A LUTA DE JACÓ COM DEUS
Comentários Bíblicos
32:22–32 Após enviar sua família para cruzar o ribeiro de Jaboque (“ele esvaziará”), Jacó passou a noite sozinho em Peniel e teve uma das maiores experiências de sua vida. Conforme o texto, lutava com ele um homem. Esse homem era um anjo (Os 12:4), o Anjo de Jeová, ou seja, o próprio Senhor. Durante a luta, o Senhor deslocou a junta da coxa de Jacó, deixando-o manco para o resto da vida. Embora tenha perdido a luta física, Jacó ganhou uma notável vitória espiritual: aprendeu a triunfar sobre a derrota e a permanecer firme na fraqueza. Reconheceu sua fraqueza e falta de capacidade e confessou que seu nome era, de fato, Jacó, um suplantador, um “vigarista”. Nesse momento, Deus mudou o nome de Jacó para Israel (conforme várias traduções: “Deus governa”, “aquele que luta com Deus” ou “príncipe de Deus”). Jacó chamou aquele lugar Peniel (“a face de Deus”), pois percebeu que vira o próprio Deus, face a face. Pfeiffer nos lembra que o versículo 32 ainda é praticado entre os judeus atualmente: “Os judeus ortodoxos removem o nervo ciático, ou a veia da coxa, do animal abatido antes que essa parte seja preparada para o consumo”.
2. A vitória pessoal da fé sobre o engano na vida de Jacó acontece quando, em sua luta contra o mensageiro divino, ele é forçado à plena dependência de Deus (32.22–32).
● Sozinho junto ao ribeiro Jaboque, Jacó enfrenta um inimigo inesperado que luta contra ele e o deixa aleijado, ao deslocar seu quadril (32.22–25).
● O significado da luta de Jacó contra o mensageiro divino é a mudança de seu caráter, de enganador em herói, cuja nova marca será a dependência de Deus (32.26–29).
● O reconhecimento de que aquele que o atacara era Deus e que tinha escapado milagrosamente leva Jacó/Israel a dar ao local o novo nome de Peniel (32.30, 31).
● A associação religiosa do incidente é oferecida pelo autor (32.32).
Jacó luta com um Anjo e recebe um novo nome
22 Naquela noite, levantou-se, tomou suas duas mulheres, suas duas servas e seus onze filhos e passou o vau de Jaboque. 23 Tomou-os e fê-los passar o ribeiro, e fez passar tudo o que tinha. 24 Jacó ficou só; e lutava com ele um homem, até o romper do dia. 25 Quando este viu que não podia com ele, tocou-lhe a juntura da coxa; e deslocou-se a juntura da coxa de Jacó, enquanto lutava com o homem. 26 Disse este: Deixa-me ir, porque vem rompendo o dia. Respondeu Jacó: Não te deixarei ir, se me não abençoares. 27 Perguntou-lhe, pois: Qual é o teu nome? Respondeu: Jacó. 28 Então, disse: Não te chamarás mais Jacó, mas Israel; porque tens perseverado com Deus e com os homens e prevaleceste. 29 Jacó perguntou-lhe: Dize-me o teu nome. Respondeu ele: Por que é que perguntas pelo meu nome? E ali o abençoou. 30 Chamou Jacó ao lugar Peniel, pois disse: Tenho visto a Deus face a face, e a minha vida foi preservada. 31 Nasceu-lhe o sol, quando ele passava a Peniel, e manquejava da sua coxa. 32 Por isso, os filhos de Israel não comem, até o dia de hoje, o nervo do quadril, que está sobre a juntura da coxa, porque o homem tocou a juntura da coxa de Jacó no nervo do quadril.
Luta enigmática de Jacó contra um homem (32.22–32)
A cena se dá do lado oposto do rio Jordão, nas imediações do rio Jaboque. Jacó se encontrava sozinho e, como que do nada, o texto assinala: Veio então um homem, que lutou com ele até o amanhecer (32.24). Não se sabe quem era o homem, por que lutava com Jacó, nem que tipo de luta era essa. O verbo que se traduz por lutou (ye’abeq) tem som parecido com o de Jaboque (yaboq) e Jacó (ya‘aqob) em hebraico. Esse jogo de palavras é conhecido em retórica como paronomásia. Não sabemos quanto durou essa luta, mas o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, feriu-o na articulação da coxa com o quadril e a deslocou. Ainda assim, Jacó não o soltou, e o homem disse: Deixe-me ir, pois está amanhecendo! (32.26). Jacó lhe respondeu: Não o deixarei ir enquanto não me abençoar (32.26). O homem lhe perguntou seu nome e, ao ouvir a resposta, lhe disse que ele já não se chamaria Jacó, mas Israel, pois lutou com Deus e com os homens e venceu (32.28). Jacó não comentou coisa alguma sobre essa questão, mas perguntou ao homem como se chamava. O homem não respondeu, mas lhe perguntou o motivo da indagação.
O homem abençoou Jacó, mas primeiro mudou seu nome: a partir de então, o patriarca se chamaria Israel. A palavra “Israel” provém da união do verbo saráh (“brigar”, lutar”), que, conjugado na terceira pessoa do singular e unido a ’el (Deus), forma yisra’el: “aquele que luta com Deus”. Resumindo, o nome Israel está ligado à luta entre Jacó e “um homem” durante a madrugada. Esse foi um encontro propiciado por Deus: não ocorreu por iniciativa de Jacó. O lugar onde lutaram também recebeu um novo nome: Peniel, que significa “face de Deus”. Jacó havia visto Deus face a face. Disso tudo, deduzimos que o “homem”, com efeito, era o anjo de Deus (ver Os 12.4).
32:22–32 As Jacob anticipates his brother’s arrival, God appears as a man (see Gen 32:24 and note) and wrestles with Jacob. Jacob refuses to relent until God blesses him (v. 26). After God blesses him, Jacob renames the place to reflect his encounter with God (vv. 29–30). This story explains the origin of the name Israel, as God changes Jacob’s name to Israel (see v. 28 and note).
Pleading for Protection J:DGP
Jacob’s Struggle for Blessing (32:22–32) NAC:G11:2750:26
32:22 his eleven children Jacob’s daughter Dinah is not mentioned for literary reasons (30:21). Only the main characters in the narratives that follow are noted—particularly the sons of Jacob, who are the eponymous (or name-giving) ancestors of the 12 tribes of Israel, once Jacob’s name is changed (vv. 27–28).
32:24 a man This man is a divine being in physical, bodily form (vv. 28, 30; compare ch. 18). In Hos 12:3–4, the man who visits Jacob is called an angel, but then it is said that Jacob met God at Bethel—this is because the identity of the angel of God (or angel of Yahweh) and Yahweh Himself are sometimes blurred. See note on Gen 21:17.
wrestled The Hebrew word used here, ‘avaq, sounds like Jacob’s name (ya’aqob in Hebrew). In addition to being wordplay on Jacob’s name, there is wordplay here with the place of the scene, the Jabbok (yabboq in Hebrew; v. 22). Compare note on 25:26; note on 27:36; note on v. 28.
32:25 he could not prevail against him Jacob is quite strong, as he was able to roll away the stone at the well when he arrived in Haran (29:10).
32:26 you bless me Jacob’s request for a blessing suggests that he recognizes that his combatant is neither an ordinary man nor out to destroy him. Though not specifically affirmed in the text, there are indications that the man was Yahweh embodied (compare note on v. 24).
32:28 name shall no longer be called Jacob, but Israel Jacob’s name must be changed due to its association with his misdeeds (see note on Gen 25:26; note on 27:36). Here, the reasoning for the name Israel (yisra'el, in Hebrew) is the verbal phrase “you have striven with (or struggled with) God.” This suggests the name derives from the Hebrew verb sarah, meaning “to struggle,” “to strive,” or “to fight.” The name yisra’el itself could mean “God will struggle,” “May God struggle” or “God fights,” suggesting that the meaning given here is wordplay.
The Name Israel LRC:G1250
The Name Israel Genesis (JPS)
Israelites DOT: P
Symbolic Names of People in Hebrew Table
32:29 Why do you ask this—for my name Jacob may make this request because he wishes to honor the one he has wrestled with (compare Judg 13:17–18), or because of the ancient Near Eastern belief that knowing a spiritual being’s name gave a person the ability to evoke the power of that being (compare Exod 20:7; Luke 10:17). Similarly, the man asks Jacob his name before blessing him—indicating that the usage of a name was necessary for a blessing to be given.
32:30 Peniel This name in Hebrew (penu'el) means “face of God”—hence the explanation that follows. The place Peniel is mentioned elsewhere in the OT (e.g., Judg 8:8–9).
I have seen God face to face The word used for “God” here is elohim. The word can refer to God Himself or, more generally, to a divine being.
32:31 Penuel See note on v. 30.
32:32 the sinew of the sciatic nerve Jewish tradition associates this with the sciatic nerve. In refraining from eating this part of an animal, Israelites were reminded of Jacob’s name change and God’s blessing on Israel. This tradition is only noted here in the OT.
B. Isaque (25:19–26:35)
1. A família de Isaque (25:19–34)
25:19–26 Rebeca permaneceu estéril durante quase vinte anos de casamento, mas concebeu após Isaque orar ao Senhor. Ficou admirada com a luta dos filhos em seu ventre até que consultou Deus e descobriu que seus filhos se tornariam chefes de duas nações rivais (Israel e Edom). O primogênito foi chamado de Esaú (“peludo”) e o segundo, de Jacó (“enganador”). Até mesmo durante o parto Jacó tentou tirar vantagem de seu irmão Esaú, segurando-o pelo calcanhar! Isaque tinha sessenta anos de idade quando os gêmeos nasceram.
25:27–28 Conforme cresceram os meninos, Esaú se tornou perito caçador e homem do campo, enquanto Jacó era pacato e habitava em tendas. Isaque amava mais a Esaú; Rebeca, porém, amava mais a Jacó. Talvez Jacó tenha crescido como um “filhinho da mamãe”.
25:29–34 Como primogênito, Esaú tinha direito à porção dupla dos bens de seu pai, isto é, deveria receber duas vezes mais herança do que qualquer outro filho. Ele também se tornaria o chefe da tribo ou da família. Esses privilégios estavam relacionados ao “direito de primogenitura”, que, no caso de Esaú, ainda incluiria a honra de se tornar ancestral do Messias. Certo dia, porém, Esaú retornou de uma caçada no campo e viu Jacó preparando um cozinhado vermelho. Esaú implorou tanto por aquele cozinhado que acabou ganhando o apelido de “vermelho” (Edom). O apelido pegou de tal forma que seus descendentes passaram a ser conhecidos como edomitas. Jacó ofereceu seu cozinhado em troca do direito de primogenitura, ao que Esaú, com imensa insensatez, concordou. “Com exceção do fruto proibido, nenhum outro alimento custou tão caro quanto esse cozinhado de lentilhas”. A profecia registrada no versículo 23 se cumpriu parcialmente nos versículos 29–34. Deus não aprovou a atitude de Jacó, porém uma coisa ficou muito clara: Jacó valorizou o direito de primogenitura e o privilégio de participar da linhagem piedosa, enquanto Esaú preferiu satisfazer o apetite da carne em detrimento das bênçãos espirituais.
Em vez de criticar o modo com que Jacó tratou seu irmão, o capítulo encerra enfatizando o desprezo de Esaú por seu direito de primogenitura. Os descendentes de Esaú se tornaram inimigos mortais de Israel. A destruição final dos edomitas foi decretada em Obadias.
2. Isaque e Abimeleque (26)
26:1–6 Isaque reagiu à fome da mesma forma que seu pai o fizera (12 e 20). Enquanto seguia viagem para o sul, o Senhor apareceu a ele em Gerar e o advertiu de não descer ao Egito. Gerar era uma espécie de ponto de parada para quem viajava ao Egito. Deus mandou Isaque permanecer temporariamente em Gerar, porém Isaque ficou ali. Além disso, Deus reafirmou a aliança incondicional que fizera com Abraão.
26:7–17 Devido ao medo, Isaque reagiu da mesma forma que seu pai e fez Rebeca se passar por sua irmã diante dos homens de Gerar. É a triste história da fraqueza do pai refletida no filho. A mentira de Isaque foi descoberta e repreendida; então ele confessou. A confissão conduz à bênção, e Isaque começou a enriquecer em Gerar. Sua prosperidade chegou a tal ponto que Abimeleque, rei de Gerar naquela ocasião, pediu que Isaque fosse embora. Partindo dali, Isaque foi morar no vale de Gerar, não muito longe de onde estava.
26:18–25 Os filisteus entupiram os poços que Abraão havia cavado (ato hostil, a fim de mostrar que os forasteiros não eram bem-vindos). Isaque tornou a abrir os poços e houve briga com os filisteus em Eseque (“contenda”) e Sitna (“inimizade”). Isaque decidiu se mudar para longe daquele povo e dessa vez não houve brigas quando cavou outro poço, de modo que o chamou de Reobote (“lugares amplos” ou “espaço aberto”). Dali Isaque subiu para Berseba, local onde o Senhor voltou a consolá-lo com promessa de bênçãos e onde Isaque construiu um altar (adoração), armou a sua tenda (habitação) e abriu um poço (refrigério). Assim como a água é um elemento essencial no reino físico, igualmente é a palavra de Deus no mundo espiritual.
26:26–33 Com relação aos versículos 26–31, Williams explica: “Os homens de Gerar só vieram buscar a bênção de Deus com Isaque depois que o patriarca se separou definitivamente deles […]. Os cristãos auxiliam melhor o mundo quando vivem separados dele…”.
Os servos de Isaque acharam água no mesmo dia em que Isaque fez um pacto de não-agressão com Abimeleque. Abraão havia chamado o lugar Berseba, em virtude de ter celebrado uma aliança com seu contemporâneo Abimeleque (21:31). Agora, em circunstâncias semelhantes, Isaque nomeia o lugar de Seba ou Berseba.
26:34–35 Judite e Basemate, duas mulheres pagãs que Esaú tomara por esposas, causaram profunda amargura em Isaque e Rebeca, como vem ocorrendo com muitos outros jugos desiguais desde esse dia. Esse fato também demonstrou com maior clareza a impossibilidade de Esaú desfrutar seu direito de primogenitura.
C. Jacó (27:1–36:43)
1. Jacó engana Esaú (27)
27:1–22 Passaram-se cerca de 37 anos desde os acontecimentos registrados no capítulo anterior. Isaque estava então com 137 anos, envelhecido, cego e imaginando-se próximo da morte, possivelmente porque seu irmão Ismael também morrera com essa idade (Gn 25:17). Isaque, porém, ainda teria mais 43 anos de vida pela frente.
Certo dia, Isaque ficou com vontade de comer carne de caça e pediu que Esaú lhe preparasse algo saboroso, prometendo recompensar o filho com uma bênção. Rebeca ouviu a conversa e armou um plano para enganar seu marido e conseguir a bênção para Jacó, seu filho amado. A astúcia era desnecessária, porque Deus havia prometido que a bênção seria de Jacó (25:23b). Rebeca preparou uma saborosa carne de cabrito, depois cobriu as mãos e o pescoço do filho com pele do animal, para imitar o cabeludo Esaú. Isaque cometeu o erro de confiar totalmente nos sentidos: as mãos de Jacó se pareciam com as mãos de Esaú. Não devemos confiar em sentimentos e emoções no que se refere a assuntos espirituais. Como observou Martinho Lutero:
Sentimentos vêm e vão,
os sentimentos podem enganar;
Nossa segurança está na Palavra de Deus;
em nada mais vale a pena acreditar.
Embora Rebeca tenha planejado tudo, Jacó se tornou igualmente culpado ao executar o plano. Jacó colheu o que plantou. Como observou C. H. Mackintosh:
… quando examinamos a vida de Jacó após a forma ilícita em que obteve as bênçãos do pai, percebemos que Jacó desfrutou pouco as felicidades da vida. Seu irmão procurou matá-lo, e por isso teve de fugir da casa do pai; o tio Labão o enganou […]. Foi obrigado a se afastar de Labão de maneira clandestina […]. Teve de conviver com o mau caráter do filho Rúben […] a traição e a crueldade de Simeão e Levi para com os siquemitas; depois precisou suportar a dor da perda da amada esposa […] o fim inesperado de José; e para completar tudo isso, por causa da fome, foi forçado a descer ao Egito, uma terra estranha, onde morreu…
27:23–29 Isaque abençoou Jacó com prosperidade, domínio e proteção. É interessante observar que as bênçãos pronunciadas pelos patriarcas se tornavam realidade. Isso porque, na verdade, constituíam profecias de homens inspirados por Deus.
27:30–40 Quando Esaú retornou e soube da fraude, ainda tentou, aos prantos, receber a bênção. No entanto, esta havia sido pronunciada a Jacó, de modo que Isaque não poderia voltar atrás (Hb 12:16–17). Isaque, porém, ainda tinha uma palavra para proferir a Esaú: “Sua habitação será longe das terras férteis, distante do orvalho que desce do alto céu. Você viverá por sua espada e servirá a seu irmão. Mas quando você não suportar mais, arrancará do pescoço o jugo” (v. 39–40, NVI).
O texto sugere que os edomitas viveriam em lugares desertos, seriam guerreiros e vassalos dos israelitas, porém um dia se rebelariam contra esse domínio. Essa última profecia se tornou realidade no reinado de Jeorão, rei de Judá (2Rs 8:20–22).
27:41–46 Esaú planejou matar o irmão, Jacó, assim que Isaque morresse e terminasse o período de luto. De alguma forma, Rebeca tomou conhecimento desse plano e pediu a Jacó que fugisse para a casa do irmão dela, Labão, em Harã. Rebeca temia perder os dois filhos no mesmo dia: Jacó, assassinado pelo irmão, e Esaú, que se tornaria fugitivo ou acabaria morto por vingança ao sangue do irmão. Contudo, para justificar a partida de Jacó perante Isaque, Rebeca disse que não gostaria de ver Jacó se casando com uma mulher heteia, como fizera Esaú. Jacó esperava retornar em breve para casa, mas isso só aconteceu vinte anos depois. Ao retornar, encontrou Isaque ainda vivo, mas Rebeca havia falecido.
2. A fuga de Jacó para Harã (28)
28:1–9 Isaque chamou a Jacó e lhe deu sua bênção. Em seguida, enviou-o a Padã-Arã, região situada na Mesopotâmia, para encontrar esposa para si entre os parentes de sua mãe, e não entre os cananeus. Esaú observava tudo isso e teve uma ideia para tentar receber uma bênção do pai: casou-se com a filha de Ismael. É a velha ilusão humana de que a prática do mal (neste caso, multiplicar esposas) pode resultar em bem.
28:10–19 Ao chegar a Betel, Jacó teve um sonho maravilhoso, no qual viu uma escada ligando a terra ao céu. Essa imagem aponta para “a existência de uma comunhão real, íntima e ininterrupta entre o céu e a terra, especialmente entre Deus em sua glória e o homem em sua solidão”. Em seu encontro com Natanael, o Senhor Jesus aparentemente fez referência a esse episódio e o relacionou a sua segunda vinda e ao reino milenar (Jo 1:51). Entretanto, os cristãos podem desfrutar comunhão com o Senhor agora mesmo. Foi nesse momento da vida de Jacó, sozinho, cheio de dúvidas quanto ao futuro e corroído de remorso pelos erros do passado, que Deus celebrou com ele uma aliança graciosa, da mesma forma que fizera com Abraão e Isaque. Observe as coisas que Deus prometeu a Jacó: companhia, “Eis que eu estou contigo”; segurança, “e te guardarei por onde quer que fores”; orientação, “e te farei voltar a esta terra”; e garantia pessoal, “porque te não desampararei, até cumprir eu aquilo que te hei referido”. Ciente de que havia se encontrado com Deus naquele lugar, Jacó alterou o nome do lugar de Luz (“separação”) para Betel (“casa de Deus”).
“Antes do encontro em Betel, onde foi ‘supreendido pela alegria’ e ‘traspassado de admiração’, Jacó não tivera nenhum contato pessoal com Deus. Todo o conhecimento que tinha sobre Deus provinha de terceiros” (Daily Notes of the Scripture Union [Notas diárias da união bíblica]).
28:20–22 Depois de acordar, parece que Jacó começou a barganhar com Deus. Na verdade, Jacó barganhou por menos que o Senhor lhe havia prometido (v. 14). Sua fé ainda não era forte o suficiente para levar Deus a sério, de modo que Jacó condicionou o pagamento do dízimo ao cumprimento das promessas do Senhor. Outra interpretação, porém, considera que o “se” é simplesmente parte indispensável de todos os juramentos hebraicos. Nesse caso, Jacó estava se comprometendo de livre e espontânea vontade a entregar o dízimo de modo incondicional (sobre juramentos hebraicos semelhantes, cf. Nm 21:2; Jz 11:30–31; 1Sm 1:11).
3. Jacó, suas esposas e filhos (29:1–30:24)
29:1–14 Jacó tinha 77 anos quando partiu de Berseba para Harã. Serviu o tio Labão por vinte anos, depois voltou para Canaã onde viveu mais 33 anos e, por fim, passou os últimos dezessete anos de sua vida no Egito. Ao chegar a Padã-Arã, Jacó foi conduzido a um poço no campo onde os pastores da região de Harã cuidavam de seus rebanhos. O Senhor planejou os acontecimentos de tal maneira que Raquel chegasse justamente na hora em que Jacó falava com os pastores. Pastor experiente, Jacó começava a indagar por que os pastores estavam perto do poço em pleno dia, uma vez que ainda havia bastante tempo para alimentar as ovelhas. Os pastores explicaram que não podiam remover a tampa do poço enquanto não chegassem todos os rebanhos. Jacó sentiu uma forte emoção quando viu sua prima Raquel, a mesma reação de Labão quando encontrou o sobrinho Jacó.
29:15–35 Labão concordou em entregar Raquel em casamento a Jacó em troca de sete anos de serviço. Aqueles anos pareceram como poucos dias a Jacó, pelo muito que a amava. É exatamente dessa forma que devemos servir ao Senhor.
Lia não tinha brilho nos olhos e também não era atraente. Raquel, porém, era formosa.
De acordo com o costume da época, a noiva só podia entrar no quarto do noivo na noite de núpcias. Entrava vestida com um véu e, provavelmente, somente depois que o quarto estivesse em total escuridão. Podemos imaginar a ira de Jacó quando descobriu na manhã seguinte que sua esposa era Lia! Labão o enganou, mas se desculpou argumentando que, de acordo com o costume da época, a filha primogênita deveria se casar antes da mais nova. Disse Labão: “Decorrida a semana desta [ou seja, prossiga com o casamento com Lia] dar-te-emos também a outra [Raquel], pelo trabalho de mais sete anos que ainda me servirás”. Ou seja, ao final daquela semana de celebração do casamento com Lia, Jacó recebeu Raquel como esposa e serviu mais sete anos por ela. Jacó semeou engano e agora estava colhendo o que plantara! Quando o Senhor percebeu que Lia era desprezada (i.e, menos amada que Raquel), compensou essa deficiência lhe concedendo filhos. A lei da compensação divina ainda continua valendo nos dias de hoje: pessoas com deficiência em uma área recebem mais do Senhor em outra. Lia reconheceu o auxílio do Senhor, conforme se percebe nos nomes que deu aos filhos (v. 32–33,35). Também de Lia procedem o sacerdócio (Levi), a linhagem real (Judá) e Cristo. Esse capítulo apresenta os primeiros quatro filhos de Jacó. A lista completa segue abaixo:
Filhos de Lia:
Rúben (“veja, um filho!”) (29:32)
Simeão (“audição”) (29:33)
Levi (“unido”) (29:34)
Judá (“louvor”) (29:35)
Issacar (“recompensa”) (30:18)
Zebulom (“habitação”) (30:20)
Filhos de Bila, serva de Raquel:
Dã (“juiz”) (30:6)
Naftali (“luta”) (30:8)
Filhos de Zilpa, serva de Lia:
Gade (“sorte”; “fortuna”) (30:11)
Aser (“feliz”) (30:13)
Filhos de Raquel:
José (“aumentador”) (30:24)
Benjamim (“filho da mão direita”) (35:18)
30:1–13 Desesperada para ter um filho em seu colo, Raquel entregou Bila, sua serva, para servir de esposa ou concubina a Jacó. Ainda que esse tipo de coisa fosse comum naqueles dias, na verdade tratava-se de uma atitude contrária à vontade de Deus. Bila concebeu e deu à luz dois filhos: Dã e Naftali. Não querendo ficar para trás, Lia entregou Zilpa, sua serva, a Jacó, e nasceram mais dois filhos: Gade e Aser.
30:14–24 As mandrágoras que Rúben encontrou eram um fruto parecido com o tomate que, conforme os supersticiosos da época, auxiliava no tratamento da esterilidade feminina. Considerando que Raquel era estéril, não espanta seu enorme desejo de encontrar as tais mandrágoras. Em troca delas, Raquel concordou em deixar Lia viver como esposa de Jacó (parece que Lia, por alguma razão desconhecida, perdera seus privilégios de esposa). Então Lia concebeu mais dois filhos, Issacar e Zebulom, além de uma filha, a quem chamou Diná. Finalmente, Raquel concebeu e deu à luz seu primeiro filho, que recebeu o nome de José (“aumentador”), expressando a fé de que Deus lhe daria outro filho.
4. Jacó engana Labão (30:25–43)
30:25–36 Jacó disse a Labão que desejava voltar para sua terra, Canaã. Seu tio, contudo, insistiu para que ficasse. Labão havia experimentado bênçãos da parte do Senhor por causa da presença de Jacó. Em razão disso, propôs pagar qualquer salário que Jacó estabelecesse caso desejasse ficar. Jacó concordou em continuar a servir Labão caso o tio lhe desse todos os salpicados e malhados entre os bodes e as cabras, e todos os negros entre os cordeiros. Qualquer outro animal que não se enquadrasse nessa situação pertenceria a Labão, que concordou imediatamente, dizendo: “Pois sim! Seja conforme a tua palavra”. Em seguida, Labão separou todos os animais que se enquadravam na descrição de Jacó e pediu a seus filhos que os pastoreassem, sabendo que aqueles animais provavelmente iriam se reproduzir com as características descritas por Jacó. O restante do rebanho foi entregue para Jacó pastorear. Além disso, Labão separou os dois rebanhos por uma distância de três dias de viagem, tornando impossível ao rebanho dos malhados (pastoreado por seus filhos) se misturar e procriar com o rebanho dos que não tinham manchas (pastoreado por Jacó).
30:37–43 Jacó colocava varas verdes em frente ao rebanho, quer fossem malhados quer de cor sólida. Logo nasceram crias listadas, salpicadas e malhadas, que, obviamente, pertenciam a Jacó. Aqui cabe uma pergunta: será que eram, de fato, as varas que determinavam a cor das crias? Não sabemos se esse método possui alguma base científica (embora novas pesquisas genéticas façam supor que poderia haver). No entanto, que outro fato poderia explicar o surgimento das características que Jacó desejava obter?
Em primeiro lugar, é possível que se tratasse de um milagre (cf. 31:12). Em contrapartida, talvez tenha sido um golpe de esperteza de Jacó. A narrativa apresenta indícios de que Jacó conhecia a ciência da procriação seletiva. Por meio desse processo, Jacó não apenas produziu animais com as características desejadas, mas também gerou crias mais fortes para si, deixando as mais fracas para Labão. Talvez as varas verdes fossem apenas parte de um truque para esconder seu método de outras pessoas. Seja qual for a explicação, o fato é que a riqueza de Jacó aumentou consideravelmente em seus últimos seis anos de serviço a Labão.
5. Jacó retorna a Canaã (31)
31:1–18 Quando Jacó descobriu que Labão e seus filhos sentiam inveja e rancor, o Senhor o mandou retornar a Canaã. Contudo, antes de partir, Jacó chamou Raquel e Lia e repassou os fatos com elas: Labão o havia enganado e mudado seu salário por dez vezes; Deus o favorecera, de modo que o rebanho sempre procriava a seu favor; Deus o havia lembrado do voto que ele fizera vinte anos antes (28:20–22); e o Senhor ordenara que retornasse a Canaã. As esposas concordaram com ele sobre a desonestidade do pai e decidiram partir com Jacó.
Griffith Thomas aponta vários princípios interessantes nessa passagem para interpretarmos a vontade de Deus. Em primeiro lugar, Jacó teve um desejo (30:25); em segundo, as circunstâncias exigiam algum tipo de mudança; em terceiro, a palavra de Deus lhe veio claramente; e, finalmente, as esposas confirmaram e apoiaram suas palavras, apesar de serem filhas de Labão. Observe que o Anjo do Senhor (v. 11) é o Deus de Betel (v. 13).
31:19–21 Antes de fugirem, Raquel furtou os ídolos do lar (heb., terafim) que pertenciam ao pai e os escondeu na sela de seu camelo. A pessoa que detinha a posse desses ídolos se tornava o líder da família e, no caso de uma filha casada, assegurava ao marido o direito de possuir os bens do pai dela. Labão, porém, tinha filhos homens na ocasião em que Jacó fugiu para Canaã, de modo que somente eles detinham o direito de tomar posse dos terafins. O furto de Raquel, portanto, era um ato gravíssimo e tinha por objetivo salvaguardar para o marido a posse das propriedades de Labão.
31:22–30 Quando soube da fuga de Jacó, Labão chamou seus homens e saiu-lhe no encalço, por sete dias de jornada. Todavia, Deus o advertiu em sonhos de não incomodar Jacó e sua caravana. Quando os alcançou, Labão apenas reclamou de que, ao agirem daquele modo, negaram-lhe o privilégio de oferecer uma despedida oficial. Por fim, também falou sobre o furto dos ídolos.
31:31–35 Quanto à primeira reclamação, Jacó respondeu que teve medo de Labão lhe tomar à força as suas filhas (Raquel e Lia). Quanto à segunda, Jacó negou ter furtado os deuses e decretou precipitadamente a morte do culpado. Labão realizou uma busca minuciosa, mas não encontrou os objetos, pois Raquel estava assentada sobre eles (como pretexto para não se levantar para cumprimentar o pai, disse que estava no período de menstruação).
31:36–42 Então Jacó se irou e denunciou Labão por acusá-lo de furto e tratá-lo injustamente durante vinte anos, apesar de Jacó tê-lo servido todo esse tempo com fidelidade e generosidade. Essa passagem revela que Jacó era um trabalhador incansável e que o Senhor o abençoava em tudo. Temos sido fiéis a nossos patrões? Nosso trabalho tem sido abençoado por Deus?
31:43–50 Labão se esquivou embaraçosamente das acusações de Jacó, dizendo que nunca machucaria as próprias filhas, netos ou rebanhos. Em seguida, sugeriu que fizessem um pacto. Não foi uma aliança entre amigos pedindo proteção ao Senhor enquanto estivessem separados. Antes, foi um acordo entre dois trapaceiros pedindo a Deus a garantia de que ambos agiriam corretamente quando estivessem longe um do outro! Na verdade, tratava-se de um pacto de não-agressão, mas também obrigava Jacó a não maltratar as filhas de Labão, nem tomar outras esposas. Labão denominou aquele montão de pedras de Jegar-Saaduta, expressão aramaica; mas Jacó lhe chamou Galeede. Ambos os nomes significam “montão de testemunha”. Nenhum dos dois deveria ultrapassar a fronteira daquele montão para atacar o outro.
31:51–55 Labão jurou em nome do Deus de Abraão e o Deus de Naor, o Deus do pai deles, Tera. O emprego da inicial maiúscula para o nome de Deus na RA (também na RC e NVI) indica que os tradutores perceberam que Labão estava se referindo ao único e verdadeiro Deus que se revelou a Abraão. Contudo, uma vez que o hebraico não possui letras maiúsculas ou minúsculas, não é possível refutar a ideia de que Labão talvez estivesse se referindo aos deuses pagãos que esses homens adoravam em Ur. Jacó jurou pelo temor de Isaque, seu pai, isto é, o Deus que Isaque adorava (Isaque nunca idolatrou outros deuses). Jacó ofereceu um sacrifício, preparou um banquete para todos os presentes e acampou aquela noite na montanha.
Tendo-se levantado Labão pela madrugada, beijou os netos e filhas e voltou para casa.
6. A reconciliação de Jacó e Esaú (32–33)
32:1–8 Jacó encontrou anjos a caminho de Canaã e chamou aquele lugar Maanaim (“duas hostes” ou “dois acampamentos”). Esses dois acampamentos poderiam se referir ao exército de Deus (v. 2) e ao grupo de Jacó. Duas hostes também pode ser uma metáfora para indicar uma grande multidão (v. 10). Ao aproximar-se de Canaã, Jacó se lembrou de Esaú e temeu que o irmão ainda procurasse vingança por causa da trapaça no direito de primogenitura. Será que Esaú ainda estava irado pela traição de Jacó? Jacó enviou mensageiros com saudações de paz a Esaú. Retornaram dizendo que Esaú também estava a caminho para se encontrar com Jacó e que vinha acompanhado de quatrocentos homens. Jacó ficou apavorado e dividiu a família em dois bandos. Assim, se o primeiro grupo fosse destruído, o segundo teria chance de escapar.
32:9–12 A oração de Jacó foi motivada por desespero e necessidade de proteção divina. Além de ter sido feita em humildade de espírito, fundamentava-se na aliança que o Senhor estabelecera com ele e com seus antepassados. Jacó se apegou à palavra de Deus e apelou para as promessas do Senhor.
As melhores orações são aquelas que provêm de angústias interiores. Em vez de desenvolver uma vida de oração dinâmica, as pessoas procuram, de modo geral, se proteger por meio de esforços humanos. Por que agimos dessa forma, acarretando mal a nós mesmos?
32:13–21 Depois da oração, Jacó enviou três rebanhos, um de cada vez, totalizando 580 animais, para serem entregues como presentes a Esaú, esperando que isso aplacasse a ira do irmão. Jacó demonstrou incredulidade ao recorrer a essa estratégia, ou, no mínimo, uma mistura de fé e incredulidade.
32:22–32 Após enviar sua família para cruzar o ribeiro de Jaboque (“ele esvaziará”), Jacó passou a noite sozinho em Peniel e teve uma das maiores experiências de sua vida. Conforme o texto, lutava com ele um homem. Esse homem era um anjo (Os 12:4), o Anjo de Jeová, ou seja, o próprio Senhor. Durante a luta, o Senhor deslocou a junta da coxa de Jacó, deixando-o manco para o resto da vida. Embora tenha perdido a luta física, Jacó ganhou uma notável vitória espiritual: aprendeu a triunfar sobre a derrota e a permanecer firme na fraqueza. Reconheceu sua fraqueza e falta de capacidade e confessou que seu nome era, de fato, Jacó, um suplantador, um “vigarista”. Nesse momento, Deus mudou o nome de Jacó para Israel (conforme várias traduções: “Deus governa”, “aquele que luta com Deus” ou “príncipe de Deus”). Jacó chamou aquele lugar Peniel (“a face de Deus”), pois percebeu que vira o próprio Deus, face a face. Pfeiffer nos lembra que o versículo 32 ainda é praticado entre os judeus atualmente: “Os judeus ortodoxos removem o nervo ciático, ou a veia da coxa, do animal abatido antes que essa parte seja preparada para o consumo”.
Isaque enfrenta a fome (26.1–35)
O relato deste capítulo é paralelo a Gênesis 12.10–20 e 20.1–18, o que nos obriga a lê-los juntos para estabelecer as semelhanças e as diferenças.
O velho truque da irmã (26.1–11)
O relato esclarece que a fome que mobilizou Isaque foi diferente da que obrigou Abraão a se deslocar. No entanto, ambos chegaram aonde vivia Abimeleque, rei dos filisteus. É provável que o relato sobre a chegada à terra dos filisteus seja anterior ao nascimento dos dois filhos. Em outras palavras, os relatos de Gênesis nem sempre seguem uma ordem cronológica. Esse fenômeno é relativamente comum na Bíblia e obedece a fins literários e retóricos.
Viver no Neguebe pressupunha um desafio para a subsistência. O Egito era a alternativa mais viável: ficava perto e tinha um sistema de agricultura garantido pelas cheias anuais do rio Nilo. Porém, Isaque se dirigiu à costa oriental do Mediterrâneo e chegou a Gerar, terra dos filisteus. Lá, Deus lhe apareceu e ordenou: Não desça ao Egito. Faça o que eu mandar (26.2).
A ordem de não ir ao Egito tinha a ver com a bênção de Deus relacionada ao território onde ordenou a Isaque que ficasse. Essas bênçãos eram praticamente as mesmas que Abraão havia recebido. A questão faz todo sentido, porque o que foi prometido a Abraão era para sua descendência por meio de Isaque, e o cumprimento se tornaria realidade no futuro. A promessa de Abraão é a mesma para todos os crentes; são promessas de tamanha magnitude que seu cumprimento não se reduz a um indivíduo ou a uma geração, o que nos ajuda a entender o que significa ser filho de Abraão.
A passagem de 26.5 se destaca por duas razões: 1) O chamado e as promessas de abençoar Abraão foram um ato soberano de Deus no qual não se reconheceu mérito algum; no entanto, o texto parece sugerir que a razão da promessa é que Abraão deu ouvidos e obedeceu aos mandamentos, decretos e instruções de Deus. (2) Surpreende a afirmação de que Abraão obedeceu aos mandamentos, decretos e instruções de Deus, termos que costumam aparecer como sinônimos da lei de Moisés, que só viria séculos à frente. Gênesis 26.5 é a única passagem do livro em que aparecem tais palavras, inclusive torot (instruções), que no singular (torah) é normalmente um termo técnico para a lei de Deus, isto é, a lei transmitida por meio de Moisés.
A grande semelhança entre os relatos de Isaque e os de Abraão é que Isaque também disse que sua esposa era sua irmã por medo de que o matassem porque Rebeca, a exemplo de Sara, era muito bonita (ver 12.10–20; 20.1–18). As duas diferenças principais foram que Rebeca não era tão velha e que ninguém a tomou como mulher. A mentira de Isaque a respeito de sua mulher foi descoberta quando Abimeleque viu Isaque acariciar Rebeca (26.8). A reclamação não tardou: Isaque confessou e justificou sua mentira. A reclamação é essencialmente a mesma: poderíamos ter caído em pecado por sua culpa!
Por que era tão importante para Abimeleque não “cair em pecado”? Como em outros casos, a impressão é de que Abimeleque e seus súditos tinham um grande respeito pela mulher de outro homem, tanto que Abimeleque anunciou a seu povo: Quem tocar neste homem ou em sua mulher será executado! (26.11). Entende-se até certo ponto que se castigasse quem tomasse como esposa uma mulher casada, mas por que a advertência também o protegia? É como se Isaque saísse ganhando por ter mentido. Salvou sua vida como desejava e, além disso, saiu desfrutando da proteção do rei.
É provável que o Abimeleque deste relato tenha sido o sucessor daquele que se encontrou com Abraão, e talvez o nome seja o mesmo por questões de sucessão no reino, como é frequente em monarquias. Porém, não é esse o único problema histórico do texto. Como já assinalado no comentário sobre o parágrafo 21.22–23, pela arqueologia sabe-se que em Canaã não havia filisteus no tempo de Abraão e Isaque; os filisteus chegaram a Canaã na mesma época em que os israelitas, depois do êxodo. As três principais soluções propostas podem ser assim resumidas: 1) Em um extremo, afirma-se que nessa época havia filisteus na região, como a Bíblia assinala. 2) Em outro extremo, afirma-se que a Bíblia se equivoca ou que a história foi inventada na época do exílio. 3) Entre as duas posições, atribui-se a um personagem antigo (Abimeleque) o nome de filisteu por habitar a região que em uma época posterior foi habitada pelos filisteus. É como chamar de “americanos” os que viviam neste continente antes da chegada de Cristóvão Colombo. Talvez se trate da última opção, como resultado das atualizações que foram feitas no texto de Gênesis.
Entre a fome e o deslocamento nesta história, não se menciona nenhum ato religioso, como uma oração para suplicar provisão ou uma consulta para decidir até onde ir. A fome chegou, e as pessoas migraram antes que fosse tarde demais. Isso talvez obedecesse a dois fatores. Em primeiro lugar, assim viviam as pessoas na época: eram seminômades e, por isso, instalavam-se onde houvesse comida e enquanto a comida durasse. Se a comida acabasse, rumavam para onde supunham que encontrariam comida. Eram deslocamentos naturais. Em segundo lugar, na maioria dos casos as Escrituras pressupõem que o ser humano deve usar experiência, inteligência e conhecimento para tomar decisões sem esperar revelações no momento de dar cada passo, sobretudo se o problema é a fome. Não se deve camuflar a indecisão com disfarces de piedade.
Isaque, o agricultor (26.12–33)
Nesta cena, confirmamos que Isaque ficou no lugar ordenado por Deus, pois obteve grandes riquezas, como Deus lhe prometeu. Certamente, ele conseguiu isso com a agricultura e a criação de gado menor, mas o texto não menciona o que semeou nem quais animais criou. O fato é que a bênção incluía bens materiais, mas não se limitava a eles.
Da fome, passamos à colheita que enriqueceu Isaque. No entanto, a advertência que Abimeleque fez a seu povo de não se meter com ele não se cumpriu. Uma coisa era Isaque com fome; outra, muito diferente, Isaque com riquezas. Os filisteus já não desejavam sua mulher: agora, invejavam suas riquezas. O padrão narrativo é claro: o problema dele havia sido resolvido, mas a solução se converteu em outro problema. Assim é a vida.
Os filisteus cortaram o acesso de Isaque à água, e o próprio Abimeleque o expulsou por ser poderoso e rico. Isaque foi embora com suas riquezas para outra região, o vale de Gerar. Mais uma vez, surgiu uma disputa pela água com os habitantes do vale. Embora os poços que Isaque utilizava fossem os que seu pai tinha cavado, houve disputas com os novos usuários. Assim, um poço foi chamado de “discussão” (Eseque) e o outro, de “hostilidade” (Sitna). O terceiro poço não gerou confusão, por isso o chamaram de “lugar espaçoso” (Reobote). Isaque o interpretou como sinal da bênção de Deus.
Isaque foi para Berseba (“poço do juramento”) e, a exemplo do que fizera Abraão, construiu ali um altar e invocou o nome do SENHOR (26.25). Desconhecemos os detalhes do culto que ele prestou a Deus.
Ao que parece, Abimeleque repensou o que havia feito contra Isaque e o visitou, atitude que o patriarca obviamente não entendeu. Abimeleque queria ser seu amigo, pois reconheceu para Isaque: o SENHOR o abençoou! Como era o costume, o acordo foi celebrado com um banquete.
Para completar a felicidade de Isaque, nesse mesmo dia seus servos cavaram e descobriram uma nova fonte de água. Isaque, então, vinculou o poço à sua nova amizade com Abimeleque e chamou o poço de “juramento” (Seba). Este episódio tem um final feliz, mas não é o final da vida do patriarca nem de seus problemas.
A água era escassa em Canaã, especialmente na direção sul. Por isso, surgiam muitas disputas em torno da água, como a relatada nesta passagem. O desacordo sugere que não havia fronteiras estabelecidas para esses territórios habitados por diferentes grupos e que sua moradia tampouco era de todo permanente, justamente pela questão da água.
A disputa por água dos servos de Isaque com os habitantes de Gerar sugere instabilidade e ameaça à vida. Em consequência disso, significava uma ameaça à própria promessa de Deus a Abraão. Por fim, na terceira disputa os servos de Isaque cavaram um poço pelo qual depois não tiveram de lutar. Por isso, Isaque chamou o poço de Reobote, que significa “amplitude”, “lugar espaçoso”, e o interpretou como presente de Deus para sua prosperidade.
No entanto, não ficaram ali, o que indica que, da perspectiva bíblica, a “prosperidade” também tem um sentido amplo. Aqui, o uso desse termo talvez indicasse simplesmente que Deus solucionou um grave problema para ele, um problema que não seria o primeiro, nem o último, nem o maior. Prosperidade, nesse contexto, significa seguir adiante, acompanhado por Deus em meio às dificuldades. A vida sem problemas não existe; quem busca uma vida sem problemas corre atrás do vento. Isaque reconheceu o que havia recebido de Deus e o adorou.
Até esse ponto, o relato nos convida a várias reflexões. Em primeiro lugar, mostra que a bênção de Deus pressupõe que o abençoado trabalhe. Deus abençoa o trabalho. Muitas pessoas esperam “bênçãos” do nada, como se crer em Deus fosse uma forma “bíblica” de ganhar na loteria.
Em segundo lugar, a bênção de Deus não evita que surjam dificuldades. Ao longo de Gênesis, notamos que a própria bênção atraía problemas.
Em terceiro lugar, os pregadores e mestres das Escrituras devem se dar o trabalho de estudar em sua totalidade a vida do personagem bíblico sobre o qual vão expor. Muitos são tentados a afirmar que a bênção de Deus sempre significa uma vida sem problemas e que se deve viver permanentemente no “final feliz”. Essa é uma vida de fantasia, que nenhum personagem da Bíblia viveu. O texto bíblico convida os crentes a reconhecer que a vida por vezes os tratará com dureza.
Perguntas para reflexão
Que critérios bíblicos podem ajudar a igreja na América Latina a não tornar a pregação das bênçãos de Deus em “graça barata”, ou seja, uma oferta sem custo?
O que aprendemos com os erros dos patriarcas e com a ação divina em meio a essas falhas?
As mulheres de Esaú (26.34–35)
Esses dois versículos aparecem no TM (Texto Massorético) como um parágrafo isolado. A menção a Esaú é uma surpresa, porque todo o capítulo é dedicado a Isaque. De todo modo, os dois temas que apresentam são o casamento de Esaú com duas mulheres hititas (Judite e Basemate), e os desgostos que elas causaram a Isaque e Rebeca. Não se pode afirmar que o problema surgiu porque ele se casou com mulheres estranhas a seu grupo, já que mais adiante ninguém se desagradou por José ter se casado com uma egípcia. Os dois versículos também preparam o terreno para o casamento de Jacó (27.46).
Existe uma conexão linguística entre esses dois versículos e o restante do capítulo, em que a palavra mais repetida é “poço” (be’er). Um dos sogros de Esaú se chamava Beeri (“meu poço”).
Isaque, enganado, abençoa seus filhos (27.1–46)
O relato da antecipação do nascimento de Isaque é mais extenso que o relato que cobre sua vida. Por isso, surpreende que o redator apresente sua morte tão cedo, não pela idade que Isaque tinha, mas sim pelo pouco que é dito sobre sua vida. Embora anuncie que “Este é o relato da família de Isaque” (25.19), na realidade dedica mais espaço a Jacó. Algo parecido ocorre com os relatos a respeito de Jacó e José.
Jacó usa de engano para obter a bênção (27.1–40)
Seguindo o costumeiro padrão de enganos nos relatos de Gênesis, esse capítulo é mais um deles: consagra Jacó e sua mãe Rebeca como mestres do engano e da encenação. O curioso aqui é que o engano foi usado para fazer Isaque dar a bênção a Jacó, e assim se cumpriram as palavras “seu filho mais velho servirá a seu filho mais novo” (25.23). Diz-se que não se deve ajudar a Deus para que sua palavra se cumpra, mas este relato parece sugerir outra coisa.
Conforme o costume da época, Isaque, já velho, fez planos para abençoar seu primogênito antes de morrer. O mais próximo disso na atualidade seria o testamento. Como preparação para a bênção, pediu a seu filho Esaú que fizesse o que melhor sabia fazer, isto é, caçar: prepare meu prato favorito e traga-o aqui para eu comer (27.4). Até aqui, tudo parecia transcorrer segundo o costume de abençoar o filho mais velho, mas não era exatamente assim, pois não incluiu o restante da família, como deveria ser.
Isaque, aparentemente, desconhecia três fatos: 1) o que o SENHOR disse a Rebeca, a saber, que o filho mais velho serviria o mais novo (25.23); 2) a negociação entre os dois irmãos (25.29–34), mediante a qual Esaú vendeu sua primogenitura a Jacó por um prato de lentilhas; e 3) a astúcia de sua esposa, que não ficou de braços cruzados. Desse modo, o relato toma um rumo que é ao mesmo tempo inesperado e “normal” para o livro de Gênesis. Rebeca escutou toda a conversa entre Isaque e Esaú, contou o que ouviu a seu filho Jacó e lhe propôs outro plano: tomar o lugar do irmão para usurpar sua bênção, aproveitando-se da cegueira de Isaque.
Todavia, os sentidos de audição, tato, paladar e olfato de Isaque ainda funcionavam parcialmente. Por isso, era necessário tornar Jacó peludo, e Rebeca devia preparar um bom guisado. A comida ocupa lugar central nessa bênção. Passada a intriga e o suspense pelas suspeitas de Isaque, que não teve desconfiança suficiente, o engano deu certo e Jacó recebeu a bênção: prosperidade no trabalho agrícola e domínio sobre outros, incluindo sobre seu irmão Esaú (27.27–29,37). Quando Esaú chegou, já era tarde. Isaque admitiu ter sido enganado, mas, de todo modo, deu a Esaú uma (anti)bênção: não seria próspero e teria de lutar para viver; serviria seu irmão, mas um dia se livraria dessa opressão (27.39–40). Aqui, saltam aos olhos uma palavra de esperança em meio a circunstâncias sombrias. Esaú não estava condenado a viver para sempre subjugado a seu irmão.
Para Esaú, o direito à primogenitura e à bênção patriarcal pareciam ser dois conceitos separados (27.36). Deixou-se enganar pela comida, assim como o próprio Isaque. O mesmo texto diz que “Isaque amava Esaú porque gostava de comer a carne de caça que ele trazia” (25.28). Rebeca sabia disso muito bem, e soube aproveitar-se da situação. Isaque suspeitou que o estavam enganando, mas o cheiro do guisado foi mais forte.
A história tem sua tensão: ainda que a negociação entre Esaú e Jacó tenha sido transparente, o único de fato enganado foi Isaque, o que expõe que ele não era o proprietário da bênção. Dessa estranha maneira, a bênção de Deus para Abraão continuou pela linhagem de Jacó, e não pela de Esaú.
Jacó foge com a bênção (27.41–46)
O relato do grande engano ficou marcado pelo tema referente às duas mulheres de Esaú; Isaque e Rebeca estavam aborrecidos (26.34–35; 27.46). O final do capítulo 26 é um comentário do narrador sobre os dois pais; o final do capítulo 27 são instruções que Rebeca ditou a Jacó. Antes, porém, Rebeca teve de cumprir com sua responsabilidade de advertir Jacó sobre os planos malévolos que Esaú tramava contra ele. A esperança de Rebeca era de que a ira de Esaú fosse temporária e ele esquecesse o que Jacó lhe havia feito (27.45). De todo modo, instruiu Jacó para que fugisse para a casa de seu tio Labão até que Esaú se tranquilizasse.
A história de Jacó (28.1–35.29)
Ainda que o filho da promessa fosse Isaque, mais famoso seria seu filho Jacó. Dele nasceram as doze tribos de Israel e seu nome, uma vez mudado, seria o nome de toda uma nação: Israel. A história de Jacó se caracteriza pelo engano e pela esperteza, mas também pela graça de Deus. Jacó enganou e foi enganado.
Rebeca conseguiu seu objetivo momentâneo, mas acabou afastada de seu filho, de quem tanto gostava. É curioso que neste relato a Palavra de Deus se tenha cumprido como resultado do engano, dos maus negócios, da falta de harmonia familiar e do gosto desmedido por comida.
Jacó rumo a Padã-Arã (28.1–22)
Cuidado com as cananeias (28.1–9)
O modo como Jacó encontrou esposa foi diferente do de Isaque, seu pai. Jacó também foi proibido de se casar com uma cananeia. Sua mãe o instruiu para que fosse diretamente a Padã-Arã, à casa de seu tio Labão, e se casasse com uma das filhas dele. A advertência contra o casamento com as cananeias na Bíblia não foi permanente nem absoluta, tampouco se deu por razões étnicas. Entre outras razões, nem os hititas nem os cananeus figuram no AT nos tempos do exílio para que os exilados pudessem reconhecer a questão étnica. Também não parece claro que Gênesis esteja defendendo alguma “ortodoxia” ou “pureza”, uma vez que inclui casamentos muito variados. Por certo, a própria Raquel, que era da família de Abraão e de Labão e de todos eles, no momento oportuno roubou uns ídolos de seu pai (31.19). Que pureza há nisso? Raquel se portou como a pagã que era. Nada no texto indica que Jacó se casou com Raquel porque fosse “crente”.
No ensinamento bíblico, deve-se ter zelo ao cuidar das uniões conjugais quando existe o perigo de perder a fé. Por isso, o AT celebra a vida de Rute, a moabita, e seu casamento com um israelita, e critica severamente a de Salomão, que era israelita, e seus casamentos com mulheres pagãs.
Isaque despediu Jacó com a costumeira bênção de pai para filho. Além disso, invocou para ele a bênção de Abraão. Esaú se inteirou de tudo isso, inclusive do desprezo que Isaque tinha para com os cananeus. Por essa razão, Esaú foi e se casou com uma filha de Ismael, seu tio e de Jacó.
A bênção de Abraão, que Jacó havia recebido da parte de Isaque, alcançou sua plenitude com a vinda de Cristo, visto que em Cristo todas as nações da terra são abençoadas, como disse Deus a Abraão (ver Gl 3.14). Tudo o que acontece na história sagrada de Cristo são passos para chegar ao cumprimento pleno.
O sonho de Jacó em Betel (28.10–21)
Este relato é tão conhecido quanto intrigante. A primeira coisa a se ter mente é algo óbvio: tratava-se de um sonho. Jacó viu uma escada que subia da terra até o céu. Por ela, subiam e desciam os anjos. Provavelmente, tratava-se de um zigurate (ver comentário sobre 11.1–9)
O melhor a se fazer é considerar o caráter simbólico do relato, visto que os anjos não necessitavam tecnicamente de escadas para descer nem subir. O sonho em que Deus se manifestou ao patriarca não resultou de jejuns prolongados e longas orações, e nem porque ele tivesse demonstrado integridade em seu comportamento. A única explicação que temos é que Jacó fazia parte da descendência da qual Deus escolheu alguns de seus membros para se manifestar. O mais claro no sonho, aquilo em que devemos nos concentrar, são as palavras que Deus dirigiu a Jacó: a reiteração da promessa que Abraão também havia recebido de Deus, incluindo que seus descendentes seriam numerosos “como o pó da terra” e que, além disso, se estenderiam pelos quatro pontos cardeais (ver 13.14–16; 28.14). Em um momento de muita incerteza e angústia, Jacó recebeu a confirmação de que Deus estava com ele. O que poderia ser mais vivificante que escutar de Deus “estou com você” (ver Sl 91.15; Ag 1.13)? Foi o que Jesus prometeu a seus discípulos quando ascendia ao Pai (Mt 28.20).
Ao acordar, Jacó concluiu que Deus verdadeiramente estava naquele lugar: Não é outro, senão a casa de Deus; é a porta para os céus! (28.17; ver Ap 4.1). É curioso que Jacó tenha ungido como comemorativa a mesma pedra que lhe serviu de travesseiro. Também chama a atenção a pouca pompa e estrutura física necessárias para Deus se manifestar e para comemorar essa manifestação.
A promessa acrescenta uma informação muito importante para Jacó: Um dia, trarei você de volta a esta terra (28.15). Informações como essa levam os estudiosos a pensar que um texto assim seria de muita relevância para os exilados na Babilônia, já que em outras passagens aparecem palavras muito similares com referência específica ao exílio (ver Dt 30.4; 1Rs 8.33–34; Jr 29.10,14).
Jacó encontra esposa e muito mais (29.1–30.24)
Jacó chorou (29.1–14a)
O encontro de Jacó com Raquel e depois com o pai dela, Labão, está repleto de emoções. O texto não explica duas coisas: por que a boca do poço estava coberta com uma pedra (29.2) e por que Jacó chorou depois de conhecer e beijar Raquel (29.11), que havia chegado com as ovelhas de seu pai. O certo é que, ao tirar a pedra do poço, Jacó adquiriu aura de herói, em contraste com os pastores dali, que pareciam ser preguiçosos. Com base no que ocorre na sequência da história e no relato de José nos capítulos finais de Gênesis, supomos que Jacó chorou pela emoção de se encontrar com familiares que não conhecia e pelas emoções reprimidas devido aos motivos que o obrigaram a fugir. Seu pranto demonstra quão humano ele era.
Jacó queria uma esposa e acabou com quatro (29.14b–30)
O objetivo de Jacó para sua viagem, além de escapar de seu irmão, era encontrar uma esposa. Para o primeiro objetivo, seguiu as instruções da mãe; para o segundo, as do pai. A segunda questão era clara para Labão e, ao ver que Jacó havia se apaixonado por Raquel, traçou um plano que lhe permitisse ter mão de obra por catorze anos, além da possibilidade de casar “bem” suas filhas.
No casamento de Jacó, seus pais não intervieram, como de costume: ele combinou a união diretamente com o pai de Raquel. Os sete anos que trabalhou por Lia (pensando que eram por Raquel) e os outros sete por Raquel cumpriram a função de dote. Esse costume não significava que as mulheres eram compradas. A razão era que se devia compensar os pais economicamente por separar deles a filha, pois o casamento representava para a família da mulher uma perda econômica. Como mostra o relato, Raquel era pastora de ovelhas. Se Labão entregasse suas filhas, teria de contratar assalariados que as substituíssem no trabalho que exerciam.
O texto não detalha como Labão conseguiu enganar Jacó no dia de seu casamento com Raquel. Também não registra uma cerimônia religiosa. O que importa na história é que Jacó foi enganado. Supomos que Jacó havia tomado vinho, mas não tanto a ponto de estragar sua primeira noite com Raquel. Seja como for, Lia foi aliada complacente do ardil, tendo por cúmplices as penumbras da noite (29.23) e o fruto da videira.
Contrariamente a seus propósitos, Jacó obteve uma esposa que não queria, e teve de trabalhar outros sete anos pela mulher que realmente amava. Com isso, acabou não com uma esposa, o que veio buscar, mas com duas, além de duas servas concubinas; ou seja, com quatro. Não seria a família perfeita nem a que a Bíblia recomenda, mas dessa família sairiam as doze tribos de Jacó, o povo de Israel.
A vantagem da mulher desprezada (29.31–35)
Jacó não amava Lia; por isso, Deus a favoreceu e lhe deu quatro filhos. É isso o que esses cinco versículos se dedicam a mostrar. O modo de narrar o nascimento dos filhos de Lia intensifica o que o narrador acabara de afirmar: Deus a favoreceu. Os nomes que ela deu aos três primeiros filhos se referem a algum aspecto da graça de Deus e do amor de seu marido. A etimologia dos nomes resultaria nos seguintes significados aproximados: Rúben (re’u-ben): “vejam, um filho!”; Simeão (shime‘on): “(o SENHOR) ouviu”; Levi (levi): “unido”; Judá (yehudah): “o SENHOR seja louvado”. A chave dos significados está no que Lia desejava que ocorresse em sua relação com Jacó por causa do nascimento de cada filho: ela desejava o amor de seu marido. Como de costume nas listas hebraicas, com o último filho saiu-se do padrão: não se fez referência à sua situação e simplesmente se louvou a Deus (29.35).
Com o nascimento dos quatro filhos de Jacó, os papéis de Raquel e Lia se inverteram. Jacó havia se fixado na beleza de Raquel e se apaixonou por ela, mas Deus viu que Lia não era amada e lhe deu filhos. Da perspectiva da cultura da época e do lugar, a mulher bendita, valiosa e lembrada não seria a mais bonita, mas sim a que tivesse filhos.
As mulheres de Jacó competem (30.1–24)
Não sabemos quais eram os sentimentos de Lia em relação a Raquel ao ver que sua irmã mais nova havia sido pedida em casamento e ela não, e que, para poder casá-la, seu pai teve de preparar um ardil. O certo é que Lia se tornou objeto da inveja de Raquel, que se achava em uma situação similar à de Sara com Hagar.
No entanto, diferentemente de Sara, Raquel estava entre três competidoras: sua própria serva, sua irmã e a serva de sua irmã. A relação de Jacó e Raquel perdeu o encanto. Para trás ficaram as lágrimas do primeiro encontro e os catorze anos que Jacó trabalhou para pagar o dote. Em meio à ira que lhe causaram as queixas de Raquel por não ter filhos com ela, Jacó fez duas declarações: que ele não era Deus e que Deus era quem a fizera estéril (30.2). O que vem na sequência muito se assemelha à história de Abraão com Sara e Hagar, o que, como já dissemos, reflete um costume aceito na época: Raquel entregou a Jacó sua serva Bila para que ele se deitasse com ela e assim tivesse filhos. O costume também implicava que os filhos da serva de Raquel com Jacó seriam considerados filhos de Raquel. Desse modo nasceu um primeiro filho, que Raquel chamou de Dã, porque Deus lhe havia feito din (“justiça”). O segundo filho de Bila com Jacó se chamou Naftali (“minha luta”), porque Raquel disse: Tive uma luta (naftulti) intensa com minha irmã (30.8).
A questão entre as duas irmãs se tornou uma competição para saber qual das duas podia dar mais filhos a Jacó. Quando Lia viu que a serva de Raquel teve um segundo filho, também entregou sua serva Zilpa a Jacó para que ele tivesse com Zilpa os filhos que Lia já não podia ter. O mais absurdo da história é que assim nasceram as doze tribos de Israel.
Lia chamou de Gade o primeiro filho de Zilpa, porque havia sido afortunada (begad). O seguinte filho chamou de Aser, porque estava alegre (be’ashri).
Os sentimentos de Lia para com a irmã se haviam mantido em discrição até que Rúben, filho de Lia, levou umas mandrágoras à sua mãe, e Raquel as queria. Lia perguntou se já não havia bastado tomar dela seu marido. Então, as duas irmãs fizeram um estranho negócio: mandrágoras em troca do marido. Considerava-se que as mandrágoras ajudavam na fertilidade. Assim, Lia poderia dormir com Jacó, alugado por uma noite. O negócio leva a supor que a preferida de Jacó continuava sendo Raquel. Em meio a toda essa luta, Deus apareceu e concedeu a Lia ter um quinto filho, a quem chamou de Issacar, porque ela disse: Deus me recompensou (sekarí, 20.18). Depois, nasceu-lhe um sexto filho, a quem chamou de Zebulom, porque disse: meu marido me tratará com respeito (yizbeleni, 30.20), ou seja, “fará de mim sua legítima esposa”. Assim, mais da metade dos filhos de Jacó foi dada a Lia: oito, seis diretamente com ela e dois com Zilpa, sua serva.
Depois de Zebulom, Lia teve uma filha, Diná, nome para o qual não deu explicação, mas que parece ter a mesma origem que Dã, “justiça”. Finalmente, Raquel teve seu próprio filho, pois Deus, em sua graça, lhe tirou a esterilidade. Era seu único filho, e o chamou de José (yosef), nome que é como uma oração: Que o SENHOR me acrescente ainda outro (yosef) filho” (30.24). Vê-se aqui outro jogo de palavras com o verbo ’asaf do versículo anterior, que significa “tirar” ou “apagar” e se refere a desgraça. Dessa maneira, Deus desejou ’asaf (tirar) a desgraça ao yosef (acrescentar) um filho a Raquel. Até aqui, os filhos de Jacó com as quatro mulheres eram onze, dez homens e uma mulher.
Jacó foge de Labão (30.25–32.2)
Deixe-me ir (30.25–43)
O pedido que Jacó fez a Labão para que o deixasse ir embora com as mulheres pelas quais havia trabalhado sugere que Labão tinha algum tipo de hierarquia ou domínio sobre o que, por direito, já deveria ser totalmente de Jacó. Isso explicaria por que Jacó não disse “vou embora”, mas sim libere-me para que eu volte (30.25b).
Labão tinha interesses econômicos e não os ocultou, pois disse: o SENHOR me abençoou por sua causa (30.27b), e pediu a Jacó que estabelecesse ele mesmo o preço do seu salário. Jacó aproveitou a situação e mencionou dois fatores que aumentariam seu salário. Primeiro, reconheceu quanto Deus havia abençoado Labão graças a ele; a falta de modéstia no diálogo lhe serviu para incrementar seu salário. Segundo, insistiu que queria ir embora e que chegaria a hora de fazê-lo, o que também tinha o potencial de aumentar o salário.
No fim das contas, Jacó não aceitou nenhum salário, mas propôs a Labão um acordo: que o pagamento fosse em espécie, com as ovelhas e cabras salpicadas, malhadas e pretas. Não fica muito claro como funcionava o sistema que Jacó inventou, que consistia em pôr galhos nos bebedouros para que os animais se reproduzissem com as características que ele havia escolhido. O fato é que não aceitou o salário porque tinha na manga uma ideia que lhe daria maiores dividendos. E assim ocorreu: Jacó enriqueceu porque seus animais tinham boa saúde e se multiplicavam mais que os de Labão.
Jacó escapa de Labão (31.1–24)
O SENHOR ordenou a Jacó que regressasse à terra de seus pais, mas isso ocorreu depois que Jacó soube que os filhos de Labão não gostavam dele porque acreditavam que ele lhes havia roubado.
As mulheres de Jacó eram filhas de Labão. Por isso, Jacó necessitou convencê-las para que escapassem com ele. Ainda que o capítulo tenha narrado que Jacó inventou o sistema para obter mais e melhores crias, em seu discurso às mulheres ele afirmou que foi Deus quem tirou os animais de seu pai e os deu a mim (31.9). A teologia de Jacó era de que não importava de quem havia sido a ideia, se o projeto prosperasse era por ação divina, e se não, também. Jacó mencionou que Deus lhe falara em sonho e, por meio do anjo, confirmara que Labão era quem lhe havia feito mal.
O outro detalhe do sonho é que Deus se identificou para ele como “o Deus de Betel” (31.13, RA). Nas imediações de Betel, Abraão erigiu um altar (o primeiro texto que menciona Betel na Bíblia é 12.8). Abraão passou por lá duas vezes, quando vinha do norte (Harã) e quando vinha do sul (Egito). O lugar onde Jacó erigiu inicialmente o altar se chamava Luz; Jacó o chamou de Betel (28.19). Uma vez que Betel significa “casa de Deus” (beit’el), é provável que houvesse mais de um lugar com esse nome. De fato, qualquer lugar onde se levantava um altar podia ser chamado de “casa de Deus”, ou seja, Betel.
Surpreende o que responderam as mulheres à proposta de Jacó. Garantiram que seu pai as havia tratado como estrangeiras e as havia vendido. Se o dote que um homem pagava por uma mulher constituía um costume aceito que não era visto como uma venda, do que reclamavam essas mulheres? Parece que falavam como mulheres à frente de seu tempo. De fato, na Bíblia encontram-se muitas formas de pensar que bem poderiam ser assim classificadas. Antes de tudo, porém, devemos olhar para o que essas mulheres reivindicavam.
Em primeiro lugar, Raquel e Lia responderam juntas. As irmãs que no capítulo anterior lutavam pelo marido aqui falaram em coro contra seu pai. Observam-se algumas ambiguidades em sua resposta. Não obteriam nenhuma herança de seu progenitor, mas igualmente afirmavam que Deus havia tirado de Labão sua riqueza e a tinha dado a elas e a seus filhos. Não é lógico que já não esperavam receber nada de Labão?
Quanto à venda, o que é que as incomodava: que Labão as tenha vendido ou que tenha desperdiçado o dote e não lhes deixado nada? A venda de que elas reclamavam era porque Labão as havia tratado como estrangeiras. Isto é, para essas mulheres era aceitável que uma estrangeira fosse vendida e que o vendedor gastasse o dinheiro de venda. Isso já as desqualificaria como mulheres notáveis.
O texto de 31.15 poderia ser assim traduzido: “Acaso não fomos consideradas estrangeiras para ele? Ele nos vendeu e desperdiçou todo o nosso dinheiro”. Desconhecemos os detalhes do que Labão fez com o dinheiro que Jacó produziu durante catorze anos. O que as mulheres afirmaram era que um dote se convertia em venda quando o pai de família o gastava e não o investia na família. O dinheiro de um dote não pertencia ao pai: convertia-se em propriedade de toda a família e devia ser investido em seu bem-estar.
Como se pode ver, Jacó não teve de se esforçar muito para persuadir as mulheres de que abandonassem o pai. Já estavam convencidas de que Labão era mesquinho e que o melhor era deixá-lo, mesmo sendo o pai delas.
A história do roubo dos ídolos familiares (31.19) é intrigante, nem tanto porque se tratasse de um roubo ou porque o que foi roubado fossem ídolos, mas sim porque Raquel os roubou. O relato dá uma má reputação a Raquel como crente no SENHOR, mas dá à Bíblia boa reputação como registro histórico fidedigno. É muito difícil pensar que os judeus no exílio tivessem algum interesse em inventar uma história de seus antepassados e apresentar Raquel como idólatra, uma figura de muito respeito para eles, sendo que o exílio foi a época em que os judeus por fim se libertaram da idolatria. O texto retrata a situação desses protagonistas em termos próprios da cultura de sua época e da fé que tinham naquele momento. Por isso, o relato tampouco oculta que Jacó enganou Labão. O verbo hebraico que a NVT traduz por “enganar” é ganab (31.20). Em outras partes dessa mesma história se traduz por “roubar” (30.33), incluindo o roubo dos ídolos (31.19), mas quando o verbo se combina com o termo para “coração” (leb), criando assim a expressão ganab leb, como aqui, então se traduz por “enganar”. Permanece ambíguo se o que Labão disse a Jacó foi que o enganou ou o roubou.
Jacó partiu de Harã (provavelmente Arã-Naaraim) para a região montanhosa de Gileade. Três dias depois da partida, Labão ficou sabendo e saiu em seu encalço. Supõe-se que, com todo o gado que levava, Jacó não podia avançar a grande velocidade. As ovelhas não podiam percorrer mais que uns dez quilômetros por dia. Isto é, Jacó não estava a grande distância, e como Labão o perseguiu sem gado, pôde alcançá-lo sem problema. A demora de sete dias talvez indique que Labão o alcançou sete dias depois da saída de Jacó; ou seja, Labão e os que o acompanhavam percorreram em quatro dias o que Jacó e seu gado haviam percorrido em sete. A expressão Sete dias depois o alcançou (31.23) também pode ser lida “Num trajeto de sete dias o alcançou” ou “Numa distância de sete dias” (31.23). Seja como for, “três dias” e “sete dias” no AT são expressões temporais que não visam comunicar com precisão. O fato é que Labão o alcançou.
A seção se encerra em 31.24 com uma advertência divina. Traduzida diretamente, a expressão diz: “Cuidado ao falar com Jacó, tanto para o bem como para o mal”. Esse é o único capítulo da Bíblia que usa tal expressão; primeiro, quando Deus falou a Labão em sonho, e segundo, quando Labão contou seu sonho a Jacó (31.24,29).
Quem é o ladrão aqui? (31.25–54)
A queixa que Labão fez a Jacó foi bastante extensa. Em síntese, ele disse: que Jacó fizera mal ao ir embora às escondidas, que ele teria feito uma festa de despedida, que Jacó agira como um tolo, e que, o pior de tudo, ele lhe roubara seus deuses. Labão acrescentou que tinha poder de sobra para lhe causar dano, mas que o Deus do pai de Jacó lhe havia advertido que não se metesse com Jacó. Não sabemos como Labão entendeu que quem lhe apareceu em sonho foi o Deus de Jacó.
Jacó respondeu com dois “porquês” e um “se” condicional: “porque tive medo; porque pensei que tiraria suas filhas de mim; e, se encontrar seus ídolos entre nós, que morra quem os tiver roubado”. O relato se converte em ironia dramática ao comentar que Jacó, porém, não sabia que Raquel havia roubado os ídolos da casa (31.31–32). Das dez vezes que aparece o verbo “roubar” (ganab) em Gênesis, oito vezes é usado na relação entre Jacó e Labão; as outras duas aparecem na história de José. Não há dúvida de que a relação entre o sogro Labão e o genro Jacó foi marcada pela armadilha, a suspeita, a acusação e a desconfiança.
Jacó apostou tudo porque desconhecia o que Raquel havia feito. Isto é, quem o enganara nessa oportunidade fora sua mulher. No que dizia respeito a roubo e engano, nessa família todos eram mestres. O relato adquire suspense quando Labão entrou nas tendas para espiar.
Uma informação que o texto dá é que cada uma das mulheres tinha sua própria tenda. Assim, o suspense cresce quando a última tenda que Labão requisitou foi a de Raquel. Confirma-se que os ídolos eram pequenos quando Raquel se sentou sobre eles e disse ao pai que estava menstruada e, por isso, não podia se levantar. Como os ídolos não são encontrados, os papéis se inverteram. Assim, Jacó, irritado e cheio de valentia, aproveitou a ocasião para recitar a seu sogro a lista de agravos que não havia podido dizer por ter saído às escondidas (31.36–42). Em suma, por vinte anos Jacó fora vítima de um sogro ladrão e inconsequente. Se não fosse pela intervenção divina, afirmou Jacó, não teria ficado com nada.
Labão se esqueceu do que tinha dito previamente sobre seu desejo de que Jacó ficasse com ele porque tinha a bênção de Deus. Então, segundo ele, tudo era de Labão, inclusive as filhas. Contudo, Labão nos surpreende ao mostrar que tinha sentimentos e acabou falando como um pai: Mas o que posso fazer agora por minhas filhas e pelos filhos delas? (31.43). A solução para Labão foi fazer um pacto que servisse de testemunho. Foi um pacto que hoje chamaríamos de “acordo de não agressão e cooperação”, semelhante ao que fizeram Abraão e Isaque com Abimeleque (21.22–34; 26.1–33).
A aliança foi celebrada com os elementos típicos: altar, sacrifício, estipulações, invocação a Deus e umas imprecações para quem quebrasse o acordo (31.45–55). Como Gênesis mostra, os pactos eram a forma normal de as pessoas se relacionarem na hora de resolver uma disputa ou de estabelecer relações de cooperação entre iguais. O acordo vigorava também para seus descendentes.
Assim, o genro fez as pazes com o sogro. O lugar foi chamado de Mizpá (mitzpah), que significa “torre de vigia”; a raiz de que o termo hebraico deriva é tzapah, que significa “vigiar”. Como de costume, a cerimônia com que se selou o pacto acabou com uma refeição especial oferecida a Deus e às partes contratuais.
As partidas de Labão e Jacó (31.55–32.2)
Esses três versículos formam um pequeno parágrafo que mostra como Jacó e Labão rumaram para destinos opostos. Literalmente, o texto original de 31.55 diz que Labão “beijou seus filhos e suas filhas e os abençoou”. A NVT traduz por netos e filhas porque isso é o que eram. Porém, o fato de que o texto original diga “filhos” mostra que o termo “filho” (ben) na Bíblia tem um campo semântico amplo. Labão, como patriarca, despediu-se com uma bênção; depois, desapareceu do cenário para sempre. Mais adiante, menciona-se apenas seu nome umas duas vezes (ver cap. 46).
Quando Jacó seguia seu caminho, anjos de Deus (ou “mensageiros de Deus”) saíram ao seu encontro; o texto não diz quantos. Tampouco sabemos como, mas Jacó os reconheceu como enviados de Deus e afirmou: Este é o acampamento de Deus! (32.2). Então, deu ao lugar o nome de Maanaim (“dois acampamentos”). Curiosamente, o texto não registra nem as palavras nem as ações dos mensageiros.
Perguntas para reflexão
O que a igreja pode fazer para ajudar famílias em conflito?
Que lições aprendemos com Jacó e sua família para mudarmos a imagem machista do homem na América Latina?
Encontro e reconciliação de Esaú e Jacó (32.3–33.20)
Preparativos para o encontro (32.3–21)
Jacó procurou um encontro com seu irmão Esaú, com quem tinha um assunto pendente. Novamente, a promessa da descendência de Abraão se via ameaçada, pois Jacó temia seriamente que Esaú o matasse com todos os seus. Para evitar tamanha tragédia, elaborou um plano de sobrevivência que tinha vários componentes: enviou uma mensagem de paz a Esaú, dividiu seu acampamento em dois, orou a Deus para que o protegesse e preparou uma série de presentes para seu irmão.
Os primeiros emissários que Jacó enviou chegaram até Esaú e lhe falaram das riquezas de Jacó, mas não levaram nada. A resposta de Esaú veio sem palavras: ele e quatrocentos homens marcharam em passo ameaçador ao encontro de Jacó. O ambiente era tenso. O texto economiza palavras registrando somente as instruções que Jacó deu a seus mensageiros e a reação do irmão. Não se menciona o momento no qual os emissários falaram com Esaú.
Em sua oração a Deus, Jacó se declarou totalmente indigno da bondade e fidelidade que havia recebido de Deus (32.10). De fato, Jacó não era o primogênito. A expressão hebraica para não sou digno é bastante descritiva: “Sou pequeno em comparação com toda (qatonti mikol) a bondade e a fidelidade oferecida a seu servo”. É exatamente aos pequenos e aos que não se consideram importantes que o reino dos céus pertence, dirá Jesus (ver Mt 18.10–14; Lc 18.16).
A combinação da palavra hesed (“bondade/lealdade”) com ’emet (“fidelidade”) é conhecida como hendíade, uma figura retórica cujo sentido não está no significado dos substantivos coordenados separadamente, mas em sua união. Com essa figura, Jacó afirmou que, apesar de não ser digno, havia recebido o melhor tratamento possível, o máximo a que poderia almejar da parte de Deus um ser humano. De fato, assim Deus é descrito no AT: “cheio de amor e fidelidade” (ver Êx 34.6; Sl 86.15).
Agora, porém, Jacó enfrentava um problema sério: o medo (31.11). Não confessou vitória, mas medo, e pediu ajuda. Em seu caso, apelou a uma promessa específica para ele: prosperidade e descendência numerosa (32.11–12). O patriarca conhecia as promessas de Deus e também conhecia o medo que lhe causavam seus inimigos. Em resumo, orou; porém, antes e depois da oração, fez preparativos para enfrentar a situação. Antes de orar, dividiu toda a caravana e o rebanho em dois grupos, de modo que pelo menos uma parte conseguisse escapar, caso Esaú os atacasse. Depois de orar, buscou um jeito de apaziguar o irmão. Com esse objetivo, elaborou um plano: uma série de presentes generosos. Da lista de animais que tinha, pelos quais disputara com Labão, tirou grupos de cem e de dez que iam chegando sucessivamente, para enviá-los a seu irmão. Cada grupo anunciava a Esaú que atrás chegaria seu irmão Jacó. No entanto, nesse dia, ele ficou em seu acampamento, no mesmo lugar onde o episódio havia se iniciado. Antes do encontro com seu irmão, Jacó teria uma experiência extraordinária.
Luta enigmática de Jacó contra um homem (32.22–32)
A cena se dá do lado oposto do rio Jordão, nas imediações do rio Jaboque. Jacó se encontrava sozinho e, como que do nada, o texto assinala: Veio então um homem, que lutou com ele até o amanhecer (32.24). Não se sabe quem era o homem, por que lutava com Jacó, nem que tipo de luta era essa. O verbo que se traduz por lutou (ye’abeq) tem som parecido com o de Jaboque (yaboq) e Jacó (ya‘aqob) em hebraico. Esse jogo de palavras é conhecido em retórica como paronomásia. Não sabemos quanto durou essa luta, mas o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, feriu-o na articulação da coxa com o quadril e a deslocou. Ainda assim, Jacó não o soltou, e o homem disse: Deixe-me ir, pois está amanhecendo! (32.26). Jacó lhe respondeu: Não o deixarei ir enquanto não me abençoar (32.26). O homem lhe perguntou seu nome e, ao ouvir a resposta, lhe disse que ele já não se chamaria Jacó, mas Israel, pois lutou com Deus e com os homens e venceu (32.28). Jacó não comentou coisa alguma sobre essa questão, mas perguntou ao homem como se chamava. O homem não respondeu, mas lhe perguntou o motivo da indagação.
O homem abençoou Jacó, mas primeiro mudou seu nome: a partir de então, o patriarca se chamaria Israel. A palavra “Israel” provém da união do verbo saráh (“brigar”, lutar”), que, conjugado na terceira pessoa do singular e unido a ’el (Deus), forma yisra’el: “aquele que luta com Deus”. Resumindo, o nome Israel está ligado à luta entre Jacó e “um homem” durante a madrugada. Esse foi um encontro propiciado por Deus: não ocorreu por iniciativa de Jacó. O lugar onde lutaram também recebeu um novo nome: Peniel, que significa “face de Deus”. Jacó havia visto Deus face a face. Disso tudo, deduzimos que o “homem”, com efeito, era o anjo de Deus (ver Os 12.4).