Emaús e Jerusalém (Lc 25.35-40)

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Introdução:

A série de eventos dos quais esta narrativa faz parte começa com a visita das mulheres ao túmulo (Lc 24.1), depois a ida também de Pedro ao túmulo, passando pela caminhada dos dois discípulos para Emaús, até a manifestação do Ressuscitado à igreja reunida em Jerusalém, já à noite. A preocupação dos evangelistas, não é propriamente descrever eventos, mas, através da sua narrativa, responder às perguntas de seus leitores. E a principal pergunta respondida por este trecho, pode ser reconstruída: “tendo Jesus de Nazaré ressuscitado mesmo, onde e como encontrar-se com ele?”.
Os evangelhos que narram as manifestações do Ressuscitado de mado mais elaborada são os dois escritos por último, Lucas e João. Lucas, é quem responde com mais precisão: o Ressuscitado pode ser encontrado em qualquer situação, espaço e época: ELE está na estrada, caminhando com os peregrinos, está à mesa quando o alimento é partilhado, está no meio da igreja reunida e está nas pessoas necessitadas, famintas e feridas, com chagas expostas para serem cuidadas. Porém, para reconhecê-lo, é necessário compreender as Escrituras e ter abertos os olhos, a mente e o coração.
Feitas estas considerações contextuais, olhemos para o texto:

“Então os dois contaram o que lhes tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido o Senhor no partir do pão” (v.35) .

Ao recordar que o Ressuscitado foi reconhecido ao partir o pão, o evangelista ensina que ELE está no cotidiano das pessoas, ELE é alguém de casa, ELE faz parte da família, ELE é acessível. As visões podem se perdem com o tempo; os corações esfriarem; mas a PALAVRA DE DEUS põe fogo no coração e a COMUNHÃO faz-nos reconhecer JESUS. O evangelista que dizer: Só é possível encontro autêntico com o Ressuscitado onde há partilha e solidariedade (At 2.42).

Falavam eles ainda estas coisas quando Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: Que a paz seja com vocês!” (v.36) .

Falar de Jesus é torná-lo presente na comunidade;é partilhar a experiência vivida com ele. ELE se manifestou aos demais quando os dois contavam o que tinham vivido com ele. Logo, a Igreja reunida, se torna o lugar privilegiado de encontro com o Ressuscitado, sobretudo quando é dele que se fala. E no interior da comunidade, o lugar dele é o centro, por isso, ele apareceu “no meio” deles. Com essa informação, o evangelista está advertindo: a Igreja não pode ter outro ponto de referência senão o Ressuscitado; só ele pode ser o centro. Tê-lo no centro, portanto, significa aderir ao seu senhorio e empenhar-se por seu Reino. Tendo o Ressuscitado presente em seu meio, a Igreja passa a gozar dos seus dons, do quais o primeiro é a paz. O Ressuscitado diz «paz esteja convosco»
Não se trata de uma simples saudação, mas de uma força reconciliadora e revigorante. A saudação hebraica “shalom”, cujo significado é paz, aponta para um bem almejado, mas ainda não realizado, enquanto a saudação do Ressuscitado comporta um dom já realizado. A paz era almejada como um bem messiânico futuro, pelos judeus. Para tanto, esperava-se o Messias. De fato, a paz veio por meio do Messias, mas um messias sofredor, crucificado. Trata-se de uma paz, que vence o medo. Por isso, era tão necessária, pois apesar das evidências da presença do Ressuscitado, o medo continuava entre os discípulos, e isso os impedia de reconhecê-lo, como denuncia o evangelista: «Eles ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma» v. 37). O medo, além de acuar-nos, distorce a imagem do Ressuscitado no meio da comunidade. O Ressuscitado pode ser confundido quando não se absorve a sua paz e nem compreende as Escrituras.

“...por que tendes dúvidas no coração? Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo! Tocai em mim e vede!”(vs.38 e 39, 40) .

O evangelista insiste em recordar as marcas da paixão – os sinais da cruz – para acentuar que Jesus ressuscitou mesmo. O Ressuscitado é uma pessoa real com quem a igreja deve relacionar-se. Mãos e pés são sinais também da sua identidade e da sua missão: mãos que serviram, que curaram feridas, pés que percorreram tantos caminhos levando amor, justiça e perdão. Para a obra de Lucas, particularmente, os pés possuem um significado muito especial. Ora, Lucas é o evangelista do caminho e sua obra toda aponta para a missão – Evangelho e Atos dos Apóstolos. Na cena paralela a essa no Evangelho de João, Jesus mostra as mãos e o lado (Jo 20.20,27). Em Lucas substitui-se o lado pelos pés porque os pés são altamente significativos para a sua teologia da missão.
O convite que Jesus faz para os discípulos tocar-lhe é totalmente comprometedor. Não foi feito apenas a testemunhas privilegiadas do passado; é feito aos cristãos e cristãs de todos os tempos: não existe fé verdadeira no Ressuscitado sem experiência, sem relação, sem toque.

“Mas eles ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos(v.41).

O evangelista alerta, assim como o medo, a euforia pode impedir o autêntico encontro com o Ressuscitado. Em Lucas, a alegria é um traço distintivo da própria comunidade cristã, por exemplo: O anúncio do anjo a Maria, foi introduzido pelo convite à alegria (Lc 1.28); A notícia aos pastores sobre o nascimento de Jesus foi anunciada como uma “grande alegria” (Lc 2.10). Porém, a euforia desmedida pode tornar invisíveis os problemas, as dores e as feridas presentes no dia-a-dia da Igreja. É preciso, buscar um equilíbrio de modo que o Ressuscitado não passe despercebido com sua identidade, ou seja, com suas feridas de crucificado. Diante disso, o próprio Ressuscitado dá mais um passo para ser encontrado e reconhecido como vivente: «Então Jesus disse: “Tendes alguma coisa para comer?”» (v. 41b).
A refeição compartilhada é o sinal mais concreto de comunhão. Com essa pergunta, Jesus quer estreitar cada vez mais os laços de fraternidade. Em resposta ao pedido de Jesus, os discípulos «deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles» (vv. 42-43). Ora, comer, é uma das demonstrações mais consistentes de alguém estar vivo. Lucas evidencia que o Ressuscitado é uma pessoa viva e concreta e, com isso, ele ainda exalta a solidariedade como uma das marcas da Igreja de Jesus.
Qual o sentido do peixe neste episódio. Como era um alimento comum na época, o evangelista o recordou para diferenciar do pão. Quando se fala de pão, tende-se a espiritualizá-lo. O peixe, não dá tanta margem para um discurso espiritualista, aponta sempre para um alimento concreto, recorda a necessidade da comunhão concreta na vida da Igreja.
No encontro com o Ressuscitado não podem faltar refeição e catequese, partilha do pão e da palavra; esses elementos são imprescindíveis na comunidade cristã. Por isso, são os componentes básicos da celebração eucarística que, no entanto, deve ultrapassar os limites do rito e tornar-se vida, prática constante na comunidade. Nesse episódio, há uma inversão na ordem: enquanto na cena dos “Discípulos de Emaús” a catequese precedeu à partilha do pão, aqui acontece o contrário, ou seja, a catequese vem depois da refeição. Assim, podemos concluir que o evangelista não preconiza um rito, mas ensina à comunidade quais são os seus elementos essenciais: a partilha do pão e da Palavra. Por isso, tendo já comido, Jesus começou o ensinamento: «São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos» (v. 44). A interpretação e compreensão adequadas das Escrituras são essenciais para a vida da comunidade. Essa é uma das principais preocupações de Lucas, ao longo de sua dupla obra – Evangelho e Atos dos Apóstolos. Jesus é o intérprete e princípio interpretativo de toda a Escritura, ou seja, da Bíblia inteira. E interpretação autêntica se dá num contexto de partilha, como ao redor da mesa de refeição.
A Lucas, diferente de Mateus, por exemplo, não interessa colher citações avulsas, mas a Escritura em seu conjunto: «Lei, Profetas e Salmos» (v. 44); tudo isso aponta para Jesus e deve ser lido à luz da sua vida, morte e ressurreição. Inclusive, nessa citação única no Novo Testamento, Lucas rompe o tradicional binômio “Lei e Profetas”, como compêndio do Antigo Testamento, e inclui também os Salmos, como síntese de todos os demais escritos que não fazem parte do Pentateuco nem dos livros proféticos. É uma das grandes novidades deste episódio que, certamente, reflete a consolidação do uso litúrgico do Antigo Testamento nas comunidades lucanas do final do primeiro século. Desde o princípio, a Palavra de Deus revelada nas Escrituras aponta para o triunfo da vida e a derrocada de todos os projetos de morte. A ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa trajetória. Sem a Palavra, a comunidade perde o rumo da história. Dos Discípulos de Emaús o evangelista diz que se abriram os olhos (24,31); dos Onze e demais reunidos com eles, diz que «Jesus abriu a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras» (v. 45). Essa é também uma exigência para as comunidades de todos os tempos: as Escrituras, se bem compreendidas, abre mentes, olhos e horizontes, fazem parte do processo de conversão contínuo pelo qual deve passar toda comunidade cristã. Por outro lado, sem abertura de mente, pode tornar-se também instrumento de morte.
Um dos temas mais caros a Lucas, a universalidade da salvação, é evidenciado pelo próprio Ressuscitado: «no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém» (v. 46). Não apenas Israel, mas todos os povos são destinatários da paz e do amor do Ressuscitado. A reconciliação da humanidade com Deus é acessível a todas as pessoas, de todos os lugares e em todos os tempos; ninguém pode ser excluído dessa oferta de amor. Essa dinâmica começa por Jerusalém, a sede do poder religioso e, por isso, a primeira necessitada de conversão; a cidade que mata profetas (Lc 13,34). No Antigo Testamento, a universalidade da salvação previa um movimento contrário: eram as nações quem seriam atraídas a Jerusalém (Is 60; Zc 8,22); Jesus inverte essa ordem. Surge, portanto, um novo tempo, uma nova etapa na história que começa por Jerusalém, mas não por privilégio, e sim por necessidade. Quanta reviravolta na história: a terra dos considerados justos é a mais necessitada de perdão! Foi Jerusalém com suas forças de poder que matou Jesus; o mal estava radicado lá e amparado pela religião e o império. São as pessoas religiosas as primeiras necessitadas de conversão.
Dos discípulos e da comunidade cristã de todos os tempos, Jesus pede apenas uma coisa: «Vós sereis testemunhas de tudo isso» (v. 48). Em Lucas, Jesus não confere uma doutrina nem uma regra; não envia os discípulos como pregadores e batizadores, como em Mateus, mas como testemunhas, o que é muito mais comprometedor e exigente. Ser testemunha implica a coragem de dar a vida. Somos, portanto, hoje e sempre, interpelados pelo evangelista Lucas a fazer um esforço constante para reconhecer o Ressuscitado em nosso meio, com disponibilidade para a partilha e mente aberta para o conhecimento das Escrituras.
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