CHAMADA EFICAZ, JUSTIFICAÇÃO, FÉ SALVADORA, ADOÇÃO E UNIÃO COM CRISTO
Quando discutimos a predestinação ou eleição e a soberana graça divina, devemos encarar a questão do que Deus realmente faz quando intervém numa vida para trazer a pessoa à fé. Historicamente, a escola calvinista e agostiniana diz que a eleição é puramente a atividade soberana de Deus, enquanto a escola arminiana ou semipelagiana vê um empreendimento cooperativo entre o homem e Deus.
Tomás de Aquino formulou a questão desta maneira: a graça da regeneração é graça operativa ou graça cooperativa? Em outras palavras, quando o Espírito Santo regenera um pecador, ele contribui somente com algum poder, para que o pecador acrescente algo de sua própria energia ou poder, a fim de produzir o efeito desejado, ou a regeneração é uma obra unilateral de Deus? Em outras palavras, Deus muda sozinho o coração do pecador ou a mudança de coração depende da vontade do pecador para ser mudado?
Desde o parágrafo inicial de sua carta aos efésios, na qual ele descreve a doçura da predestinação, até este ponto, em que mostra a abundante riqueza da graça de Deus, em bondade para conosco, em Cristo Jesus, Paulo exalta as maravilhas da graça divina.
Somos justificados pela fé, mas até a fé que temos não é algo que produzimos. Não vem de uma natureza caída. É o resultado da atividade criadora de Deus, e isso é o que os teólogos reformados querem dizer quando falam de regeneração monergística. Deus intervém no coração dos eleitos e muda a disposição de sua alma. Ele cria a fé em corações que não têm fé.
Deus ressuscita pessoas da morte espiritual e lhes dá vida espiritual, para que não somente possam querer e queiram a Cristo, mas também façam isso espontaneamente. Por trás da regeneração, há a mudança de coração pela qual os indispostos são tornados dispostos pelo Espírito de Deus. Na regeneração, aqueles que odiavam as coisas de Deus recebem uma disposição totalmente nova, um novo coração.
Podemos apresentar o evangelho; podemos argumentar em favor do evangelho e tentar sermos convincentes. Mas somente Deus pode mudar o coração. Visto que somente Deus tem o poder para mudar a natureza de uma alma humana, devemos dizer que a regeneração precede a fé. Isso é a essência da teologia reformada. O Espírito Santo muda a disposição da alma antes de uma pessoa vir à fé.
Nossa vontade é mudada de modo que as coisas que odiávamos agora amamos e corremos para o Filho. Deus nos dá, em nossa alma, o desejo por Cristo. É uma distorção da opinião bíblica dizer que o homem natural está tentando desesperadamente achar a Deus, mas Deus não permitirá que alguns o achem porque não estão em sua lista. Ninguém tenta vir a Cristo sem a graça especial de Deus.
O ensino é que todos os que são chamados são justificados, e isso significa que todos os que são chamados recebem fé, o que, por sua vez, significa que o texto não pode estar falando daquilo que os teólogos designam de “chamada externa do evangelho”, que é dirigida a todos. O texto fala da chamada interna, a chamada operativa, a obra do Espírito Santo que muda eficazmente o coração. A chamada eficaz do Espírito Santo faz acontecer em nosso coração o que Deus propôs fazer desde a fundação do mundo.
Todos os que foram predestinados são chamados eficazmente pelo Espírito Santo; e todos os que são justificados são glorificados. Se aplicássemos as categorias arminianas a esta corrente de ouro, teríamos de dizer que alguns que foram conhecidos de antemão são predestinados; alguns que são predestinados são chamados; alguns que são chamados são justificados; e alguns que são justificados são glorificados. Nesse caso, todo o texto significaria nada.
Martinho Lutero afirmava que a doutrina da justificação somente pela fé é o artigo do qual dependem a prosperidade ou a ruína da igreja, e João Calvino concordava com ele. Eles tinham opiniões firmes sobre esta doutrina porque entendiam, com base na Escritura, que nada menos do que o próprio evangelho está em jogo quando a justificação é debatida.
Se Deus tomasse a sua régua de justiça e a usasse para avaliar a nossa vida, pereceríamos, porque não somos justos. A maioria de nós pensamos que, se nos empenharmos para ser pessoas boas, isso será suficiente quando comparecermos diante do julgamento de Deus. O grande mito da cultura popular, que entrou na igreja, é que pessoas podem ganhar por mérito o favor de Deus, embora a Escritura afirme claramente que, por obras da lei, ninguém será justificado (Gl 2.16). Somos devedores que não podem pagar sua dívida.
Em última análise, a justificação é um pronunciamento legal feito por Deus. Em outras palavras, a justificação só pode ocorrer quando Deus, que é ele mesmo justo, se torna o justificador por decretar que alguém é justo aos olhos dele.
O debate no século XVI se focalizou em se Deus espera que pessoas se tornem justas antes de declará-las justas, ou se ele as declara justas aos seus olhos enquanto ainda são pecadores. Lutero propôs uma fórmula que tem sobrevivido desde o tempo do debate. Ele disse que somos simul iustus et peccator, que significa “ao mesmo tempo justo e pecador”. Lutero estava dizendo que uma pessoa justificada é simultaneamente justa e pecadora. Somos justos por virtude da obra de Cristo, mas ainda não fomos aperfeiçoados, por isso, ainda pecamos.
A Igreja Católica Romana argumenta que o ensino de Lutero era uma ficção legal. Os teólogos católicos romanos perguntam: como Deus pode declarar pessoas justas quando ainda são pecadoras? Isso seria indigno de Deus. Em lugar disso, Roma argumenta em favor do que é chamado “justificação analítica”. Eles concordam em que a justificação acontece quando Deus declara alguém justo. No entanto, para Roma, Deus não declarará uma pessoa justa enquanto essa pessoa não for, de fato, justa.
A Igreja Católica Romana dizia que a causa instrumental da justificação é o sacramento do batismo. O batismo confere sacramentalmente ao recipiente a graça da justificação; em outras palavras, a justiça de Cristo é derramada na alma daquele que recebe o batismo. Esse derramamento de graça na alma é chamado “infusão”.
Então, disse Roma, para que as pessoas se tornem justas, elas têm de cooperar com a graça infundida. Têm de concordar com essa graça em tal grau que a justiça seja alcançada. Enquanto as pessoas se guardarem de cometer pecados mortais, permanecem num estado de justificadas. Entretanto, de acordo com Roma, o pecado mortal é tão mau que destrói a graça justificadora que a alma possui. Portanto, aqueles que cometem um pecado mortal perdem a graça da justificação.
Um pecador pode ser restaurado ao estado de justificação por meio do sacramento de penitência, que a Igreja de Roma define como a segunda tábua de justificação para aqueles que fizeram um “naufrágio” de sua fé. Essa é a razão por que pessoas vão à confissão, que é parte do sacramento de penitência. Quando uma pessoa confessa seus pecados, ela recebe absolvição, depois da qual tem de realizar obras de satisfação que ganham o que Roma chama de “mérito congruente”. Obras de mérito congruente são integrais ao sacramento de penitência, porque estas obras de satisfação tornam apropriado, ou congruente, que Deus restaure o pecador ao estado de graça.
Em oposição a este ponto de vista, os reformadores protestantes argumentaram que a única causa instrumental da justificação é a fé. Logo que pessoas abraçam a Cristo pela fé, o mérito de Cristo é transferido para elas. Enquanto Roma sustenta a justificação por infusão, os protestantes sustentam a justificação por imputação. A Igreja Católica Romana diz que Deus declara alguém justo somente por virtude de sua cooperação com a graça infundida de Cristo. Para os protestantes, a base da justificação permanece exclusivamente na justiça de Cristo – não a justiça de Cristo em nós, mas a justiça de Cristo por nós, a justiça que Cristo realizou em sua obediência perfeita à lei de Deus.
Isto significa que somos salvos não somente pela morte de Jesus, mas também por sua vida. Um dupla transferência acontece, uma dupla imputação. Como o Cordeiro de Deus, Cristo foi à cruz e sofreu a ira de Deus, mas não por qualquer pecado que Deus achou nele. Cristo tomou voluntariamente sobre si mesmo os nossos pecados. Ele se tornou o carregador de pecados quando Deus, o Pai, transferiu ou atribuiu nossos pecados a ele. Isso é imputação – uma transferência legal. Cristo assumiu nossa culpa em sua própria pessoa. Nossa culpa foi imputada a Cristo. A outra transferência acontece quando Deus imputa a nós a justiça de Cristo.
A Igreja Católica Romana diz que Deus não declara pessoas justas, enquanto elas não são justas. Os protestantes dizem que pessoas são justas sinteticamente, porque algo é acrescentado a elas, a justiça de Cristo. Portanto, para os católicos, a justiça tem de ser inerente, enquanto para os protestantes a justiça é extra nos, ou seja, “fora de nós”. Falando corretamente, a justiça não é nossa própria. É contada como nossa apenas quando abraçamos a Cristo pela fé.
A Igreja Católica Romana insiste na necessidade da fé para a justificação; mas sustenta que a fé por si mesma não é suficiente para justificar alguém. Precisa haver também as obras. A diferença real é, portanto, que Roma crê em fé mais obras, em graça mais méritos, enquanto os reformados declaram que a justificação é somente pela fé e somente pela graça.
A fé é essencial ao cristianismo. O Novo Testamento chama, repetidamente, pessoas a crerem no Senhor Jesus Cristo. Há um corpo definido de conteúdo em que se deve crer, que é parte e parcela de nossa atividade religiosa. No tempo da Reforma, o debate envolvia a natureza da fé salvadora.
Lutero disse que o tipo de fé que justifica é fides viva, uma “fé viva”, uma fé que, inevitável, necessária e imediatamente, produz o fruto de justiça. A justificação é somente pela fé, mas não por uma fé que está sozinha. Uma fé sem qualquer fruto de justiça não é fé verdadeira.
Para a Igreja Católica Romana, fé mais obras é igual a justificação. Para os antinomianos, fé menos obras é igual a justificação. Para os reformadores protestantes, fé é igual a justificação mais obras. Em outras palavras, as obras são o fruto necessário da fé verdadeira. As obras não são levadas em conta na declaração de Deus de que somos justos aos seus olhos; elas não fazem parte das bases da decisão de Deus para declarar-nos justos.
Notitia se refere ao conteúdo da fé, as coisas que cremos. Há certas coisas que temos de crer a respeito de Cristo: que ele é o Filho de Deus, que ele é o Salvador, que ele proveu uma expiação e assim por diante.
Assensus é a convicção de que o conteúdo de nossa fé é verdadeiro. Uma pessoa pode saber a respeito da fé cristã e, apesar disso, crer que tal conteúdo não é verdadeiro. Podemos ter uma dúvida ou outra misturada com nossa fé, mas precisa haver certo nível de afirmação e convicção intelectual, se temos de ser salvos. Antes que uma pessoa possa crer realmente em Jesus Cristo, ela tem de crer que Cristo é realmente o Salvador, que ele é quem afirmou ser. A fé genuína diz que o conteúdo, a notitia, é verdadeiro.
Fiducia se refere à confiança e dependência pessoal. Saber e crer no conteúdo da fé cristã não é suficiente, pois até os demônios fazem isso (Tg 2.19). A fé é eficaz somente se o indivíduo confia pessoalmente apenas em Cristo para a salvação. Um coisa é alguém dar assentimento intelectual a uma proposição, mas outra coisa bem diferente é colocar sua confiança pessoal em tal proposição. Podemos dizer que cremos na justificação somente pela fé, mas, apesar disso, continuarmos pensando que iremos ao céu por causa de nossas realizações, nossas obras ou nosso esforço. É fácil introduzirmos a doutrina da justificação somente pela fé em nossa mente, mas é difícil colocá-la no coração de modo que nos prendamos somente a Cristo para salvação.
Há outro elemento em fiducia além de confiança, e esse elemento é afeição. Uma pessoa não regenerada nunca virá a Jesus, porque não quer a Jesus. Em sua mente e coração, ela está fundamentalmente em inimizade com Deus. Enquanto uma pessoa é hostil para com Cristo, ela não tem nenhuma afeição por ele. Satanás é um caso assim. Satanás conhece a verdade, mas odeia a verdade. Ele não tem nenhuma inclinação para adorar a Deus porque não ama a Deus. Somos assim por natureza. Somos mortos em nosso pecado. Andamos de acordo com os poderes deste mundo e satisfazemos as concupiscências da carne. Até que o Espírito Santo nos mude, temos um coração de pedra. Um coração não regenerado é um coração sem afeições por Cristo; é tanto sem vida quanto sem amor. O Espírito Santo muda a disposição de nosso coração para que vejamos a doçura de Cristo e o abracemos.
Quando alguém é trazido à fé, por ação do Espírito Santo, ele sofre a conversão. Sua vida sofre uma reviravolta. Esta reviravolta é chamada “arrependimento”, sendo um fruto imediato da fé genuína. Alguns incluem o arrependimento como parte da fé genuína. Entretanto, a Bíblia faz distinção entre arrependimento e crença. Não podemos ter afeição por Cristo enquanto não reconhecemos e admitimos que somos pecadores e necessitamos desesperadamente da obra de Cristo em nosso favor. O arrependimento inclui um ódio ao nosso pecado, que vem com a nova afeição que recebemos de Deus.
Quando Deus nos declara justos em Jesus Cristo, ele nos adota em sua família. Seu único filho verdadeiro é Cristo, mas Cristo se torna nosso irmão mais velho, por virtude de adoção. Ninguém nasce na família de Deus. Por natureza, somos filhos da ira, não filhos de Deus; portanto, Deus não é nosso Pai por natureza. Podemos ter a Deus como nosso Pai somente se ele nos adotar, e Deus nos adotará somente por meio da obra de seu Filho. Mas, quando colocamos nossa fé e confiança em Cristo, Deus não somente nos declara justos, ele também nos declara filhos e filhas por adoção.
O primeiro fruto da justificação é paz com Deus. Éramos inimigos, mas a guerra acabou. Deus declara um tratado de paz com todos os que colocam sua fé em Cristo. Quando Deus faz isso, não entramos numa trégua instável, de tal modo que, na primeira vez que fizermos algo errado, Deus começará a brandir a espada. Esta paz é inquebrável e eterna, porque foi ganha pela perfeita justiça de Cristo.
Outro fruto é acesso a Deus. Deus não permite que seus inimigos tenham um relacionamento íntimo com ele, mas, quando somos reconciliados com Deus, por meio de Cristo, temos acesso à sua presença e temos alegria na glória de quem ele é.
Somos filhos de Deus por adoção, que é fruto de nossa justificação. Quando somos reconciliados com Deus, ele nos traz à sua família. A igreja é uma família que tem um Pai e um Filho, e todos os demais que estão na família são adotados. Esta é a razão por que olhamos para Cristo como nosso irmão mais velho. Fomos feitos herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo. O verdadeiro Filho de Deus torna disponível tudo que ele recebeu em sua herança. Ele compartilha com seus irmãos e irmãs todo o seu legado.
Em nossa adoção como filhos, desfrutamos também da união mística com a pessoa de Cristo. Quando descrevemos algo como “místico”, estamos dizendo que ele transcende o natural e, em certo sentido, o inefável. Podemos entender isso por meio de um estudo de duas preposições gregas, en e eis, que são, ambas, traduzidas por “em”. A distinção técnica entre estas duas palavras é importante. A preposição en significa “em” ou “dentro de”, enquanto a preposição eis significa “para dentro de”. Quando o Novo Testamento nos chama a crer no Senhor Jesus, somos chamados não somente a crer em algo a respeito dele, mas também a crer em ele.
Além disso, somos todos parte da comunhão mística dos santos. Esta comunhão mística é o fundamento para a comunhão espiritual transcendente que cada cristão desfruta com todos os outros cristãos. E tem um impacto restringente em nós. Se você e eu estamos ambos em Cristo, a união que compartilhamos transcende nossas dificuldades relacionais. Isto não é apenas um conceito teórico; o vínculo dessa família é um vínculo mais forte do que o que desfrutamos com nossa família biológica. Este é o fruto de nossa adoção.