Mensageiro da graça
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Jonas 1.1–3 “Veio a palavra do Senhor a Jonas, filho de Amitai, dizendo: Dispõe-te, vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim. Jonas se dispôs, mas para fugir da presença do Senhor, para Társis; e, tendo descido a Jope, achou um navio que ia para Társis; pagou, pois, a sua passagem e embarcou nele, para ir com eles para Társis, para longe da presença do Senhor.”
Uma coisa é conhecer a doutrina da salvação por meio da graça, e outra bem diferente é conhecer a graça da doutrina da salvação. Esta é a lição de Jonas, o profeta que conhecia a graça de Deus, mas foi desafiado por Deus a abraçá-la. Sinclair Ferguson resumiu a história de Jonas com estas palavras: “É, na verdade, um livro sobre […] como um homem veio a descobrir, por meio de experiências dolorosas, o caráter verdadeiro de Deus, ao qual ele havia servido já em anos anteriores de sua vida. Ele precisava experimentar a doutrina sobre Deus (que lhe era familiar havia muito tempo) tornando-se realidade em sua experiência”.
Quando as pessoas pensam em Jonas, a maioria se lembra apenas do famoso peixe que o engoliu. A primeira pergunta delas é: Isso realmente aconteceu? Ou: Que tipo de peixe era esse? Mas para o livro essas perguntas são secundárias. O que é muito mais importante é que Jonas nos confronta com questões tão relevantes como a graça de Deus para os ímpios, a soberania de Deus sobre seus servos e a intensa luta humana com o perdão e arrependimento. Ferguson resume: “O livro de Jonas não trata tanto desse grande peixe que aparece no meio do livro […], [antes] pretende ensinar a Jonas que ele tem um Deus gracioso”.
A profecia de Jonas
Quando nos aproximamos de um livro de profecia, costumamos pensar em previsões do futuro ou pronunciamentos divinos para o povo de Deus. Mas o livro de Jonas relata basicamente a história da vida do próprio profeta. Os paralelos mais próximos são os relatos de Elias e Eliseu em 1 e 2Reis. Na verdade, visto que Jonas inicia seu ministério pouco tempo após Elias e Eliseu, é provável que ele tenha sido um de seus sucessores imediatos, e ele pode até ter sido um discípulo pessoal do segundo.
Pode ser útil saber algumas coisas sobre o mundo em que Jonas vivia. De acordo com 2Reis 14.25, Jonas serviu como profeta no tempo do rei Jeroboão II, um dos muitos reis ímpios do reino do norte de Israel. Já haviam se passado mais ou menos 150 anos desde a morte do rei Salomão, e fazia muito tempo que a nação estava dividida. Dez das 12 tribos de Israel haviam se unido nesse reino do norte, apenas Judá e Benjamim permaneciam fiéis ao trono davídico em Jerusalém e adoravam no templo construído por Salomão.
O reino do norte tinha muitos problemas, começando pela idolatria constante e rebelião contra o Senhor. Essa era a questão principal com a qual os profetas lidavam. No entanto, existiam também problemas políticos e militares, pois logo ao norte desse reino ficava o Império Assírio, a superpotência da época. Uma preocupação constante de Israel era preservar sua independência e seu poder contra essa ameaça.
Os profetas do reino do norte se dedicavam a duas tarefas principais. A primeira era chamar os reis e a nação para o arrependimento. Encontramos homens como Elias desafiando os sacerdotes de Baal e confrontando o rei com sua idolatria. Mas os profetas eram também mensageiros da graça. Repetidas vezes, Deus demonstrou sua misericórdia a seu povo desviado, frequentemente por meio do ministério desses profetas.
É nesse contexto que Jonas é mencionado em 2Reis. Durante algum tempo, a Assíria se encontrava dividida e sofria de fome, de forma que as antigas fronteiras de Israel puderam ser restauradas. Isso aconteceu pela mão de Deus, como demonstração de sua graça a Israel, para renovar sua esperança e incentivar seu arrependimento. O próprio Jonas havia proclamado as boas-novas:
Restabeleceu ele [o rei] os limites de Israel, desde a entrada de Hamate até ao mar da Planície, segundo a palavra do Senhor, Deus de Israel, a qual falara por intermédio de seu servo Jonas, filho de Amitai, o profeta, o qual era de Gate-Hefer. Porque viu o Senhor que a aflição de Israel era mui amarga, porque não havia nem escravo, nem livre, nem quem socorresse a Israel. Ainda não falara o Senhor em apagar o nome de Israel de debaixo do céu; porém os livrou por intermédio de Jeroboão, filho de Jeoás (2Rs 14.25–27).
Isso mostra que Jonas se encontrava numa posição extraordinária para ver a graça e a misericórdia de Deus. Israel não merecia o favor de Deus; na verdade, sua perversão merecia a ira de Deus. No entanto, Deus foi misericordioso. Ele estendeu sua mão para reunir seu povo desviado. Aqui, Jonas ocupava uma cadeira na primeira fila. Mas, como documenta este livro, Jonas ainda tinha muito a aprender sobre a graça de Deus, assim como nós.
A preocupação redentora de Deus com o mundo
O conflito de Jonas com a graça de Deus se manifesta desde o início do livro. A causa foi um chamado inesperado de Deus que chocou e repugnou o profeta. “Dispõe-te”, disse o Senhor, “vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim” (Jn 1.2). Esse é o tipo de ordem que um profeta precisa estar preparado a receber: um chamado para confrontar os ímpios com seus pecados. O que, então, deixou Jonas tão aborrecido? Foi simplesmente isto: seu conhecimento da graça de Deus. Jonas havia aprendido o que a maioria das pessoas não sabe, ou seja, que, quando Deus nos chama para lidar com nossos pecados, seu propósito é demonstrar sua misericórdia e assim salvar. Conhecendo a graça de Deus, Jonas suspeitou desde o início do propósito de Deus em relação à odiada cidade de Nínive.
Isso nos lembra de que Deus está ciente de tudo que acontece no mundo. A maioria das pessoas acredita que, se elas ignorarem Deus, Deus também as ignorará. Gostam de imaginar Deus – se é que pensam nele – como o relojoeiro cego que dá corda aos relógios e depois os entrega a si mesmos. Mas como diz Frank Page: “Esse texto retrata Deus como alguém que observa, como um Deus ativo e que leva o pecado a sério”. Nínive era uma cidade que, aparentemente, tinha pouco conhecimento sobre o Deus verdadeiro e que estava completamente entregue ao mal. No entanto, isso não significa que Deus não conhecia Nínive ou que ele já havia entregado a cidade ao Juízo Final. O mesmo vale hoje: as pessoas podem negar Deus, mas Deus não as nega, não ignora seu pecado e não deixa de estender sua misericórdia para a salvação delas.
Essa é uma verdade que muitos membros do povo de Deus têm achado difícil de aceitar. Eles se alegram quando Deus estende sua misericórdia a eles – mas não aos outros! Era essa a postura dos israelitas antigos, que se gabavam de ser o povo eleito de Deus. Os israelitas possuíam a palavra dos profetas e a aliança da graça de Deus. Mas se esqueceram de que as possuíam não exclusivamente para si mesmos, mas como legado para o mundo inteiro. O salmista cantou: “Seja Deus gracioso para conosco, e nos abençoe, e faça resplandecer sobre nós o rosto; para que se conheça na terra o teu caminho e, em todas as nações, a tua salvação” (Sl 67.1–2). Na verdade, o chamado de Israel para abençoar as nações remete à sua origem, à promessa de Deus ao patriarca Abraão: “de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção!” (Gn 12.2).
Nesse sentido, Jonas é uma figura que representa todo Israel. Ele ficou ressentido com a ideia de que o Deus de Israel pretendia enviar a graça de Israel aos não israelitas – especialmente aos cidadãos tão odiados de Nínive. O nome Nínive dominava seus pensamentos da mesma forma que Babilônia mais tarde preencheria de medo os corações judeus. Nínive era a capital militar da Assíria, um lugar de maldade e violência desenfreadas. Os melhores paralelos contemporâneos seriam as organizações terroristas mais violentas ou cartéis do narcotráfico, que atacam suas vítimas com prazer sanguinário. Uma visita ao British Museum, em Londres, que possui uma coleção fantástica de artefatos assírios, revela que os próprios assírios se retratavam como opressores sadistas e genocidas. Os israelitas do norte como Jonas – acredita-se que sua cidade natal de Gate-Hefer se situava no extremo norte da região – eram os que mais sofriam com as depredações assírias. Assim, Jonas era como os cristãos de hoje que desejam a graça de Deus para si mesmos e o julgamento de Deus contra os ímpios, especialmente contra aqueles que os machucaram. Como é fácil pedirmos a bênção de Deus para nós mesmos, enquanto oramos que ele amaldiçoe o colega que manchou nossa reputação, o ladrão que arrombou nossa casa ou o membro da família que nunca nos agraciou com uma palavra de carinho. Jonas não queria que Nínive fosse abençoada por causa daquilo que Nínive havia feito e poderia voltar a fazer. Seu conflito com a graça de Deus nasceu, pelo menos em parte, de repulsão, ódio e medo.
Uma avaliação espiritual
Deveríamos refletir sobre os erros revelados pela postura insatisfeita de Jonas. Poderíamos começar percebendo que o ressentimento em relação à graça de Deus é um sinal certo de declínio espiritual. Não nos surpreende que esse tipo de pensamento se manifestasse até mesmo nos profetas de um tempo como o de Jonas. O comentarista Hugh Martin do século 19 descreve esse tempo como
dias da degeneração de Israel, quando a fé cedeu ao formalismo; e a gratidão contrita, à cerimônia fria e superficial; quando o orgulho, curiosamente acompanhando a iniquidade e imprestabilidade crescentes, reivindicava arrogantemente o direito ao privilégio da aliança, na mesma medida em que violavam todo o espírito da aliança; quando o espírito fechado e limitado do legalismo, apoiando suas reivindicações em distinções carnais e dizendo: ‘Temos Abraão como nosso Pai’, solapou o verdadeiro espírito de Israel.”
Se refletirmos um pouco sobre a mentalidade de Jonas, nós nos lembraremos do espírito dos fariseus no tempo de Jesus. Martin comenta que Jonas “representa exatamente a parte do fariseu da parábola, enquanto o publicano represente talvez o desperdício do paganismo.
Como podemos saber se estamos nos aproximando desse tipo de atitude? Se a nossa preocupação primária na adoração for a nossa preferência e não o Deus cujo nome louvamos; se olharmos para os ímpios em nossa volta e virmos principalmente uma ameaça ao nosso estilo de vida cristão em vez de pecadores perdidos que precisam do evangelho; se orarmos por perdão dos nossos pecados, mas por justiça para os agentes de uma cultura ímpia, então não há dúvida de que o espírito fariseu de Jonas está dentro de nós.
Em segundo lugar, o ressentimento de Jonas revela sua profunda ignorância de Deus. Ele via o Senhor como seu Deus e como Deus de Israel, mas não como o Deus de Nínive.
O Deus verdadeiro é o Deus de toda a terra e de todos os povos.
O ressentimento de Jonas revela também sua ignorância de si mesmo como pecador e do modo de justificação de Deus. Paulo escreve: “… todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.23–24). A pessoa que entende isso jamais voltará a olhar para a oferta de perdão para todos com outra postura que não seja maravilha e alegria. Um Jonas espiritualmente vibrante teria aceitado com gratidão o chamado de Deus para pregar em Nínive. Ele teria se lembrado da forma como fora salvo do seu pecado e justificado pela graça, recebida exclusivamente por meio da fé, e teria corrido até Nínive o mais rápido possível. Mas como sempre acontece – e como aconteceu também no caso dele – com aqueles que se apresentam a Deus com reivindicações de seu próprio mérito, confiando pelo menos em parte em suas obras ou em sua herança e não completamente na graça de Deus, há a perda do entusiasmo pela ideia da graça salvífica para os ímpios.
Graça para as nações
A ideia de que o chamado do evangelho se estendia também a Nínive era algo novo e apavorante para a mente de Jonas. Até então, a graça de Deus havia se restringido a Israel. Apenas Israel celebrava a Páscoa. Apenas Israel possuía o templo do Senhor e os sacrifícios pelo pecado. Mas, espalhados entre os profetas anteriores, especialmente nos ministérios de Elias e Eliseu, já haviam surgido sinais de algo que ia além disso.
Quando, por exemplo, Elias anunciou escassez de alimento em Israel, ele partiu para viver em regiões dos gentios. “Dispõe-te, e vai a Sarepta, que pertence a Sidom, e demora-te ali”, Deus lhe disse, “onde ordenei a uma mulher viúva que te dê comida” (1Rs 17.9). O profeta de Israel alimentado por uma mulher pagã, já que Israel estava faminto! Observe a semelhança notável disso com o chamado de Deus a Jonas: “Dispõe-te, vai à grande cidade de Nínive”. Sugere que o chamado de Deus dirigido a Jonas era uma advertência ao Israel incrédulo. Se Israel endurecesse seu coração, Deus encontraria fiéis em outros lugares que acolheriam seus profetas.
Eliseu também se envolveu com os gentios. Um general siro chamado Naamã sofria de lepra e não conseguia encontrar uma cura. Então, sua escrava israelita lhe falou do profeta, e assim o siro saiu à procura de Eliseu. Naamã foi curado e voltou para casa como adorador do Deus verdadeiro. Isso demonstrou que as bênçãos salvíficas de Deus não se limitam a uma nação ou tribo, mas que todos que vêm em fé serão salvos.
Esses dois episódios são justamente os relatos que Jesus citou quando falou sobre esse assunto na sinagoga de Nazaré. Jesus havia se revelado como o Messias prometido, mas sua cidade natal não queria recebê-lo. Então Jesus respondeu:
“Na verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou por três anos e seis meses, reinando grande fome em toda a terra; e a nenhuma delas foi Elias enviado, senão a uma viúva de Sarepta de Sidom. Havia também muitos leprosos em Israel nos dias do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado, senão Naamã, o siro (Lc 4.25–27).”
Os nazarenos pensavam como Jonas: “Todos na sinagoga, ouvindo estas coisas, se encheram de ira. E, levantando-se, expulsaram-no da cidade” (Lc 4.28–29). Isso revela uma trajetória clara entre as experiências de Elias e Eliseu, o chamado de Jonas para ir a Nínive e o chamado do evangelho de Jesus para as nações. O chamado de Deus a Jonas fazia parte desse grande plano para trazer salvação para o mundo inteiro. Desde sempre, este havia sido o plano de Deus, assim como havia dito a Abraão, pai de Israel: “… em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3).
Jonas não havia compreendido essa verdade. Ele acreditava na graça de Deus, mas ficou ressentido quando Deus demonstrou sua misericórdia aos ímpios em Israel. E certamente ele não acreditava na graça de Deus para o mundo inteiro. De certa forma, ele queria que Israel fosse glorificado ou até mesmo que apenas os justos de Israel fossem glorificados. O que ele precisava aprender era que o propósito da graça de Deus era que Deus fosse glorificado e que sua glória fosse manifestada no mundo inteiro.