A comunidade dos inúteis
A fé na era digital • Sermon • Submitted • Presented
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Transcript
Vocês já pararam para perceber como o dinheiro nos dá um poder diferente: o poder da abundância sem a dependência?
O dinheiro nos permite conseguir as coisas, geralmente por meio de outras pessoas, sem que por elas tenhamos nenhum tipo de sentimento de compromisso.
O dinheiro faz com que consigamos que outras pessoas cuidem de nossas necessidades sem dever ou exigir delas nenhuma forma de reciprocidade ou lealdade.
Sabe “dívida de gratidão”?
Quanto mais monetário nosso mundo, menos pessoal ele é.
Quando você era criança, 20 ou 30 anos atrás, todo bem de consumo valioso que você ganhava vinha de alguém que nutrisse por você um grande amor.
Lembra do primeiro patinete, do primeiro patins, o primeiro vídeo-game ou a primeira boneca?
Pessoas que não esperavam de nós nada em troca além do nosso amor.
No entanto, hoje, com apenas um clique, fazemos dezenas de compras e não sabemos sequer o nome de ninguém do outro lado da linha de produção.
Veja, isso não é ruim de toda forma. Nós temos bons serviços por preços justos, otimizamos nosso tempo e nossas vidas são potencializadas pela oferta de mercado. O dinheiro nos possibilita coisas, nos dá acessos importantes, mas o que o dinheiro não faz é nos tornar pessoas.
O dinheiro foi feito para um mundo em que o amor não é necessário.
E quanto mais tempo estamos no mundo construído pelo dinheiro, mais nos amoldamos a ele.
Para Jesus, o dinheiro não era apenas um meio de instrumentalização da vida, mas uma força demoníaca, algo que poderia dominar uma pessoa tão completamente quanto o Deus verdadeiro.
Mt 6.1-24
O que Mamom quer, ao longo da história humana, é poder separado do relacionamento; abundância separada da dependência, o ser separado da pessoalidade.
Nós lidamos com as pessoas como se tivéssemos direitos sobre elas, quando elas só nos darão coisas quando, voluntariamente, forem amadas o suficiente para quererem nos dar. Dinheiro nunca comprou verdadeiro amor (vide Elize Matsunaga).
A carta mais curta de Paulo no Novo Testamento é uma das mais incômodas e também uma das mais revolucionárias em profundidade. Nela, Paulo envia um escravo fugido de volta ao seu senhor, Filemom, amigo de Paulo.
O escravo, Onésimo, dá mais um exemplo dos terríveis nomes costumeiramente escolhidos no mundo antigo, já que seu nome significa meramente "útil".
Desde o seu nascimento, ele tinha sido marcado como uma moeda na economia das outras pessoas.
Não sabemos as circunstâncias que levaram à sua fuga, mas sabemos que, como outros, ele teria tentado viver no anonimato das multidões de uma cidade grande, talvez Corinto ou Colossos.
E lá, de algum modo, ele encontrou Paulo. Em geral, isso significaria que o pior pesadelo de um escravo fugido se realizaria: um amigo o havia encontrado, reconhecendo, então, quem era seu mestre, e o estava enviando de volta para casa.
Esse retorno, normalmente, levaria a uma violência terrível. Os escravos fugitivos que eram recapturados costumavam receber no rosto uma tatuagem com as seguintes palavras: "Pare-me, sou um fugitivo", para que nunca mais voltassem a fugir.
Mas Paulo era diferente. Naquele momento, o próprio Paulo era prisioneiro de Roma, o que significava que ele também teria sido marcado como alguém de valor mínimo, considerado uma ameaça ao império, e não um membro valoroso. E Paulo, que havia nascido livre, agora chamava a si mesmo livremente de "servo de Jesus Cristo" (Romanos 1.1 usando a mesma palavra, doulos)
Por meio de Paulo, Onésimo viria a conhecer o Jesus crucificado e ressurreto como seu Senhor e Salvador ou, como diria Paulo, Onésimo era seu próprio "filho (...) que gerei em algemas" (Filemom 1.10).
Assim, Paulo enviou Onésimo de volta para seu amigo Filemom com uma carta enfiada debaixo do braço.
Brincando com o nome de Onésimo, Paulo escreve: "Ele, antes, te foi inútil" - talvez ao fugir -, "atualmente, porém, é útil, a ti e a mim" (1.11). E então vem o seguinte trecho extraordinário:
Eu to envio de volta em pessoa, quero dizer, o meu próprio coração. Eu queria conservá-lo comigo mesmo para, em teu lugar, me servir nas algemas que carrego por causa do evangelho; nada, porém, quis fazer sem o teu consentimento, para que a tua bondade não venha a ser como que por obrigação, mas de livre vontade. Pois acredito que ele veio a ser afastado de ti temporariamente, a fim de que o recebas para sempre, não como escravo; antes, muito acima de escravo, como irmão caríssimo, especialmente de mim e, com maior razão, de ti, quer na carne, quer no Senhor. Se, portanto, me consideras companheiro, recebe-o, como se fosse a mim mesmo.
Vamos ponderar sobre como Paulo descreve Onésimo nessa sucinta obra-prima da persuasão.
O escravo fugido o "útil" que se tornara "inútil", tão sem valor quanto um pedaço de vaso quebrado, agora seria (1) duplamente útil e, na verdade (2), poderia tomar sacrificialmente o lugar do próprio Filemom ao cuidar de Paulo durante a prisão. Mas Onésimo não seria tratado por Paulo simplesmente como um servo valioso, nem Paulo seria tratado como tal por Filemom. Em vez de conservá-lo consigo, Paulo deseja que ele volte a ser parte do lar de Filemom, recebido de volta (3) “não como escravo", mas (4) "muito acima de escravo", na verdade (5) como um "irmão caríssimo", tratado como tal (6) "na carne". - ou seja, como um irmão biológico, literalmente um parente - bem como (7) "no Senhor" -, honrado como membro da família do próprio Jesus e (8) a ser recebido precisamente da forma como um "companheiro" seria.
Talvez nunca tenha havido uma quantidade tão pequena de palavras usadas para virar o mundo inteiro de ponta-cabeça.
Aqui vemos a arquitetura plenamente revolucionária de uma nova forma de ver as pessoas.
Conhecer Cristo crucificado mudou a forma como Paulo vê o "útil".
Paulo deseja que Filemom reorganize completamente seu lar e não só Filemom, porque não se tratava de uma carta privada. Ele não se dirige apenas a Filemom, mas também à "irmã Áfia", presumivelmente outra líder da igreja; a "Arquipo, nosso companheiro de lutas", cujo nome implica que ele supervisiona um regimento de cavalaria; e toda a igreja que se reúne na casa de Filemom (v.2). Todos deveriam receber o escravo fugido com o mesmo amor pessoal e a mesma atenção, como se seu irmão, apóstolo, companheiro e amigo Paulo estivesse passando pelas portas.
Existem muitos inúteis no meio de nós, pessoas consideradas assim pela sociedade em que estamos, inclusive.
Em uma economia que nos avalia e remunera em termos impessoais, os membros mais relevantes, aqueles que mais importam, para toda a nossa realização, são aqueles que Mamom não considera úteis.
São os inúteis que mais importam, porque se eles forem pessoas recebidas e honradas em nossos lares, todos estaremos livres da necessidade de sermos úteis.
Se as pessoas de maior valor forem aquelas que não são capazes de ganhar dinheiro, e talvez nem de gastá-lo, então nós também estamos livres de servir a Mamom.
Para o florescimento tudo depende dos inúteis, aqueles que são incapazes de fazer valer o preço do dinheiro.