LIÇÃO 2 - A REALIDADE DO DEUS DA BÍBLIA
Etimologicamente, o ateísmo denomina uma visão filosófica que nega a existência de Deus. No século dezenove, o termo agnosticismo foi cunhado para designar a visão que não afirma nem nega a existência de Deus. O deísmo admite um Deus que age sobre o mundo apenas pela regularidade da lei natural. O teísmo aceita milagres e revelação. Mas a questão toda não é tão simples.
Em primeiro lugar, como não existe possibilidade média entre a existência e não existência de Deus, o agnosticismo só foge do ateísmo quanto ao nome. Demócrito, La Place e Nietzsche eram, sem dúvida, ateus, mas Spinoza falava constantemente de Deus, Deus sive Natura (Deus, isto é, Natureza). Mas se Deus e a natureza forem tomados como idênticos, não será isso ateísmo, também?
Kant postulava Deus, liberdade e imortalidade como bases necessárias para a moralidade. Mas ele insistia também que Deus não era um conceito constitutivo (conceito de um ente existente) e sim regulador (uma regra para a direção de nossa conduta). Não é isso, também, ateísmo?
No século vinte, Paul Tillich e o Bispo Robinson denunciaram a deidade antropomórfica que “está aí fora”, um policial cósmico e uma teologia de monoteísmo monárquico. Para esses autores, Deus não era uma entidade além das coisas ordinárias da experiência. Ele era ser-em-si-mesmo. Isso presumivelmente significa a qualidade comum da existência em tudo que existe. Mas isso também não seria tão ateísta quanto Spinoza?
O problema é que a palavra “Deus” não recebe um significado definido único. Não só o Deus de Spinoza é totalmente diferente do de Pascal, mas em termos de religiões positivas como o Alá do Islã, Shiva do Hinduísmo e os fetiches dos animistas nada têm em comum. Dizer que “Deus” é o nome daquilo que se adora ou serve não dá ao termo qualquer conteúdo concreto. Nem a definição de Deus como “o que satisfaz as necessidades do homem” seria boa, pois os homens não concordam sobre quais são as suas necessidades.
É, portanto, relativamente sem importância se uma pessoa crê ou não na existência de Deus. Existência é um pseudoconceito. A questão importante é “Quem é Deus?”. A esta pergunta o Cristianismo oferece uma resposta trinitariana. E obviamente a Trindade e Shiva nada têm em comum.
Por esta razão, não se pode discutir a teoria ética do ateísmo, há variedades demais. O epicurismo, embora asseverasse, estranhamente, a existência de deuses, era virtualmente ateísta. Contudo, duas teorias não poderiam ser mais opostas que a de Epicuro e de Kant. Semelhantemente, não havia concordância em nenhuma coisa entre Spinoza e Nietzsche.
O Humanismo do século vinte é um movimento mais unificado e uma medida de concordância na Ética pode ser encontrada entre os seus expoentes.
O panteísmo é a idéia de que tudo é deus e deus é tudo. Infelizmente, isso não explica muita coisa. Será Deus um mero agregado das coisas existentes ou sua unidade imanente? Será Deus a única realidade, sendo o mundo apenas semi-real? O finito obscurece ou revela Deus? Essas perguntas e outras semelhantes tornam o panteísmo incapaz de fornecer uma resposta definitiva. Quando Schleiermacher e Hegel negam ser panteístas, eles estarão certos, dado um entendimento do termo, e errados sob outro dado entendimento.
O estoicismo é o mais bem conhecido sistema panteísta do mundo antigo, embora tenha linhas teístas. Para o estoicismo, o universo é uma totalidade orgânica, racional, proposital, a qual opera para o bem sob o determinismo da sorte ou da providência. A tarefa ética é a de se viver de acordo com a natureza – da própria pessoa ou do universo – já que tudo compõe uma unidade sob a lei da razão abrangente. Aqui começa a teoria da Lei Natural (q.v.) a qual diz que é virtuosa a organização racional da vida em conformidade com a natureza. O homem possui livre arbítrio no sentido de que ele pode concordar com a sorte/providência ou ser escravizado por seus desejos e emoções. A aceitação do que acontece traz tranqüilidade de espírito, paciência e interesse por todos os homens os quais, porque racionais, são irmãos.
Para Spinoza, também, o universo é uma totalidade orgânica cuja realidade única, infinita, eterna e substancial se expressa nos modos mutáveis do finito. Reina a estrita causalidade. Não há livre arbítrio, daí o elogio e a culpa serem igualmente deslocados. A paz do homem vem da penetração racional do cerne das coisas, compreendendo as leis imutáveis que a tudo une e afirmando as mesmas leis. A liberdade é a ação que surge do autoconhecimento dirigido à realização e à preservação do ser. A virtude é o pleno exercício da natureza da pessoa conforme dirigida pela razão; aquilo que contribui para isso é bom e agradável. Como os homens racionais precisam uns dos outros, o interesse próprio exige o altruísmo.
Dois filósofos dos tempos modernos, os quais professam ser cristãos, Schleiermacher e Hegel, refletem fortes tendências panteístas. É grande a influência de Spinoza sobre Schleiermacher; com Hegel, voltam as tendências familiares, modificados os pontos: a unidade divina da totalidade (não-pessoal), o determinismo, a liberdade, a expressão racional da própria individualidade natural a qual requer amizade e sociedade, e a virtude como o triunfo da razão sobre a natureza mais baixa. Para Hegel, a virtude é a aceitação da relação das partes com a totalidade racional. No âmbito humano, a totalidade é o estado ao qual o indivíduo moral está subordinado.
O panteísmo enfatiza a relação parte/totalidade em vez de a relação pessoa/Pessoa enfatizada pelo Cristianismo. A relação interpessoal, em termos humanos, não está mais fundamentada sobre a relação interpessoal divino-humana. Nele, estão totalmente ausentes, ou são interpretados de modo diferente, os temas cristãos clássicos da soberania divina, da vontade revelada de Deus, da redenção do pecado, da dinâmica moral do Espírito Santo, da motivação de um amor correspondente, do julgamento e da vida futura. Palavras como “dever”, “obrigação”, “bem”, “amor” adquirem conteúdo e conotação diferentes. Perde-se o valor completo do indivíduo.
Termo cunhado pelo filósofo K. C. F. Krause (1781–1832), derivado das palavras gregas que significam “Deus em todas as coisas” para diferenciar do panteísmo*. Enquanto que no último o universo é Deus, segundo o panteísmo, mesmo que todas as coisas participem da natureza divina, essa natureza não se limita à totalidade das coisas. Portanto, Deus é imanente ao universo, que é divino, mas Deus é também transcendente, visto existir além do universo em sua totalidade. O próprio termo tem sido empregado para descrever também as posições dos filósofos do processo* Alfred N. Whiteehead (1861–1947) e Charles Hartshorne (1897–2000). O último empregou a relação entre uma pessoa e seu corpo como exemplo da relação entre Deus e o universo: assim como o corpo é parte da pessoa, mas não é a pessoa toda, assim também o universo se relaciona com Deus.
O termo designa uma abordagem do universo que considera, por trás de todas as coisas, um Deus pessoal, e a correção da idéia de deuses alternativos. Como escreveu Immanuel Kant: “O teísta acredita num Deus vivo”. O teísmo não especifica qualquer forma concreta de religião empírica, mas afirma o elemento vital, um Deus pessoal. As principais religiões teístas, em ordem de surgimento histórico, são o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
O teísmo se posta em antítese ao ateísmo (q.v.), o qual, historicamente, se manifesta, principalmente, como movimento de oposição às formas teístas. Na sua forma típica, o ateísmo é a negação radical da existência de qualquer ser considerado como sendo uma divindade; diferindo, assim, do agnosticismo, o qual afirma, apenas, que não existe evidência para sustentar uma crença teísta. Conquanto seja etimologicamente relacionado ao deísmo, o teísmo difere radicalmente deste em que afirma que Deus não somente sustenta ou mantém o cosmos, assim como, também, é participante ativo de todos os seus eventos. Diferente, também, do henoteísmo, o qual aceita a existência de muitas divindades, mas que se especializa no culto de apenas uma, o teísmo insiste em que a definição correta de “Deus” implica um absoluto, o que descarta a pluralidade de outros deuses.
O teísmo se posta, também, como um desafio ao politeísmo, com a mesma base de definição e consistência lógica. Ele se opõe ao politeísmo ao insistir que, a cada multiplicação de supostas divindades, as distinções entre “Deus e o mundo” são ofuscadas, e as atividades divinas dentro e sobre o mundo empírico diminuem, sendo, até mesmo, ameaçadas. Os pensadores teístas reconhecem, é claro, as tendências teístas em alguns sistemas não-cristãos, especialmente, no hinduísmo advaita e partes da Bhagavad Gita, e em algumas formas populares do Budismo.
O teísmo rejeita qualquer dualismo, vendo todas as coisas como, em última instância, tendo sua origem num único Ser. Crê que o universo empírico é distinto de Deus, não tendo sua origem num elemento ou fator precondicionador (como propunham Platão e Jakob Boehme), mas no ato criativo e livre de Deus. É artigo de fé que Deus, em algum ponto, projetou a existência daquilo que antes não existia, dando-lhe tanto existência quanto estrutura.
O teísmo contemporâneo não tem uma teoria particular da natureza interior da realidade do mundo, mas não é adverso à posição de que a matéria seja uma configuração da energia. Os teístas, em geral, poderiam conviver confortavelmente com a idéia de que no início primal das coisas, Deus teria usado sua capacidade criativa em termos do “aprisionamento” da energia de tal forma que ela se tornasse a base material para o universo físico.
Contra o panteísmo (q.v.), o teísmo insiste que o cosmos é, em sua essência, distinto de Deus, e que não é, de forma alguma, apenas uma emanação ou externalização de seu ser nem sua experiência interior. Sua crítica ao panteísmo se concentra na proposição de que o panteísmo procura, no cosmos e na sua regularidade, um substituto para a divindade perdida nas teorias científicas. Nessa busca, o panteísmo se descartou da divindade, identificando-a com o próprio mundo.
O teísmo cristão repousa sobre a revelação positiva e verdadeira que Deus faz de si mesmo, e implica sua intervenção verdadeira e soberana do universo. Isso não é produto da revelação natural, mas da auto-revelação de Deus. Não depende de qualquer sentido maior requerido pelas chamadas “provas” da existência de Deus. Reconhecendo que os argumentos tradicionais são apenas argumentos, os teístas concordam que estes residem em compromissos com a realidade, os quais são, hoje, menos persuasivos do que antigamente.
Assim, o teísmo encontra seu cerne na crença de um ser pessoal, autoconsciente e auto-suficiente, que está “acima” do mundo e “fora” do mundo. Sendo totalmente livre, Deus une a capacidade soberana ao amor santo. Tendo chamado à existência o universo empírico, é ele quem sustenta e reina sobre o universo. Tendo criado o homem à sua imagem e semelhança, ele ordenou requisitos morais que permanecem válidos para o homem a despeito da sua Queda. Para o homem em sua condição caída, Deus estende a mão em amor salvífico, enviando seu Filho como redentor.
No teísmo cristão, a ética é derivada dos padrões e requerimentos revelados de Deus. Assim, a ética surge da premissa básica do teísmo, e não o contrário, como pretende o sistema kantiano. O teísmo cristão é totalmente incompatível com o relativismo ético. Ele destaca que os valores morais não são apenas produtos humanos, quer por preferência individual quer por derivação social. Deve ir além da boa vontade (ou das intenções corretas) como o bem absoluto. O critério para o bem moral reside na vontade divina, e é condicionado por sua perfeição absoluta e completa santidade.
A Bíblia em nenhum lugar tenta provar a existência de Deus, que simplesmente assume. Deus é revelado como um ser que é totalmente diferente de qualquer outra coisa no universo, que é algo que ele criou fora de si mesmo. Deus não está limitado pelas restrições do tempo ou espaço, mas habita além e à parte deles.
Para Deus, “ser” e “existência” são sinônimos. O Deus que se revela para nós no tempo e no espaço é o mesmo Deus que habita além deles.
A existência de Deus é frequentemente defendida por argumentos retirados da lógica e da experiência. As chamadas provas para a existência de Deus dependem de analogias extraídas da ordem criada, de modo que Deus é definido como o maior ser que pode existir, como o árbitro do que constitui a justiça e a beleza, e como princípio que confere significado e propósito à ordem criada. A mente humana não pode realmente “provar” a existência de Deus, porque Deus supera tudo o que podemos imaginar ou conceber (ele é, formalmente falando, “incompreensível”). Hoje em dia, a maioria dos teístas prefere dizer que as provas tradicionais produzem um grau de probabilidade que torna mais plausível e mais racional acreditar na existência de Deus do que negá-la
Existem quatro abordagens principais para demonstrar que Deus existe:
Demonstração a posteriori: inferir, a partir das realidades observadas, a existência de uma causa não observada dessas realidades (inferir a causa a partir da observação de algum efeito). Demonstração a priori: inferir da ideia de Deus, que Deus existe. Argumentos Reductio Ad Absurdum: inferir a existência de Deus ao argumentar que se Deus não existisse, então certas outras coisas, como razão, arte, lógica, consciência, apreciação da beleza, o reconhecimento do mal, também não poderiam existir. Argumento para a melhor explicação: fornecendo vários argumentos que não demonstram que Deus existe, mas que levam alguém a crer que é mais provável do que não que Deus exista.
A grande maioria dos argumentos que demonstram que Deus existe são argumentos a posteriori. Isso não deveria ser surpreendente, já que os teólogos cristãos tradicionalmente entenderam as Escrituras como ensinando que o universo observável revela a existência de seu Criador. A passagem bíblica mais importante sobre este assunto é Romanos 1:19-20, onde Paulo afirma que “porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis.” A interpretação tradicional desses versículos compreende Paulo estar dizendo que todos os humanos são culpados por rejeitar aquelas verdades sobre Deus que podem ser conhecidas por meio da observação racional da criação (argumentos a posteriori). Outras passagens que têm sido tradicionalmente interpretadas como ensinando a mesma verdade incluem o Salmo 19:1-5, Atos 14:16-17, e Atos 17:26-27.
Exemplos da primeira abordagem (demonstração a posteriori) incluem os cinco “caminhos” de Tomás de Aquino, várias formas do argumento cosmológico, o Argumento Kalam Cosmológico, o argumento da moralidade objetiva, o argumento da existência da verdade objetiva de Augustinho, e, entre outros, o argumento do projeto ou ordem (que deve ser distinguido do argumento teleológico de Aquino).
Nos cinco aspectos, Tomás de Aquino começa com observações sobre a realidade - as coisas mudam; observamos séries de causalidade eficiente; observamos seres contingentes; há gradações de bondade, verdade e justiça; e observamos que as coisas tendem naturalmente a um fim - e infere, a partir dessas observações, a existência do que todos chamam de “Deus”. Deus é, então, o motor imóvel; a primeira causa eficiente não causada; um ser necessário; a bondade, a verdade, e a justiça final; e um ser inteligente que direciona tudo para o seu telos ou fim natural.
O argumento cosmológico de Kalam, articulado primeiramente por filósofos muçulmanos e agora associado a William Lane Craig, afirma que (1) qualquer coisa que comece a existir tem uma causa diferente de si mesma; (2) o universo começou a existir; portanto, (3) o universo tem uma causa diferente de si mesmo.
O tipo mais popular de demonstração a posteriori (que pode ser encontrada nos escritos de quase todos os teólogos patrísticos, medievais e da Reforma, encontra precedência no sermão de Paulo em Atos 14:15-17, e ainda é usado hoje) é o argumento de projeto ou ordem. Este argumento afirma que: (1) O universo parece ser ordenado ou projetado; (2) se algo é ordenado ou projetado, então é feito assim por um projetista que é diferente da coisa ordenada ou projetada; portanto, (3) o universo é ordenado ou projetado por um projetista que é diferente do universo. Francis Turretin observa que a aparência superficial da desordem não refuta esse argumento.
O principal exemplo da segunda abordagem, uma demonstração a priori, é o argumento ontológico, como encontrado em Anselmo, René Descartes, e algumas obras de Alvin Plantinga. O argumento ontológico começa definindo Deus como um ser do qual nada maior pode ser concebido. Anselmo continua propondo que a existência real é maior do que existir apenas na mente. É possível conceber Deus como existindo independentemente dos intelectos criados, portanto, Deus existe de fato independente das mentes criadas. Este argumento foi criticado por muitos pensadores importantes, mas ainda é considerado útil em alguns círculos.
Alguns exemplos da terceira abordagem, inferências reductio ad absurdum, incluem o argumento da razão (G. K. Chesterton, C. S. Lewis, Victor Reppert), e o argumento da consciência (John Henry Newman).
A quarta abordagem (argumentos para a causa mais provável) inclui o argumento de C. S. Lewis da alegria ou da beleza, e o argumento de Francis Turretin da experiência religiosa comum da humanidade.