Salmos do lar: construindo a casa ou um lar?
Notes
Transcript
(Sl 127)
Um adesivo de carro nos adverte sobre prioridades confusas, ao declarar: “Nenhum sucesso na vida compensa o fracasso no lar”. Ele resume o que Salmo 127 também diz. Como tão facilmente nos esquecemos do que realmente tem valor em meio ao corre-corre da vida moderna! Como se o lema da vida fosse: “Quem morre com mais brinquedos, ganha”.
A busca desenfreada por sucesso, status, bens e fama acaba vendando nossos olhos para os maiores presentes que Deus nos concede, que se encontram na nossa sala de estar. O que adianta construir casas quando falhamos na edificação de um lar? Por que trabalhar incansavelmente sem curtir o fruto do nosso trabalho em companhia dos nossos amados?
Esse salmo nos alerta para o perigo de prioridades invertidas. Sua simplicidade nos lembra que Deus nos presenteia com a família, que precisa ser valorizada e bem cuidada, na dependência total dele.
Contexto
Salmos 127 e 128 são salmos de peregrinação. Juntos, descrevem as bênçãos de uma família centrada no Senhor e na sua aliança. Trabalho excessivo, especialmente quando feito com um espírito de autossuficiência, independência e avareza culmina em frustração. Mas uma vida equilibrada, em que o Senhor constrói a “casa” e preserva seus frutos, desfruta das bênçãos dele. Riqueza verdadeira (“herança” e “galardão”, v. 3) manifesta-se em filhos da mocidade (127:3–5; 128:3b), uma esposa frutífera (128:3a) e netos (128:6).
Os salmos de peregrinação (Sl 120–134) faziam parte da coleção sagrada de hinos de Israel, usados em períodos quando o povo subia os montes sagrados de Jerusalém para celebrar o Senhor e lembrar-se da sua aliança e das suas obras de bondade para com Israel. Três vezes por ano, famílias inteiras viajavam juntas em caravanas, cantando esses salmos de louvor e de exortação.
1. O fruto da avareza: a futilidade da autossuficiência
Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela. Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem (v. 1,2).
A palavra que traduz a expressão “em vão” e a palavra “inútil” descrevem o que é “vazio, vão, sem sentido” — ou seja, fútil, frustrante, que não leva ao fim desejado. O texto destaca três ocupações humanas que são fúteis sem o envolvimento do Senhor (v. 1,2):
• Construir a casa/lar.
• Guardar a cidade.
• Trabalhar duro sem depender do Senhor.
Para peregrinos que deixaram suas casas, aldeias e campos durante uma semana ou mais para subir a Jerusalém e adorar ao Senhor, essa lembrança de que ele guardava suas habitações e cidades seria particularmente encorajadora.
O salmista condena a avareza que culmina no menosprezo do lar, algo extremamente comum nos dias de hoje. Egoísmo leva ao menosprezo de filhos, pois os pais muitas vezes se interessam mais pelo seu próprio bem-estar, prazer, divertimento e carreira do que pela criação de filhos. Cobiça e avareza são pecados relacionados ao egoísmo e influenciam decisões quanto à paternidade também.
A. Construção vã
A construção em vista pode ser de uma casa física ou a própria edificação de um lar. Mas a primeira opção parece mais viável. O texto traz a ideia de um serviço pesado, de labor e fadiga que não chega a nada quando feito na autossuficiência.
B. Vigilância vã
O texto literalmente diz: “Se o Senhor não guardar a cidade, futilmente fica acordado o guarda”. Sem Deus como nosso protetor, não existe guarda humano que consiga garantir segurança. Sistemas sofisticados de alarmes, cercas elétricas, propriedades monitoradas por câmera, carros rastreados por satélite — tudo isso, à parte do Senhor, é vão. O fruto do nosso muito labor pode ser dissipado num instante.
C. Trabalho vão
O terceiro “vão” do texto descreve o trabalho duro de se arrastar da cama antes do nascer do sol, ficando até depois que todos os outros trabalhadores já foram para casa.
Somos lembrados de que a bênção de Deus que é o nosso pão de cada dia (veja Ec 2:23,24) se mistura com o gosto amargo quando produzido em meio à ansiedade e à autossuficiência.
Deus concede descanso e paz (e, por implicação, sustento) aos seus filhos que dependem dele para realizar nele e por meio dele o que eles não conseguiriam fazer sozinhos (construir, guardar, trabalhar).
Deus quer que o lar seja um lugar de tranquilidade, paz e alegria.
O livro de Eclesiastes, que destaca a futilidade da vida sem Deus debaixo do sol, nos lembra de que trabalhar, comer, beber e desfrutar da família são presentes de Deus:
Nada há melhor para o homem do que comer, beber e fazer que a sua alma goze o bem do seu trabalho. No entanto, vi também que isto vem da mão de Deus, pois, separado deste, quem pode comer ou quem pode alegrar-se? (Ec 2:24,25).
Desfruta a vida com a mulher que amas todos os dias desta vida de ilusão, que Deus te deu debaixo do sol, sim em todos os dias da tua vida de ilusão. Porque essa é a tua recompensa nesta vida pelo trabalho que fazes debaixo do sol. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o com todas as tuas forças, porque na sepultura, para onde vais, não há trabalho, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria (Ec 9:9,10, A21).
Que tragédia quando perdemos de perspectiva a razão pela qual fomos criados e corremos atrás de vaidades que logo se derreterão (2Pe 3:10,11)! Ou seja, alguém pode gastar toda a sua energia, tempo e bens para construir casas lindas, ao mesmo tempo que destrói seu lar.
2. O fruto da graça: a bênção do Senhor em família
Herança do Senhor são os filhos; o fruto do ventre, seu galardão. Como flechas na mão do guerreiro, assim os filhos da mocidade. Feliz o homem que enche deles a sua aljava; não será envergonhado, quando pleitear com os inimigos à porta. (v. 3–5)
A segunda parte desse salmo muda o foco da construção da casa para a construção do que é mais precioso dentro dela — os filhos! Assim como a perspectiva do salmista (e de Deus) sobre trabalho foi radicalmente diferente da perspectiva do mundo nos primeiros versículos, ele corrige a maneira com que o mundo (e muitos entre nós) encara os filhos nos versículos 3–5.
Apesar de comemorações nacionais como o “Dia das Crianças”, a sociedade vem adotando uma atitude cada vez mais hostil para com a criação de filhos. Filhos interrompem, muitas vezes, carreiras promissoras. Bagunçam o orçamento familiar. Alteram radicalmente nosso estilo de vida. E, depois de dar tanto trabalho, nem sempre saem do jeito que esperávamos. E se saem, muitas vezes vão embora sem dizer sequer um “Obrigado, papai”, “Obrigado, mamãe!” Será que vale a pena ter filhos?
Há várias evidências de atitudes prejudiciais a filhos na nossa sociedade: o alto índice de aborto; planejamento familiar que adia indefinidamente a paternidade ou a anula; maus-tratos a crianças; pedofilia; diminuição do tamanho da família pós-moderna; negligência de filhos; criação “terceirizada” a babás, avós, creches.
Ao mesmo tempo que alguns encaram crianças como uma inconveniência, ou pior, uma praga, outros na nossa cultura tendem para outro extremo, que podemos chamar de “filholatria”. Quem manda em casa é o Júnior! Ai dos pais que tentam contrariar esse pequeno “mandachuva”.
Hoje vemos pais com medo de contrariar ou disciplinar seus filhos, que permitem que o filho seja o centro das atenções, tendo precedência ao relacionamento marido-esposa.
Há uma tendência muito forte em nossos dias de tornar os filhos o centro do universo familiar. Em seu livro sobre paternidade Educação de filhos à maneira de Deus, os autores Gary e Anne Marie Ezzo afirmam que “filhocentrismo” menospreza o relacionamento marido-esposa, tornando os filhos o “eixo” da família, e não o relacionamento conjugal. Isso acaba minando o alicerce da família. Em vez disso, os filhos devem ser considerados membros bem-vindos ao círculo familiar, e não o centro da atenção.
Mary A. Kassian e Nancy Leigh DeMoss ressaltam o valor das crianças aos olhos de Deus e o privilégio de ser pais:
Ter e criar filhos é precioso aos olhos da Bíblia. Um dos alvos mais sublimes do casamento é ter e criar filhos para a glória de Deus. Ser esposa e mãe é um chamado nobre e santo, e temos de continuar incentivando as mulheres que aceitam a incumbência do casamento e da maternidade como um meio de glorificar a Deus e expandir seu reino. A Bíblia toda ensina que os filhos são bênçãos. Deus ama as crianças! Se você tem uma atitude negativa para com elas, então o seu coração não está no compasso do coração de Deus.
Nestes tempos em que tantas crianças são abortadas, abandonadas e entregues a paternidades artificiais, precisamos de uma visão renovada dos privilégios e das responsabilidades da criação de filhos. Como Köstenberger ressalta, “Os dois Testamentos ensinam que os filhos são bênção de Deus (Sl 127:3–5; Mc 10:13–16) e consideram particularmente hediondo matar crianças (Êx 1:16,17,22; Lv 18:21; Jr 7:31,32; Ez 16:20,21; Mq 6:7; Mt 2:16–18; At 7:19).
A pessoa que edifica seu lar na dependência do Senhor e, em vez de dedicar sua vida à busca de tesouros materiais, em busca dos próprios propósitos cria vidas preciosas, essa, sim, é verdadeiramente abençoada em tudo que realizar. Podemos dizer que o sucesso no lar, pela graça de Deus, compensa todo e qualquer suposto “fracasso” na vida. Não é quem morre com mais brinquedos que ganha, nem quem morre com mais filhos. Mas aquele que valoriza seus filhos, evita a autossuficiência e mantém seus valores focados naquilo que representa um legado eterno é realmente abençoado.