Sem título Sermão (3)
Bem aventurados somos quando…
examinemos agora a questão no Novo Testamento. A humildade de espírito pode ser claramente vista, por exemplo, em um homem como o apóstolo Pedro, que era, por natureza, um homem agressivo, que se impunha aos seus semelhantes e era dotado de forte confiança própria – um típico indivíduo do mundo de nossa época, extravasando confiança própria e crendo em suas próprias forças. Contudo, contemplemos Pedro quando ele realmente viu ao Senhor. Foi então que Lhe rogou: “Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador” (Lucas 5:8). E consideremo-lo ainda quando, muito tempo depois, tributou elogios ao apóstolo Paulo, em II Pedro 3:15, 16. Contudo, cumpre-nos observar que ele jamais deixou de ser um homem de grande ousadia; nunca se mostrou um fracalhote, um tímido. Quanto a isso, ele jamais mudou. Sua personalidade essencial não se alterou; ao mesmo tempo, porém, ele se tornou um homem “humilde de espírito”.
Também podemos perceber essa atitude no apóstolo Paulo. Ele era homem igualmente dotado de tremendas potencialidades, e, como homem natural, tinha plena consciência delas. Entretanto, quando lemos as suas epístolas, damo-nos conta de que a sua grande luta, até ao fim de seus dias, foi a luta contra o orgulho pessoal. Por essa razão, ele continuava usando o vocábulo “jactar-se”. Qualquer pessoa dotada de grandes potencialidades geralmente toma consciência das mesmas; à semelhança de Paulo, tal pessoa sabe que pode realizar grandes feitos. Paulo diz-nos isso no grande terceiro capítulo de sua epístola aos filipenses, onde ele se reporta à sua anterior confiança na carne. Se fosse uma questão de mera competição, conforme ele parece segredar-nos, então não temia a quem quer que fosse; e, em seguida, Paulo oferece-nos uma lista dos particulares sobre os quais era capaz de vangloriar-se com razão. Todavia, depois que viu ao Senhor ressurreto, na estrada para Damasco, tudo o mais se transformou em pura “perda”. No entanto, esse homem de tão tremendas capacidades, apareceu em Corinto, conforme lembramos antes, em “fraqueza, temor e grande tremor”. Essa foi a sua posição desde o princípio; e, ao dar andamento à tarefa da evangelização, perguntou ele: “Quem, porém, é suficiente para estas cousas?” (II Coríntios 2:16). Se houve algum homem que tinha o direito de sentir-se “suficiente”, esse homem foi Paulo. Não obstante, ele se sentia “insuficiente”, porquanto era homem “humilde de espírito”.
Mas, naturalmente, podemos perceber essa atitude, acima de todos, na vida mesma de nosso Senhor. Ele se tornou Homem. Tomou sobre Si mesmo a “… semelhança de carne pecaminosa…” (Romanos 8:3). E, embora continuasse sendo igual a Deus, não se aferrou às prerrogativas da Sua deidade. Jesus resolveu que enquanto estivesse nesse mundo, viveria como um mero homem, ainda que jamais tivesse deixado de ser Deus. E esse foi o resultado; declarou Ele: “Nada faço por mim mesmo” (João 8:28). Eis o Deus-Homem falando: “Nada faço por mim mesmo”. E também esclareceu: “As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras” (João 14:10). “Nada posso fazer por mim mesmo, porquanto dependo inteiramente do Pai.” Eis aí! Consideremos ainda a vida de oração do Senhor Jesus. É quando O observamos nessa prática, e nos conscientizamos das muitas e muitas horas que Ele passava em oração, que vemos a Sua humildade de espírito e o quanto Ele dependia de Deus Pai.
Isso, pois, é o que se deve entender por “humildade de espírito”. Essa qualidade aponta para a completa ausência de orgulho pessoal, para a completa ausência de segurança própria e autodependência. Ela indica a consciência de que nada representamos na presença de Deus. Portanto, não é algo que possamos produzir por nós mesmos; não é algo que possamos fazer de modo próprio. Pelo contrário, é aquela tremenda tomada de consciência de nossa própria nulidade, quando chegamos a enfrentar Deus face a face. Isso é ser “humilde de espírito”
Procuremos, assim sendo, definir o homem que chora. Que tipo de homem é ele? Ele é um homem triste, mas não melancólico. É um homem triste, mas não se sente um miserável. É um homem sério, mas não taciturno. É um homem sóbrio, mas não sombrio. É um homem grave, mas que nunca se mostra frio ou distante. Juntamente com a sua gravidade, há também calor e força de atração. Em outras palavras, esse homem mostra-se constantemente sério; todavia, ele não precisa fingir seriedade. O crente nunca é um indivíduo que finge ser ou triste ou jovial. Não, mas é uma pessoa que leva a vida a sério; ele contempla a vida espiritualmente, e vê na vida o pecado e os seus efeitos perniciosos. O crente é um homem sério e sóbrio. Sua aparência sempre é a de um homem compenetrado e bem equilibrado. Ele sempre encara as coisas com seriedade; mas, devido à sua visão, à sua compreensão da realidade, o crente também goza de uma “alegria indizível e cheia de glória” (I Pedro 1:8). Portanto, ele se assemelha ao apóstolo Paulo, o qual “gemia no íntimo”, mas, no entanto, sentia-se feliz por haver experimentado Cristo e por haver saboreado a glória futura. O crente não é uma pessoa superficial sob hipótese alguma; pelo contrário, é alguém fundamentalmente sério, e fundamentalmente feliz. Como você deve estar percebendo, a alegria do crente consiste em um júbilo santo, e a felicidade do crente consiste em uma bem-aventurança séria. Nada existe no crente que se pareça com alguma aparência superficial de felicidade ou alegria! Não e não; antes, o crente usufrui de uma alegria solene, de uma alegria santa, de uma felicidade séria. Isso posto, embora grave, sóbrio e sério, o crente jamais mostra ser uma pessoa indiferente para com os seus semelhantes. Bem ao contrário, ele é como o próprio Senhor Jesus, o qual gemia e chorava, mas, não obstante, suportou a cruz e desprezou a ignomínia “em troca da alegria que lhe estava proposta” (Hebreus 12:2).
Esse é o homem que chora; esse é o crente. Esse é o tipo de crente que a Igreja via nos séculos passados, quando a doutrina do pecado era pregada e ressaltada, quando os homens não eram meramente exortados a tomar alguma decisão repentina. Uma doutrina profunda do pecado, uma elevada doutrina da alegria cristã, e então a combinação dessas duas doutrinas produzem esse homem abençoado e feliz, o qual chora, é verdade, mas que, paralelamente a isso, é consolado. A maneira certa de se experimentar isso, como é lógico, consiste em se ler as Escrituras, em se estudar e meditar a respeito delas, em se orar a Deus para que o Seu Espírito revele-nos o pecado que há em nós, e então para que Ele nos revele o Senhor Jesus Cristo em toda a Sua plenitude. “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.”
no que consiste a mansidão? Penso que poderíamos sumariar a questão da seguinte maneira. A mansidão é, essencialmente, um autêntico ponto de vista que o indivíduo forma de si mesmo, o que é então expresso como uma atitude e uma conduta em relação ao próximo. Por conseguinte, consiste em duas coisas. Trata-se da minha atitude para comigo mesmo; mas também é uma expressão desse fato, em meu relacionamento com outras pessoas. Percebe-se, pois, quão inevitavelmente a mansidão deriva-se das qualidades de “humildade de espírito” e de “lamentação”. Ninguém é capaz de ser manso, a menos que também seja humilde de espírito. E ninguém pode ser manso exceto se já se viu como um vil pecador. Essas outras características necessariamente surgem primeiro. Entretanto, se eu já percebi o que realmente sou, em termos de humildade de espírito e de atitude lamentosa, em vista de minha pecaminosidade, então sou levado a ver que é necessário que em mim não se manifeste o orgulho. O indivíduo manso não se orgulha de si mesmo; não se vangloria a seu próprio respeito sob hipótese alguma. Pois sente que em si mesmo coisa alguma existe de que ele possa gabar-se. E também deve-se entender que ele não faz valer seu direito. Como você deve estar percebendo, isso é uma negação daquela psicologia popular de nossos dias que nos recomenda “impor-nos aos outros” e “expressarmos a nossa personalidade”. Aquele que é manso não quer fazer essas coisas; antes, envergonha-se delas. Por semelhante modo, o indivíduo que é manso não exige coisa alguma para si mesmo. Não considera todos os seus legítimos direitos como algo a ser exigido. Não faz exigências quanto à sua posição, aos seus privilégios, às suas possessões e à sua situação na vida. Não, mas assemelha-se ao homem retratado pelo apóstolo Paulo em Filipenses 2. “Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Filipenses 2:5). Cristo não asseverou o Seu direito de igualdade com Deus; deliberadamente Ele não o fez. E você e eu temos que chegar a este ponto.
Seja-me permitido analisar a questão por partes. Ter fome e sede de justiça significa anelar por ser livre do pecado, porque o pecado nos separa de Deus. Por conseguinte, de certo ângulo positivo, está em pauta o desejo de se estar bem com Deus; e isso, afinal de contas, é a questão fundamental. Todas as dificuldades que assediam o mundo atual devem-se ao fato que o homem não está bem com Deus, pois é em face do ser humano não estar bem com Deus que ele tem errado em tudo o mais. Esse é o ensinamento da Bíblia em todas as suas páginas. Assim sendo, o desejo de obter a justiça é o desejo de se estar bem com Deus, é o desejo de se desvencilhar do pecado, pois o pecado é justamente aquilo que se interpõe entre nós e o nosso Deus, turvando o nosso conhecimento de Deus e impedindo tudo quanto nos é possível, no que diz respeito aos benefícios que Deus nos quer dar. Portanto, é necessário que eu confira primazia a esse anelo. O indivíduo que tem fome e sede de justiça vê que o pecado e a rebelião o separaram da face de Deus, e ele anseia por retornar àquele antigo relacionamento, àquele relacionamento original de justiça, na presença de Deus. Nossos primeiros pais foram criados justos aos olhos do Senhor. Eles viviam e andavam em companhia dEle. Esse é o tipo de relacionamento com Deus que o homem justo tanto almeja.
