeiramente fez (no passado) e faz agora (arrogando fidelidade àquelas experiências) na igreja, muitas comunidades ditas cristãs mudam completamente o foco e a essência do que é ser igreja: concentram-se em obras sociais; voltam-se à experiências espirituais transcendentais; focam numa suposta "comunhão" ou "irmandade". Porém, todas essas coisas ou não são aquilo que o Espírito quer que experimentemos, ou não são a essência ou fundamento do que é ser igreja.
Ser igreja ou ser a comunidade dos discípulos de Cristo, significa acima de tudo ser a reunião de salvos em Jesus, que foram chamados a publicar sua glória como instrumentos do Espírito na convocação de pecadores ao SENHOR. Essa é a última evidência registrada por Lucas (v.47).
Depois de ter ratificado que o poder do Espírito Santo estava de fato operando através da igreja, Lucas retorna ao ponto central de todo o capítulo 2: retratar que o Senhor Jesus, no cumprimento de sua obra e tendo recebido do Pai a promessa de sua exaltação, está agora chamando judeus e gentios ao arrependimento e à redenção.
O Espírito não foi dado a igreja para fazer com esta algo que difere da vontade de Cristo. Como o próprio Senhor disse:
João 14.26
(…) Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito.
João 16.14
Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar.
Oremos ao Pai que nos dê do seu Espírito, sabendo que ele sempre nos guiará ao centro da vontade de Cristo: que testifiquemos de sua glória, para louvor do Pai.
Conclusão
Desde Adão, a igreja aguardou o momento que em a redenção seria executada, e a glória de Cristo seria publicada. Desde o Pentecostes, a igreja, tendo recebido o poder de testificar dessa obra, vive recebendo do Espírito a graça de ser a comunidade de discípulos que ecoa pelo mundo o chamado do Pai à salvação.
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