Bem Aventurados os HumildesMt
Jesus exemplo vivo
No AT, os humildes são aqueles que confiam inteiramente em Deus, mais do que em suas próprias forças, para defendê-los contra toda injustiça. Assim, a atitude humildade para com os ímpios implica em saber que Deus está permitindo as injúrias que infligem, que Ele os está usando para purificar seus eleitos, e que livrará Seus eleitos a Seu tempo. (Is 41:17; Lc 18:1–8) Bondade ou humildade são opostos à arrogância e egoísmo e originam-se na confiança na bondade de Deus e no Seu controle sobre a situação. A pessoa bondosa não está centrada no seu ego. Isto é obra do Espírito Santo, não da vontade humana. (Gl 5:23
Não nos identificamos muito bem com a ideia de humildade. Humildade é fraqueza – ou, pelo menos, parece que é. Então, o que é essa humildade ou mansidão que traz a bênção de Deus sobre nós? Pessoas humildes têm uma visão verdadeira de si mesmas. Entendem sua pobreza espiritual diante de Deus e a graça maravilhosa que lhes deu uma posição justa perante Deus, e, por causa da misericórdia de Deus e da bênção para elas, são mansas, humildes, sensíveis e pacientes com outras pessoas.
Essas pessoas humildes, acrescentou Jesus, “receberão a terra por herança”. Você esperaria o oposto: que as pessoas humildes não chegassem a lugar nenhum porque todos as ignoram ou pisam nelas. Os durões, os dominadores, ganham a batalha no mundo ou no local de trabalho; os fracos são derrotados. É assim que normalmente pensamos, mas, no reino de Cristo, os princípios que governam este mundo são inversos. A herança que recebemos de Jesus não é obtida por meio do poder, mas por meio da humildade.
Os santos e humildes de Deus sempre compreenderam esta realidade espiritual. No Salmo 37 – o qual Jesus parece citar nesta bem-aventurança –, lemos:
Mas os humildes receberão a terra por herança e desfrutarão pleno bem-estar (v. 11).
Aqueles que o Senhor abençoa receberão a terra por herança (v. 22).
Espere no Senhor e siga a sua vontade. Ele o exaltará, dando-lhe a terra por herança (v. 34).
O mesmo princípio está em ação hoje. Os ímpios podem se vangloriar e dar ordens o tempo todo, mas não alcançam a verdadeira alegria e satisfação. Por outro lado, os que seguem a Cristo, ainda que privados de grande parte das coisas do mundo, podem desfrutar e possuir a terra. Vivemos e reinamos com Cristo mesmo em um mundo caído. Então, no dia da regeneração de todas as coisas, haverá novos céus e uma nova terra para herdarmos.
O caminho de Cristo é diferente do caminho do mundo, e todo cristão, ainda que – como o apóstolo Paulo – “nada” tenha, pode se descrever como “possuindo tudo” (2Co 6.10).
INTRODUÇÃO
É provável que o Sermão do Monte seja a parte mais conhecida do ensino de Jesus, embora discutivelmente, seja o menos compreendido e, sem dúvida, ao que menos se obedece. Do que ele já proferiu é o que mais se aproxima de um manifesto, pois é sua própria descrição do que queria que seus seguidores fossem e fizessem.
O sermão é encontrado no Evangelho de Mateus já quase no início do ministério público de Jesus. Logo após seu batismo e tentação no deserto, Jesus começou a anunciar as boas novas de que o reino de Deus há muito prometido estava começando. Ele havia vindo, de fato, para inaugurá-lo. Com Jesus despontou a nova era, e o domínio de Deus irrompeu na história. “Arrependam-se”, clamou Jesus, “pois o Reino dos céus está próximo” (Mt 4.17). Mateus acrescenta que Jesus “foi por toda a Galileia, ensinando nas sinagogas deles, [e] pregando as boas novas do Reino” (Mt 4.23). É preciso ler e compreender o Sermão do Monte nesse contexto. Ele descreve como são a vida e a comunidade humanas quando estão sob o domínio gracioso de Deus.
E o que parecem? Diferentes! Jesus enfatiza nesse sermão que seus verdadeiros seguidores, os cidadãos do reino de Deus, devem ser inteiramente diferentes dos outros. Eles não devem aproveitar o exemplo das pessoas que os cercam, mas de Jesus, e assim provar serem filhos genuínos de seu Pai celestial. O caráter dos seguidores de Jesus deve ser marcado por qualidades distintas das do mundo. Eles devem brilhar como luzes nas trevas prevalecentes. Suas ações justas devem exceder os feitos até mesmo dos líderes religiosos, enquanto seu amor deve ser maior e sua ambição, mais nobre do que a exibida por seu próximo incrédulo.
Os seguidores de Jesus devem ser diferentes – diferentes tanto da igreja transigente quanto do mundo secular. O Sermão do Monte é a descrição mais completa no Novo Testamento da contracultura cristã. Esta é a vida no reino, uma vida totalmente humana vivida sob o domínio de Deus. Algumas pessoas leem este sermão e concluem que ninguém pode, de fato, colocar em prática os princípios e ordenanças escritos aqui. Concluem que o ensino nesses capítulos representa o idealismo pouco prático de um visionário. É um sonho que jamais poderia se concretizar. No extremo oposto estão aquelas pessoas que, com loquacidade, afirmam “viver de acordo com o Sermão do Monte”. Quando ouvimos uma pessoa dizer isso, provavelmente é melhor assumirmos que ela nunca leu de fato o sermão!
A verdade sobre como devemos ler o sermão é que ambos os extremos estão errados. Jesus sustentou esses padrões como princípios de vida no reino, mas também concluiu que era preciso muito mais do que mero esforço humano para alcançar esses padrões. Os objetivos do sermão podem ser alcançados, mas apenas por aqueles que conheceram o novo nascimento e que têm acesso ao poder capacitador do Espírito Santo. Jesus proferiu o sermão para aqueles que já eram seus discípulos, cidadãos do reino de Deus e filhos na família de Deus. Sem a transformação do novo nascimento, este sermão nos levará apenas ao otimismo superficial ou desespero irremediável.
O Sermão do Monte tem algo único que o torna fascinante. Ele apresenta a essência do ensino de Jesus, torna a bondade algo atraente, envergonha nossas realizações mesquinhas, desperta sonhos de um mundo melhor. Tenho de confessar que fui enfeitiçado por ele – ou melhor, enfeitiçado por aquele que o pregou. Meu objetivo nestas leituras é permitir que o sermão fale ou, melhor, permitir que Jesus o fale novamente. É um sermão que a igreja precisa ouvir de novo.
Jesus não nos deu um tratado acadêmico pensado meramente para estimular a mente. Acredito que a intenção de Jesus era a de que seu sermão fosse obedecido. Se os cristãos aceitassem sinceramente os padrões e valores de Jesus e vivessem de acordo com eles, nós nos tornaríamos a sociedade radicalmente diferente que Jesus sempre intentou que fôssemos – e o mundo veria e creria.
JOHN STOTT
1 MATEUS 5.1–6
DESENVOLVENDO O CARÁTER ESPIRITUAL
OUVINDO JESUS
MATEUS 5.1–2
1Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte e se assentou. Seus discípulos aproximaram-se dele, 2e ele começou a ensiná-los.
Todo mundo que já ouviu falar de Jesus de Nazaré e sabe qualquer coisa sobre seu ensino deve certamente estar familiarizado com as bem-aventuranças, as primeiras declarações do Sermão do Monte. A simplicidade em termos de palavras e a profundidade de pensamento dessas bem-aventuranças têm atraído cada nova geração de cristãos e estudantes de religião de todas as culturas. Quanto mais exploramos o modo como respondemos ao desafio destes versículos, mais parece restar a ser explorado. A riqueza deles é inesgotável. Não podemos esgotá-los totalmente.
Antes de estarmos prontos para considerar cada bem-aventurança separadamente, precisamos considerar algumas questões gerais.
As pessoas. As bem-aventuranças definem o caráter de um cristão, um seguidor de Cristo. Não se trata de oito tipos separados e distintos de discípulo – alguns que sejam humildes, outros que sejam misericordiosos e ainda outros que são chamados a sofrer perseguição. Em vez disso, são oito qualidades a serem encontradas na mesma pessoa – uma pessoa que seja humilde e misericordiosa, pobre em espírito e pura de coração, chore e tenha fome, seja pacificadora e perseguida, tudo ao mesmo tempo.
Além disso, aqueles que exibem essas marcas não são precisamente um grupo elitista, um conjunto de santos espirituais ou líderes da igreja que vivem acima dos cristãos comuns. Pelo contrário, as bem-aventuranças são a própria especificação de Jesus sobre o que cada cristão deveria ser. Todas essas qualidades devem ser características de todos os seus seguidores.
As qualidades. Alguns estudiosos do sermão argumentam que Jesus está fazendo uma declaração sobre justiça social quando fala sobre os pobres e os que têm fome. Acreditam que Jesus está chamando seus seguidores a repararem as desigualdades e injustiças do mundo. Jesus certamente não era indiferente à pobreza material e fome física, mas as bênçãos de seu reino não são, principalmente, econômicas. A pobreza e a fome às quais ele se refere nas bem-aventuranças são condições espirituais. Jesus abençoa “os pobres em espírito” e “os que têm fome e sede de justiça”.
A igreja sempre erra toda vez que usa a bênção de Jesus em relação aos que são “pobres em espírito” para aceitar a pobreza em geral ou sugerir a pobreza voluntária daqueles que fazem voto de renunciar aos bens materiais. Jesus pode chamar alguns de seus seguidores a uma vida de sacrifício e até de pobreza, mas não é isso que ele tinha em mente quando pronunciou a bênção de Deus sobre aqueles que se veem de mãos vazias diante da farta mesa da graça de Deus.
BEM-AVENTURADOS…
MATEUS 5.1–2
1Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte e se assentou. Seus discípulos aproximaram-se dele, 2e ele começou a ensiná-los.
Outro tópico que precisa ser discutido antes de examinarmos cada uma das bem-aventuranças é a bênção que Jesus promete. Cada indivíduo que exibe a qualidade recomendada por Jesus é chamado de “bem-aventurado”. A palavra grega makarios significa “feliz”, portanto a tradução do Novo Testamento que você está lendo pode dizer: “Felizes os que […]”. Vários comentaristas explicam as bem-aventuranças como prescrição de Jesus para a felicidade humana.
Ninguém sabe melhor do que nosso Criador como trazer felicidade ao ser humano. Ele nos fez e sabe como funcionamos melhor. Mas é um sério equívoco traduzir makarios por “felizes”. A felicidade é subjetiva, enquanto Jesus está fazendo um julgamento objetivo sobre essas pessoas. Ele não está declarando o que elas podem sentir em uma determinada ocasião (felizes), mas o que Deus pensa a respeito delas e do que elas realmente são: bem-aventuradas.
A segunda metade da bem-aventurança explica a bênção que desfrutam os que exibem essas qualidades. Eles possuem o reino dos céus e herdam a terra. Os que choram são consolados e os que têm fome, satisfeitos. Recebem misericórdia, veem a Deus, são chamados filhos de Deus. Grande é a sua recompensa celestial. E todas essas bênçãos são desfrutadas ao mesmo tempo. Assim como as oito qualidades descrevem todo cristão, as oito bênçãos são dadas a todo cristão. É verdade que a bênção em particular prometida em cada caso é apropriada à qualidade descrita em particular. Ao mesmo tempo, certamente não é possível herdar o reino dos céus sem herdar a terra, ser consolado sem ser satisfeito ou ver a Deus sem receber a misericórdia divina.
As oito qualidades juntas constituem as responsabilidades e as oito bênçãos, os privilégios que o cristão recebe por ser cidadão do reino de Deus. É isso que significa desfrutar da lei de Deus em nossa vida.
POBREZA NO ESPÍRITO
MATEUS 5.3
3Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o reino dos céus.
Quando lemos a primeira bem-aventurança diante do contexto do Antigo Testamento, vemos que, a princípio, ser “pobre” significava necessitar literalmente de coisas materiais. Mas, aos poucos, uma vez que os necessitados não têm outro refúgio senão em Deus, a pobreza passou a ter implicações espirituais e ser identificada com humilde dependência de Deus. Os pobres no Antigo Testamento são tanto os aflitos como os que não podem salvar a si mesmos. São pessoas que dependem de Deus para serem libertadas, enquanto reconhecem que não têm nenhum direito sobre ele.
Portanto, ser “pobre em espírito” é reconhecer nossa pobreza espiritual diante de Deus. Somos pecadores, sob a santa ira de Deus, e não merecemos outra coisa senão seu juízo. Nada temos a oferecer, nada com que comprar o favor do céu. Aos que reconhecem e confessam sua falência espiritual diante de Deus – e apenas a eles – é dado o reino de Deus. A lei de Deus é uma dádiva, absolutamente gratuita e completamente imerecida. Ela deve ser recebida com a humildade e a fé de uma criança.
É provável que os ouvintes de Jesus tenham ficado atônitos com essa afirmação. Bem no início do sermão, Jesus contradiz todos os julgamentos e expectativas humanos sobre o reino de Deus. O reino é dado aos pobres, não aos ricos; aos fracos, não aos poderosos; às crianças humildes o suficiente para recebê-lo, não aos soldados que o tomariam à força.
Na própria época de Jesus, não eram os líderes religiosos e estudiosos – homens e mulheres que se consideravam ricos em mérito diante de Deus por observarem meticulosamente a lei – que entravam no reino de Deus. Nem os nacionalistas zelosos que sonhavam em estabelecer o reino por meio do derramamento de sangue e da violência. Os que entravam no reino da graciosa lei de Deus eram coletores de impostos e meretrizes, os rejeitados da sociedade humana que se sabiam tão pobres que nada podiam oferecer nem realizar. Tudo o que podiam fazer era clamar a Deus por misericórdia – e ele ouvia o clamor deles.
Essa ainda é uma verdade hoje: a condição indispensável para recebermos o reino de Deus é reconhecermos nossa pobreza espiritual. Deus ainda dispensa os ricos com as mãos vazias. O caminho para cima no reino de Deus é o caminho para baixo.
QUEM É VOCÊ DIANTE DE DEUS?
MATEUS 5.3–5
Por volta dos meus sete anos, fui trocado de sala na escola em que estudava. Lembro-me muito bem daquela mudança de ambiente. Foi bastante traumático para mim. E ainda consigo sentir como foi ouvir todos os meninos e meninas da nova turma entoando, em coro uníssono, as seguintes palavras: “Jesus abriu sua boca e os ensinava, dizendo: ‘Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus’ ”. Meus colegas de sala haviam memorizado o que costumamos chamar de “As Bem-Aventuranças”. Eu não as conhecia nem sabia como localizá-las na Bíblia. E como até então eu não conhecia ao Senhor, não seria uma surpresa que eu não tivesse conhecimento nenhum sobre o significado daquelas palavras, mesmo após eu mesmo tê-las decorado!
É perceptível que as Bem-Aventuranças pertencem a um mundo diferente desse em que vivemos. Uma bem-aventurança é algo que associamos exclusivamente ao Sermão do Monte. Nós não costumamos chamar alguém de bendito, bem-aventurado. Mesmo pessoas ensinadas a intitular Maria, a mãe de Jesus, de “a virgem abençoada [ou beata]” podem não compreender o significado das Bem-Aventuranças.
Mas as declarações encontradas em Mateus 5.3–12 não deveriam soar estranhas a pessoas familiarizadas com as Escrituras. O Livro de Salmos, por exemplo, começa com uma bem-aventurança: “Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores” (Sl 1.1). Da mesma forma, o Salmo 32 se inicia com duas bem-aventuranças: “Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto. Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui iniquidade e em cujo espírito não há dolo” (Sl 32.1–2; Rm 4.7–8). Uma bem-aventurança é certamente linguagem familiar aos leitores do Antigo Testamento. Mas o que ela significa? Quem é o “bem-aventurado”?
Benção e seu oposto na linguagem bíblica, maldição, são palavras intimamente relacionadas ao pacto de Deus com o Seu povo. De acordo com a promessa e a fidelidade do Senhor, aqueles que fossem fiéis a Ele experimentariam e viveriam Suas bençãos; os que, no entanto, não se voltassem a Deus, experimentariam Seu julgamento e maldição. A aliança de Deus com Abrão ilustra isso. Quando chamou Abrão, Deus prometeu abençoá-lo e trazer bênção sobre toda a terra por meio dele (Gn 12.2–3).
Mais tarde, na aliança no Sinai, isso fica ainda mais claro. Deuteronômio 28.1–14 contém todas as promessas de Deus para abençoar o Seu povo quando em obediência à palavra da aliança, ao passo que os versículos 15–68 registram as maldições e o julgamento que acompanhariam a desobediência.
A bênção é simplesmente a comunhão com Deus, o experimentar da promessa do pacto: “Vós sereis o meu povo, Eu serei o vosso Deus”. Isso significa ter o relacionamento correto com Deus e desfrutar dele como se deve. É por isso que os capítulos iniciais da Bíblia registram Deus abençoando Sua criação e Suas criaturas (Gn 2.3). Tanto que por vezes o termo bem-aventurado tem sido traduzido por divinamente feliz.
As Bem-Aventuranças, portanto, não se concentram no que nós temos de fazer; ao invés disso, elas descrevem as bênçãos — o pacto da graça e a alegria — que pertencem a todos cuja vida manifesta as marcas do reino de Deus. Ao expor cada bem-aventurança em Mateus 5, Jesus também explica o porquê de cada bênção.
De vez em quando ficamos um pouco confusos quanto à natureza do ensino de Jesus, de onde Seus ensinamentos provêm, e em nenhuma outra parte essa ocorrência se faz mais presente do que nas Bem-Aventuranças. As palavras de Jesus não foram inspirações momentâneas, algum tipo de insight ou de revelação repentina. Mas o ensino de Jesus, na maior parte das vezes, tomava a forma de exposição ou aplicação e elucidação das Escrituras.
As Bem-Aventuranças estão enquadradas nesse fato. Mais especificamente falando, Jesus tomou alguns temas registrados nos Salmos, no livro de Isaías e aplicou-os em Seus discípulos. Ele estava ressaltando o que a Palavra de Deus nos diz sobre o que é a vida bem-aventurada. O “novo” elemento não eram as Bem-Aventuranças em si ou o fato de serem expostas por Jesus. A “novidade” estava no pano de fundo, Jesus discursava em um cenário no qual a Palavra de Deus fora obscurecida. As pessoas haviam perdido de vista onde a verdadeira bem-aventurança deveria ser encontrada.
A voz de Jesus precisa ser ouvida novamente pelos cristãos. Quão depressa nos desviamos da perspectiva de Cristo!
Podemos rapidamente pôr à prova o que acabou de ser dito. O que o seu coração tem determinado ser vital para a sua vida e seu caráter? Quais são as oito coisas que você mais deseja ver desenvolvidas e progredidas em sua vida? Talvez seja uma boa ideia montar uma lista. Contudo, ela estaria a favor do que Jesus declarou? Sua lista inclui pobreza de espírito, humildade, fome e sede de justiça, misericórdia, pureza de coração, um espírito pacificador e uma disposição para ser perseguido por causa de Jesus? Ou você acha que a verdadeira bem-aventurança deve ser encontrada em outro lugar ou em outras coisas?
Nosso Senhor diz que todas as demais supostas bênçãos não passam de miragens no deserto. Elas podem prometer muitas coisas, mas nada conseguem produzir, a não ser decepção e frustração. A única vida que Deus abençoa é aquela marcada por Seus valores, característica daqueles que pertencem ao reino de Deus.
Os cristãos se diferem de muita formas, mesmo na personalidade, nos interesses, na origem social e nas habilidades intelectuais. Quão diferentes nós somos uns dos outros! Ainda assim, de acordo com o Novo Testamento, todos pertencemos à mesma família e temos os mesmos traços, somos consanguíneos, e estes estão listados nas Bem-Aventuranças.
Quantas e quantas vezes fui surpreendido e fiquei encantado ao encontrar cristãos que admiro e respeito pelo serviço que prestam e pelo ministério que exercem — homens e mulheres, em vários aspectos, muito diferentes uns dos outros, cujas personalidades, no entanto, expressam características consonantes, demonstrando pertencer, assim, à mesma família, à de Cristo. Isso é possível porque o mesmo Cristo transforma o Seu povo à Sua semelhança sem eliminar a identidade individual de cada crente. Isso, sim, é bênção em abundância!
As três bem-aventuranças iniciais descrevem o cristão como alguém pobre de espírito, que chora e que é manso. Há um elemento em comum nessas características, e é o reconhecimento de que quem somos na presença de Deus é quem realmente somos; nem mais, nem menos. Somente estes pertencem ao reino de Deus e recebem o encorajamento e o conforto de Sua graça. Somente eles têm seus prantos transformados em folguedos (Sl 30.11) e entram na realidade da terra prometida a Abraão (uma figura de Cristo e de Sua autoridade sobre todas as terras).
O POBRE DE ESPÍRITO
A pobreza de espírito não se trata de condição financeira ou depressiva, embora muitos acreditem nisso, ainda que não seja verdade. Alguns cristãos doaram todas as suas posses com base nesta bem-aventurança, contudo um homem pode nada possuir e, ainda, não ser pobre de espírito. A pobreza de espírito também não é uma autoimagem negativa, na qual baixa estima, introversão e morbidez predominam. Novamente, um homem pode estar marcado com todas estas características e, contudo, nada entender sobre o que Jesus quis dizer.
No Antigo Testamento, a expressão os pobres beira a termo técnico, utilizado para designar um grupo específico de pessoas. O Salmo 34.6 menciona este “aflito”; ele clama ao Senhor, o Senhor então o ouve e o salva. No Salmo 40.17, o autor se descreve como “pobre e necessitado” e pede ao Senhor para que se lembre dele e o salve. Outras passagens, à semelhança das anteriores, enfatizam que ser pobre é ser fraco, e ser necessitado é ser destituído e impossibilitado de proteger e salvar a si mesmo. Os pobres são os necessitados e os cativos que “buscam a Deus” como único refúgio e salvação (Sl 69.32–33). Eles são, reconhecendo-se como tais, os arruinados deste mundo, confiando, por isso, no Senhor como única esperança de proteção e libertação.
Mas o que é pobreza de espírito? Ao falar sobre os “pobres de espírito”, Jesus salienta não estar se referindo aos que carecem de bens materiais. A falta de posses terrenas até pode conduzir alguém à pobreza de espírito, mas ambos os pontos são distintos. Na verdade, a pobreza material pode vir a endurecer nosso orgulho. Jesus, aqui, está descrevendo a pessoa que enxerga a própria escravidão espiritual, consciente da dívida por conta de seus pecados (ver Mt 6.12) e sabe que, em si mesma, está desamparada perante a presença de Deus. Tudo o que ela pode fazer é clamar por misericórdia e depender do Senhor.
Ninguém seria cristão sem este espírito, o qual repousa sobre cada cristão. É o mesmo espírito do filho pródigo, que, arrogante e autoconfiante por ter sua parte da herança, deixou seu pai, mas, quando completamente arruinado e falido, “caiu em si” (Lc 15.17). Em humildade de espírito, esvaziado de todo o seu orgulho, ele voltou à casa do pai, desta vez de mãos vazias e não mais cheio de si, visando somente aquilo que agradaria a seu pai conceder-lhe. É assim com o cristão:
Nada em minhas mãos trago,
Só à Cruz me agarro;
Nu, me achego a Ti por vestimenta;
Desamparado, olho a Ti por graça;
Imundo, à fonte eu corro;
Lava-me, Salvador, ou morro.
(A. M. Toplady)
Nos capítulos iniciais de Romanos, Paulo dá a entender o modo como este novo espírito nasce em uma pessoa. Descobrimos que, longe de sermos autossuficientes e aceitos em Sua presença, nós, por natureza, nos rebelamos contra Deus. Nós violamos Seus mandamentos. Tudo o que temos feito, presumindo merecer Seu favor, simplesmente nos impossibilita de permanecer dignos em Sua presença. Somos completamente culpados, desde a língua em nossa boca, com que praticamos o engano e falamos falsidades, a nossos pés, que não conhecem o caminho da paz, cujos caminhos são marcados por ruína e miséria (Rm 3.13–17). “Como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.10–12).
O que acontecerá se levarmos a sério esta sentença proferida por Deus e a aplicarmos em nossas vidas, tendo em mente Seu trono de justiça e veredicto? Paulo não nos deixa à mercê de nossa própria imaginação: toda boca será calada e silenciada, e o mundo inteiro — incluindo nós mesmos — será condenado culpado diante de Deus (Rm 3.19). Nós, que temos orgulho de nossa suficiência ou daquilo que fazemos; nós, que agradecemos a Deus por não sermos como outros pecadores, nós não teremos absolutamente nada que declarar Àquele que nos julgará. Permaneceremos diante dele envergonhados, em silêncio, completamente perdidos.
Quando Deus nos leva a compreender que essa é a nossa real condição perante Ele e a reconhecemos como verdadeira, então a pobreza de espírito nasce em nosso coração. Agora de olhos abertos, fora da ilusão e do engano em que nos encontrávamos, vemos que nossa única esperança está no Senhor. Somos meros homens e mulheres destituídos de qualquer justiça própria, sem nenhum recurso com o qual poderíamos apelar diante de Deus. Somos seres falidos, devedores no tribunal divino. Nossa súplica deve ser por misericórdia.
Somos exortados, em nossos dias, a desenvolver todo tipo de espírito, exceto a pobreza espiritual. Mas, se formos achados sem ele, seremos levados à ruína espiritual, como Jesus advertiu a Igreja de Laodicéia: “pois dizes: estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu” (Ap 3.17). Estaremos em perigo de sermos vomitados da boca de Cristo, considerados nem quentes nem frios. São muitos os ensinamentos que nos dizem como sermos cheios do Espírito, mas onde poderemos aprender o que significa ser esvaziado espiritualmente — esvaziado de autoconfiança, presunção e justiça própria?
A triste realidade é que sabemos pouquíssimo da bênção de que Cristo fala (e que Ele dá), pois geralmente estamos cheios demais de nós mesmos e de nossos próprios meios de conseguirmos alguma bênção. A bem da verdade, a prontidão que muitos de nós têm em externar o que acham e pensam é a constatação mais lamentável do quão carente somos da pobreza espiritual. Mas o homem agora pobre de espírito é aquele que foi silenciado por Deus, buscando dizer somente o que, em humildade, tem aprendido dele.
Se você deseja ser rico e gozar de um reino, primeiro perca tudo — incluindo a si mesmo e o seu egocentrismo — e torne-se pobre de espírito.
5
BEM-AVENTURANÇAS FUTURAS NO AGORA
MATEUS 5.1–12
Nos três capítulos anteriores, centramos nossa atenção nas marcas características e no estilo de vida daqueles que experimentam as bênçãos, ou bem-aventuranças, do reino de Deus. Foi importante fazê-lo, pois, como cristãos, muitos de nós acabam não sendo o tipo de homens e mulheres que Deus deseja que sejamos — discípulos resolutos, manifestando a vida e a graça do próprio Senhor Jesus Cristo.
Ainda assim, se dermos ênfase somente ao caráter daqueles que conhecem as bênçãos do Senhor, estaremos fragmentando o ensino que Jesus nos deu durante o Sermão do Monte. Ele não está, afinal de contas, afirmando o que deveríamos ser, e sim descrevendo em que o poder do reino de Deus nos transforma. Jesus sabe que o Seu povo manifestará as marcas do Reino, porque é Ele quem se responsabiliza. Mas tais características são tão contrárias às propensões de nossa natureza que Ele precisa enfatizar veementemente que é este o caminho a ser trilhado para chegarmos à Bem-Aventurança. Não são os ricos, os felizes, os fortes, os impiedosos que são verdadeiramente abençoados; mas são os pobres de espírito, os mansos, são aqueles que têm fome e sede de justiça, pois a estes é dado ver e enxergar quão carentes e necessitados são de qualquer qualidade — somente estes conhecem a bênção de Deus e, por resultado, suas muitas bem-aventuranças!
Assim, é importante meditarmos mais sobre a bênção que Jesus nos promete. Ao fixarmos nossos olhos nas Bem-Aventuranças, descobriremos o porquê de ser adequado considerá-las conjuntamente, objetivo deste capítulo. Elas se encaixam, são partes de um todo. As bênçãos das Bem-Aventuranças estão ligadas umas às outras; análogo a isso, da mesma forma todas as marcas que a presença do reino produz em nós devem ser vistas em nossa vida.
O próprio Jesus deixa isso claro começando e terminando as Bem-Aventuranças com a mesma promessa de benção: “Deles é o reino dos céus” (versículos 3 e 10). Nos versículos 4–9, esta bênção, que é a principal, é melhor explicada e ilustrada em uma série de seis bênçãos específicas: eles serão consolados (v. 4), herdarão a terra (v. 5), serão fartos (v. 6), alcançarão misericórdia (v. 7), verão a Deus (v. 8), serão chamados filhos de Deus (v. 9).
Em termos mais simples, o ensino de Jesus significa o seguinte: Seus discípulos já — aqui e agora — entraram no reino. Sim, Seu reino ainda será consumado. Sim, ainda será revelado em sua glória final. Sim, nós ainda aguardamos pelo dia em que será ouvido o clamor de muitas vozes: “O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11.15). Ainda assim, todas as bênçãos esperadas para o futuro nesse reino já estão sendo experimentadas pelo povo de Cristo no agora!
Paulo trabalha essa ideia de uma forma um pouco diferente quando escreve aos cristãos em Éfeso, uma cidade dominada pelos pecados do reino deste mundo. No entanto, os cristãos de Éfeso pertencem a outro Rei — Jesus. O ar que respiram, espiritualmente falando, pertence à cidade de Deus. A “luz e poder” que neles está provêm da comunhão com Ele. Eles estão “em Cristo Jesus” bem como “em Éfeso” (Ef 1.1). Assim, Paulo lhes escreve dizendo que Deus “nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo” (Ef 1.3).
Em sua primeira carta aos cristãos em Corinto, Paulo lhes diz que eles foram resgatados “deste mundo perverso” (Gl 1.4) e trazidos à vida para o “século vindouro” (1Co 10.11). Em outras palavras, eles — e nós — já desfrutavam dos poderes do reino dos céus!
As pessoas que, à época de Jesus, ouviram-no ensinar as Bem-Aventuranças entenderam de Suas palavras o seguinte:
“O futuro é agora. O reino de Deus e suas bênçãos, cuja vinda vocês esperavam que se daria no final dos séculos e no final da história, já estão aqui, aqui e agora. Entrem em meu reino. Experimentem o poder que ele tem de transformar vidas. Experimentem das bênçãos do futuro agora!”.
Izaak Walton (mais conhecido por ser autor do manual de pesca, em prosa e verso, do século dezessete The Compleat Angler [O Pescador em sua Completude e Técnicas]), escreveu a respeito de um dos mais excelentes contemporâneos cristãos da época, Richard Sibbes,
A este homem abençoado
O justo louvor seja dado:
O céu nele era encontrado
Antes que no céu ele houvesse entrado.
Apesar de serem versos singulares, são igualmente verdadeiros para todos os demais cristãos, uma vez que já recebemos o Espírito celestial como penhor de que entraremos, com todo o nosso ser, em nossa herança (Ef 1.13–14). A vida cristã não é “o ópio do povo”, entorpecendo nossos sentidos no tempo presente na esperança de coisas melhores no tempo que está por vir. Não, mas, diz Jesus, é bênção no presente momento e ainda mais bênção no porvir!
O que são, então, essas bênçãos, estas bem-aventuranças compartilhadas por aqueles a quem Jesus diz: “Deles é o reino dos céus”?
CONSOLO PARA OS QUE CHORAM
Por meio do profeta Isaías, o Senhor havia prometido consolo (força, vitalidade) a Seu povo que passava pelo exílio. A segunda metade desta profecia prevê o povo de Deus feito cativo ao reino deste mundo, e representa Deus provocando um novo êxodo de Seu povo e os levando de volta à terra prometida. As palavras que a iniciam são as seguintes: “Consolai, consolai o meu povo” (Is 40.1).
Em Isaías 61.1–3 (a passagem toda parece transparecer as Bem-Aventuranças), essa promessa atinge o clímax nas palavras do Messias que haveria de vir:
O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os que choram e a pôr sobre os que em Sião estão de luto uma coroa em vez de cinzas, óleo de alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de espírito angustiado; a fim de que se chamem carvalhos de justiça, plantados pelo Senhor para a sua glória.
Tais palavras se cumpriram em Jesus. Ele as leu na sinagoga em Nazaré, acrescentando: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4.16–21). As promessas do novo êxodo são nossas em Cristo. (Em Lucas 9.31, o autor utiliza a palavra grega êxodo para referir-se à morte e ressurreição de Jesus).
Nós pranteamos nossos pecados também por sentirmos a culpa e a vergonha, trata-se de sentir pesar, experimentar a separação entre nós e Deus. Mas Jesus é Aquele que exalta a cabeça do Seu povo (Sl 3.3). Ele vem até nós com graça e poder, coloca Sua mão debaixo de nosso queixo e diz “Levante seus olhos, você que está abatido e aflito; olhe para mim. Eu sou a Ressurreição e a Vida. Em mim há perdão e remissão dos pecados. Por meio de mim, você é resgatado para a comunhão com o Pai. Você não precisa permanecer pesaroso a vida toda, você não precisa carregar esse fardo, esperançoso contra qualquer esperança de que algum dia ele será removido. Não! Eu carreguei este fardo. Mas agora há consolo. Ponha de lado as vestes de lamento. Regozije-se! Seja consolado!”.
Jesus ilustrou essa bem-aventurança na parábola do fariseu e do coletor de impostos. Ele os retratou ambos em oração. O fariseu declarava pública e orgulhosamente seus próprios feitos. Para ele, não havia por que lamentar! Já em contraste, o coletor de impostos sentia-se tão envergonhado que nem mesmo seus olhos aos céus conseguia levantar. Ele manteve-se distante de todos os demais, batia no próprio peito peito e dizia “Ó Deus, sê propício a mim, [literalmente, ‘o’] pecador!” (Lc 18.13). Jesus então disse que foi o coletor de impostos quem voltou para casa justificado perante Deus.
Você consegue imaginar o silêncio estonteante entre aqueles ouvintes? Jesus obviamente havia estragado o ápice da história que estava contando.
Pelo contrário! Ele estava falando “a alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros” (Lc 18.9). Jesus estava ensinando que o homem que lamenta sobre seu pecado — contrário a todas as expectativas — não é condenado, mas perdoado e redimido. Esta é uma bênção que vai além de qualquer expectativa.
A HERANÇA QUE O MANSO RECEBE
Deus, ao dar forma ao homem, criou-o para que reinasse sobre a terra, instituindo-o mordomo. Deus lhe deu o domínio sobre todas as coisas (Gn 1.26–28), mas o homem quis ainda mais, sucumbindo à tentação da serpente: “como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gênesis 3.5. A segunda parte da frase parece dizer “capaz de discernir as coisas por si só”).
Deu-se início à queda do homem. Criado para governar a terra para Deus, ele tentou tomá-la para si. Como consequência desse seu ato, o homem perdeu aquilo que tentou roubar, perdendo também a dignidade que Deus havia lhe conferido. Em vez de curvar-se em mansidão aos pés do gracioso Mestre, e é isso que as criaturas e os filhos de Deus têm o dever de fazer, o homem arrogantemente tentou usurpar o lugar de Deus.
Deus, através de pequenas porções, revelou a Seu povo desde a antiguidade muitas alusões ao fato de que um dia esta tragédia seria revertida. Assim, Ele inclui nas promessas do Antigo Testamento, para Israel, o dom da “terra”. Por vezes o povo israelita soberbamente considerou-a um direito inerente a Israel, a despeito do modo como nela habitavam, fosse em mansidão, não fosse em mansidão diante de Deus. Vez após outra, Deus teve de ensinar ao povo que o orgulho sempre perde aquilo que tenta obter. O líder de Israel ser o homem mais manso da Terra (Nm 12.3) deveria tê-los ensinado uma grande lição, especialmente ao compreenderem que a entrada na Terra Prometida foi-lhes negada porque abandonaram a mansidão no ápice de um momento crítico (Nm 20.12).
Jesus era — e é — manso e humilde de coração (Mt 11.29). Ele se submeteu à vontade de Deus e às duras experiências que haveriam de cair sobre o Servo Sofredor. E é por isso que Jesus é apto para declarar a Seus discípulos que toda a autoridade nos céus e na terra pertencia — e pertence — a Ele (Mt 28.18). Agora, pela missão que a Igreja opera, Ele reivindica o que lhe pertence por direito: não só a terra prometida da Palestina, mas o mundo inteiro (ver Sl 2.8 e Hb 2.5–9).
Um dia o governo soberano de Jesus será visto publicamente. Por enquanto, é visto somente pelos olhos da fé. Mas porque é visto pelos olhos da fé, o povo de Deus já está seguro de que este mundo pertence a Cristo; Ele o adquiriu de volta para o Seu povo. Ele deseja que sejamos Seus mordomos outra vez! Isso é parte do que Paulo quer dizer quando escreve:
Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada. A natureza criada aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam revelados (Rm 8.18–19, NVI).
Mas, mesmo agora, o cristão já experimenta parcialmente disso. Ele sabe que, apesar do estado caído em que se encontra, esta terra não é seu inimigo, tendo em vista sua futura transformação. Esta terra não mais é o lugar solitário (até mesmo sinistro) que um dia já foi. Esse é o mundo que Deus criou e a Ele pertence; Deus prometeu transformá-lo — e também ao homem, a fim de torná-lo apto para habitar no mundo que Deus criou, recebendo-o por herança.
Podemos desfrutar da criação de Deus sem nos tornar prisioneiros dela! Dado que herdaremos a terra, podemos habitá-la, no presente momento, como seus mordomos, submetendo-nos mansamente ao propósito de nosso Pai celestial.
CHEIO DE JUSTIÇA
Cristo promete que aqueles que têm fome e sede de justiça serão fartos, ou satisfeitos (Mt 5.6). Já vimos que tal justiça significa “relacionamentos corretos” — com Deus, com o próximo e com nós mesmos. A promessa de Jesus aponta ao fato de que dela desfrutaremos no agora, e não só quando chegarmos ao “novo céu e nova terra”, quando “o lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente” (Is 65.17, 25). Todo o reino do Messias de Deus será, desde o seu início, marcado por relacionamentos corretos (Is 11.1–9; Lc 1.75). Nós já fomos justificados pela fé, ou feitos justos, como nos é dito (Rm 5.1); já sabemos que o reino de Deus consiste em justiça (Rm 14.17); nós, no presente momento, já somos cheios dos frutos de justiça que nos são providos por Jesus Cristo (Fp 1.11)!
Os que são cheios de justiça serão perseguidos por essa razão (Mt 5.10). Apesar disso, Jesus nos promete ao lado da perseguição uma bênção: “Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou mulher, ou irmãos, ou pais, ou filhos, por causa do reino de Deus, que não receba, no presente, muitas vezes mais e, no mundo por vir, a vida eterna” (Lc 18.29).
Isso é o que Jesus quer dizer quando afirma, no Sermão do Monte, que tudo do que precisamos nos será dado, se priorizarmos o reino de Deus e sua justiça sobre nossa vida (Mt 6.33). Milhões de cristãos durante a história podem testemunhar que Sua promessa é inequívoca.
Ele nos envolve com relacionamentos corretos. Temos Deus por Pai e o povo de Deus por família: pais e mães para guiar-nos e ajudar-nos; irmãos e irmãs para estarem ao nosso lado; filhos e filhas para deles cuidarmos e os encorajarmos. Em toda tribo, língua e nação Deus terá do Seu povo, e todos nós somos uma família. Na própria esfera cristã em que vivemos, nós experimentamos a restauração à verdadeira comunhão e amizade. Somos inseridos numa comunidade que cuida, que ama, que cura e que serve, em uma comunidade onde há relacionamentos restaurados segundo a reta justiça, relacionamentos edificantes que bem provavelmente são apenas um antegozo do que ainda está por vir. E que antegozo glorioso!
RECEBENDO MISERICÓRDIA
Temos visto que misericórdia é Deus inclinando-se ao homem, este que se encontra em sua fraqueza e total incapacidade, a fim de trazer-lhe cura e restauração. Ele é o Bom Samaritano, que ata as feridas, leva o fardo e ministra cura às necessidades do ferido que fora atacado pelos salteadores (Lc 10.33–35). Isto é o que Deus faz por nós em Jesus Cristo.
A carta aos Hebreus descreve Jesus como um “misericordioso e fiel sumo sacerdote” (Hb 2.17). Para tanto, Cristo foi feito como um de nós em todos os sentidos, resultando, “pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, [portanto] é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18).
Os misericordiosos receberão misericórdia (Mt 5.7). Pense no que essa bem-aventurança significa. Diferente do sacerdote na parábola do Bom Samaritano, que não estava disposto a arriscar ser contaminado, o filho de Deus veio para participar de nossas fraquezas, e mesmo experimentar das tentações por que passamos. Porque as experimentou, Ele nos compreende. Aliás, porque suportou cada uma de todas as tentações, Ele provou da plenitude das Suas forças. Mas por que ele passou por tudo isso? A fim de que pudesse “socorrer aqueles que são tentados”!
A misericórdia de Deus em Cristo vem em nosso socorro quando caímos, levantado-nos; ela nos protege e nos defende quando estamos fracos ou desamparados. A misericórdia de Deus derrama o óleo da cura em nosso coração, em nossas feridas, consciência e personalidade. A misericórdia de Deus provê o lugar de descanso e o encorajamento de que carecemos pela comunhão de Seu povo (Judas escreveu aos primeiros cristãos da igreja primitiva: “E compadecei-vos de alguns que estão na dúvida” [v. 22]). Naquele último dia, este mesmo Deus trará cura e restauração plenas ao transformar-nos à imagem de Cristo (Fp 3.20–21; 1Jo 3:2). As misericórdias do Senhor são de eternidade em eternidade!
VENDO A DEUS
Aquele que é puro de coração — isto é, quem deseja conhecê-lo e servi-lo — verá a Deus (Mt 5.8). O que isso poderia significar? As Escrituras declaram que homem nenhum jamais viu a Deus, porque Ele é Deus invisível (Jo 1.18; Cl 1.15; 1Tm 1.17; Hb 11.27). Como, então, os puros de coração podem ver a Deus? Jesus quer dizer que, por algum novo método, nos céus, “veremos a Deus”?
A pista para compreendermos o que significa ver a Deus muito provavelmente se encontra nas passagens do Antigo Testamento que relatam as experiências daqueles que são “puros de coração”. O Salmo 24.3–6 mostra que os puros de coração têm o privilégio de subir ao monte do Senhor e entrar na presença de Deus em Seu santo lugar. Eles buscam a Deus e dele recebem a bênção. O Salmo 73.1 declara que Deus é bom para com os limpos de coração. Nos versículos 24–28 do Salmo, Asafe (o autor) nos conta como ele chegou a essa conclusão: “Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória […] Quanto a mim, bom é estar junto a Deus”.
Ambas as passagens acima dão ênfase aos privilégios e às alegrias da comunhão consciente e do conhecimento de Deus e de Sua presença. Essas porções fazem referência ao dia quando o Seu povo será levado à glória de Sua presença, em uma compreensão ainda mais profunda da proximidade e da santidade de Deus.
De vez em quando — em visões extraordinárias —, alguns profetas do Antigo Testamento, dentre os quais Isaías é um exemplo, “[viram] o Senhor sentado em um alto e sublime trono” (Is 6.1). Ezequiel viu “a aparência da glória do SENHOR” (Ez 1.28). Esses foram vislumbres da revelação que ainda há de vir. Mesmo no Antigo Testamento, aos puros de coração foi prometido que estes “veriam a Deus”.
Jesus confirma essa declaração, mas vai além. A bênção de pertencer ao reino de Deus é esta: dadas as proporções, aquele dia tão esperado, em que veremos a Deus, já chegou. Nas palavras de João, “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). Quando Filipe disse a Jesus “mostra-nos o Pai, e isso nos basta”, a resposta de Jesus foi: “Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?” (Jo 14.8–9).
Em Jesus, Deus se faz visível. Sua identidade, porém, permanece encoberta daqueles de coração dobre. Somente aqueles cujo coração é purificado pela fé “veem” a Ele como Ele realmente é. Conhecer a Cristo é conhecer a Deus, é “ver a Deus” (Jo 17.3), significa experimentar a visão de Deus no agora e provar de Sua glória. Por isso Pedro, que havia visto a glória de Deus no Monte da Transfiguração, escreveu que o Espírito de glória e de Deus permanece nos cristãos (1Pe 4.14). A percepção da presença de Deus que teremos no futuro já está em nós. Como Moisés — mas em um sentido mais profundo — vemos Aquele que é invisível e aprendemos a perseverar até o fim. E, por fim, naquele grande dia, veremos a Sua glória de uma forma ainda mais clara (Hb 11.27).
CHAMADOS FILHOS DE DEUS
As Bem-Aventuranças não são ordenadas aleatória e acidentalmente. Elas têm início e fim, dando-nos a certeza de que o reino do céu é nosso mediante Jesus Cristo. Apresentar as razões para a ordem listada, entretanto, não é nada fácil. Fosse assim, os comentaristas teriam oferecido menos explicações!
A bênção última é ser chamado filho do Deus vivo. Isto parece ser um anticlímax depois da promessa de que veríamos a Deus? Na verdade, não, mas trata-se de um clímax maravilhoso, pois não há privilégio maior que poderíamos experimentar do que esse — ver a Deus na posição de nosso Pai. A bênção implica o fato de que, no reino de Deus, somos restaurados àquilo para o que fomos criados — filhos de Deus (ver Lc 3.38). Vemos a Ele como crianças que amam e confiam em seu Pai e que sabem que Ele suprirá todas as necessidades.
Jesus se demora neste ponto durante a metade deste Seu sermão tão desafiador. Agora cientes, particularmente desta bênção, Ele diz, seremos libertos tanto da hipocrisia quanto da ansiedade, que nos paralisa diante das preocupações passageiras desta vida. Acima de tudo, uma vez que os filhos herdam as riquezas do pai e, também, suas características, a bem-aventurança aqui citada resume todas as demais. Ela nos diz que Deus fala conosco com estas palavras:
“Meu filho … tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu” (Lc 15.31).
Quão bem-aventurado é o homem ou a mulher que de Deus pôde ouvir tais palavras!
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