A esperança do fiel em meio à aflição | Sl 22. 8-21

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Introdução

No último sermão vimos que o maior medo de um crente piedoso seria o abandono de Deus. Esse seria a maior aflição que qualquer um de nós poderia passar - o pior cenário imaginado: estar distante do bem supremo, do Deus eterno, do Salvador amado, do Consolador fiel. Aliás, entendendo o inferno como esse distanciamento de Deus [ou, pelo menos, de sua face graciosa], este deveria ser o maior pavor de qualquer ser humano devidamente lúcido.
Esse temor, para Davi, era pior que o vislumbre de seu possível próprio assassinato dramático. Para Jesus, explica-se, então, seu suor ter se tornado em sangue. O cálice pelos nossos pecados cobraria o distanciamento do santo Pai (Hc 1.13; Is 59.2). Isso fica ainda mais marcante quando notamos que, tanto a visão de Davi como o cumprimento dela na vida de Cristo, o desamparo não ocorre em tempos separados de algum sofrimento físico, mas especialmente nele, como na crucificação. Isso nos chama a atenção para a realidade de que o ápice da dor é inferior a qualquer sentimento de desamparo do Senhor.
Vimos também que o desamparo dos homens, seja relacionado à Davi ou à Jesus, está ligado com a ideias dos oponentes em pensar especialmente que os ungidos, os eleitos, os crentes (seja como for) não passam por aflições. Quando eles enxergam os crentes, ainda mais os piedosos, passando por piedade e pensam que isso anula a veracidade de sua fé (Será que não pensamos o mesmo às vezes?).
Eu sei que, talvez, você já esteja cansado dessa sequência de salmos de lamento e sofrimento. Eu até entendo você. Mas, irmãos, precisamos explorar melhor esse tema. Ainda há muito a aprendermos sobre o local do sofrimento em nossas vidas. Afinal, a religião sem sofrimento (nessa vida) é falsa - a vida não é assim. O cristianismo é real e, portanto, trata do mundo real [e de dores reais]. Vimos que a aflição e sofrimento de Cristo apontavam para realidades acerca da nossa salvação: a. seu desamparo na cruz como oferta pelo pecado é a segurança da igreja de que nunca seremos nós desamparados; b. morrer não era contrário ao seu reinado, mas justamente o contrário (Mt 20.25-28); c. não é ausência de poder, mas exatamente demonstração de poder em transformar mal em bem (Jo 2.19-22; Mt 26.45; Jo 10.17, 18; 19.28-30); d. não é incapacidade de salvar, mas o único meio para a salvação (Is 52.14; Is 53; Jo 12.24). E quais realidades o sofrimento em nossa vida aponta?

Exposição

Bem, na seção do salmo que lemos agora, Davi usa imagens muito vívidas. É quase impossível que nossa mente não projete o que está sendo lido: a figura do bebê, touros e leões, o derretimento da cera, o caco de barro, a língua ao céu da boca, os cães rodeando, a contagem das costelas. Figuras que trabalham nossas imaginação e despertam nossas emoções - é o objetivo da poesia bíblica. As primeiras delas reforçam lembranças que geram esperança:
A providência de Deus quando ele era totalmente incapaz e precisava ser cuidado pelos outros (9, 10). Ora, ninguém se faz nascer ou operou seu próprio parto; ninguém se alimenta quando é um bebê. É lembrete de fragilidade, incapacidade e cuidado dos outros. Para o Senhor nascemos. Dele, por Ele somos formados e para Ele somos destinados - esse deveria ser o alvo de todos os nascidos. Nascemos para o Senhor [o problema é que crescemos querendo fugir dele >>> e os zombadores confirmam isso (8)]. Porém, o salmista reverte o que os zombadores disseram afirmando sua dependência do Senhor desde o ventre.
“E é o Espírito Santo quem ensina aos fiéis a sabedoria de coletarem juntos, quando se vêem envolvidos por circunstâncias de medo e sofrimento, as evidências da bondade de Deus, a fim de, por esse meio, sustentarem e robustecerem sua fé.” (Calvino, p. 435)
Agora que ele se vê numa situação de incapacidade, ele lembra que pode clamar àquele que lhe susteve quando infante (11). Ele promove uma reversão do que foi colocado no verso 1, apropriando-se da confiança do seu povo e sua confiança pessoal (4, 5, 10b).
Iniciam-se as figuras tenebrosas:
Os touros de Basã, os leões que despedaçam (12, 13). Seus inimigos são bárbaros e selvagens. São muitos e fortes, como os touros bem nutridos das ricas e suculentas pastagens de Basã (Ez 39.18) .
Seu estado de sofrimento (14, 15): se derrama como água, seus ossos se deslocaram (sensação de não conseguir se sustentar), seu coração se derrete como cera diante do calor; sua força se esgotou (um caco de barro é totalmente seco), e sua língua grudou-se no céu da boca (por falta de recursos ou acesso a estes, ou mesmo por alguma depressão). Não se tratava de um medo comum, mas terrível. Observemos que Davi não era homem de esconder suas angústias, antes as colocava diante daquele que poderia agir em seu favor. Sua força viria apenas do Espírito do Senhor.
A causa? Pois cães (malfeitores - no oriente, cães agrupados e vorazes geravam muito medo) o rodeiam - perfuraram-lhe mãos e pés. O termo exato para “perfurar” aqui é “leão”, indicando um possível uso do termo como verbo (HARMAN, 2011, p. 132). Ele pode contar seus ossos e ele é objeto de exposição (17) e de escárnio público (18) - destacando-se, ademais, a maldade de seus inimigos em exporem alguém em já tão triste situação.
Um apelo final (19-21) “Tem havido uma progressão no salmo com respeito a esta idéia de Deus estar longe. Primeiro, há o reconhecimento deste fato (v. 1); então, o apelo para que ele se aproxime, pois não havia ninguém para ajudá-lo (v. 11); e, finalmente, com uma ênfase adicional (“Tu, porém” é enfático), um apelo de caráter urgente para que Deus venha depressa” (HARMAN, 2011, p. 132). Davi não considerou como inútil clamar a Deus em situações tão complicadas.
Todas essas descrições são totalmente compatíveis com a crucificação. Quando lemos esse relato fazemos, quase que de forma inevitável, alguma relação com nossas vidas - é cabível algo assim quando oramos ou lemos os salmos. Mas em Cristo não temos essa relação simbolicamente. Em Cristo, nada das palavras de Davi são hiperbólicas. Jesus pode falar com exatidão o que é saber todo esse sofrimento em carne.

Aplicações

Daqui tiramos uma das lições do sofrimento:
Ele não pode ser encarado como ausência de confiança, pois Davi e Jesus confiam no Senhor (19-21; Jo 17.1-9; Mc 9.30-32). Que nem a morte pode deter o triunfo do Rei. A morte não impediu a ressurreição de Jesus de testificar que ele fora ouvido. Que Deus zela por sua glória e os crentes estão contentes com isso. Isso não é o fim da alegria, mas é exatamente a verdadeira alegria. Saber que há verdadeira expectativa de que o fim é o fim do Senhor. Temos a graça de fazermos a sua obra, e todo o frutificar e o descanso estão nas mãos do Senhor (Sl 37.5; 1Co 3.6). Me lembro do depoimento de uma mãe ao sofrer com o luto do filho:
“um dos pastores disse-me que meu filho de três anos cumpriu seu ministério no tempo em que morou conosco. Foi reconfortante saber que meu filho fez o que ele foi enviado para fazer” (Chrsitine Johnson, citado em O que dizer (ou não) para pessoas de luto).
Mas esse Salmo, especialmente, nos aponta o drama da existência: existe sempre um elemento dramático antes das coisas ficarem bem. Na verdade, só percebemos que ficaram bem devido não estarem bem antes. Veja o padrão bíblico: criação, queda, redenção, glorificação. Veja nossa perspectiva fantástica: era uma vez, um drama, um resolução e felizes para sempre. Antes de qualquer conquista esportiva, treino sacrificial. Antes da aprovação em provas, muito sofrimento em estudos. Na verdade, nada do que valha a pena se ter vem sem que haja um preço pessoal envolvido. Algumas vezes para se adquirir, mas principalmente para se manter. Ou melhor, para se demonstrar o valor que aquilo representa para nós. É quase impossível que após grandes ondas de amor não se tenha grandes ondas de sofrimento, pois o sofrimento provará o amor. O sofrimento provará os propósitos, e esses propósitos são o molde do que amamos. Aprendamos com Davi que, em meio a estes exercícios, não é inútil e que se deve orar com fé e sem dubiedade (força minha 19)
O sofrimento nos lembra quem é verdadeiramente nosso Deus. Quando, em muitas vezes, precisamos de ajuda nos tempos difíceis nos distanciamos de Dele. Nesse caso, você é o seu deus. É interessante como o cristãos (pois não cristãos podem simplesmente negar a existência de Deus pela existência do mal) diversos reagem diferentemente ao sofrimento. Existe aqui um fenômeno interessante. Às vezes, os cristãos negligentes se tornam exemplares em disciplina na angústia. Outras vezes, cristãos exemplarem em disciplina se tornam negligentes na angústia. Às vezes, para revelar nossa idolatria ingrata, basta termos tudo o que queremos. Às vezes, para revelá-la, basta que isso tudo nos seja tirado. Mas, irmãos, o sofrimento deve nos lembrar de nossa incapacidade de modificar a situação, assim como um infante não pode gerar para si seu próprio leite (nem trocar suas fraldas) (2Co 1.9). Não é que ficamos paralisados, esperando. É que o sofrimento não pode nos tomar aquilo que nos foi dado gratuitamente em Jesus Cristo.
“a sensação que temos de nossas aflições deve incitar-nos a buscar abrigo debaixo das asas de Deus, para que, ao conceder-nos seu auxílio, nos revele que nutre profundo interesse por nosso bem-estar.” João Calvino
Algumas promessas podem ou somente serão cumpridas em tempo de sofrimento intenso (Sl 34.19; Sl 126.6). Veja o movimento do Salmo: Desamparo >>> Glória. Veja o movimento simultâneo da cruz: humilhação e glorificação. Cristo receberá glória - glorificação pela sua obediência (Jo 12.32), mas sua glorificação será exaltada na ressurreição e ascensão (Hb 2.9,10; Fp 2.9-11). A glória não está em apenas se olhar para uma coroa, mas para a cruz. Vejamos que todo rei sentirá, se fiel, alguma inadequação ou algo pior. É necessário alguma penitência e sofrimento, para, assim, promessas amplas serem cumpridas.
“seguindo o exemplo de Davi, tomemos alento; e quando, através de nossa fragilidade, estivermos, por assim dizer, quase sem vida, dirijamos nossos gemidos a Deus, rogando-lhe que graciosamente se digne de restaurar-nos a força e o alento.” João Calvino
Por isso, a tentativa de limitar o cristianismo ao triunfalismo (Sl 2, 110) perde o panorama geral da vida piedosa. Quando os salmos nos falam da vitória do rei messiânico, como nos Salmos 72 e 89, não é sem ser precedido por Sl 22.1; Mt 27.46, Mc 15.34. Para nós também, irmãos, pois nossa promessa de sermos aperfeiçoados e transformados à imagem do Filho (Rm 8.29) não vem sem estarmos totalmente ligados à Ele (Rm 8.17-26; Rm 8.36). Uma das coisas mais belas aqui do nosso salmo é sua localização, onde as tristezas do Salmo 22 dão lugar à visão calma de Salmos 23 e o brado de louvor em Salmo 24. O cristianismo é triunfalista num sentido soteriológico e escatológico, mas não sem o sofrimento da cruz. Nós seguimos o crucificado.
O sofrimento nos lembra que temos de trabalhar. Às vezes, queremos desfrutar coisas que já são a própria recompensa - entretenimento, jogos, pornografia, drogas. Geralmente coisas sem grande necessidade de processamento. É como música ruim ou craque: dão todo prazer possível numa só dose. Não há trabalho nem apreciação. Vivemos num tempo que ninguém quer construir uma catedral e ninguém quer navegar o oceano. Tudo isso dá trabalho e é complexo demais. Conquistar uma mesma mulher por 60 anos? Ficar a vida toda numa só igreja? Crescer numa carreira? Investir a longo prazo? Somos a sociedade do já. Do agora - do ter tudo na palma da mão. Não sabemos que galinhas são alimentadas e abatidas, nem que feijão tem que ser plantado para ter à mesa. Irmãos, muitas vezes não queremos o sofrimento das coisas significativas! Uma casamento feliz, uma vida organizada, um cristianismo sólido, uma vida santa, uma igreja saudável >>> nada disso vem como macarrão instantâneo! Por isso não somos desocupados, sempre sempre estamos nos desgastando pelos outros (Jo 12.25; Gl 6.6-10).
S.D.G
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