#6 - Jonas, o Bode Expiatório

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Jonas, o Bode Expiatório

Jonas, o bode expiatório
Jonas 1.11–16
Respondeu-lhes: Tomai-me e lançai-me ao mar, e o mar se aquietará, porque eu sei que, por minha causa, vos sobreveio esta grande tempestade (Jn 1.12).
Houve um pastor luterano chamado Henry Gerecke, que certa noite em outubro de 1946, foi visitar os membros de sua pequena congregação em Nuremberg, na Alemanha. Não se tratava de uma congregação comum, pois os homens que ele estava visitando estavam prestes a serem executados pelos mais terríveis crimes imagináveis.
Com cada um, Gerecke caminhou até a forca. Quando a corda foi colocada na cabeça do primeiro homem e lhe pediram suas últimas palavras, ele deu testemunho de sua fé em Jesus Cristo: “Eu deposito minha confiança no Cordeiro que expiou os meus pecados. Que Deus tenha misericórdia da minha alma”. Seu nome era Joachim von Ribbentrop, e até o ano anterior ele havia sido o ministro do exterior da Alemanha nazista de Adolf Hitler.
Além dele, outros sete criminosos de guerra nazistas foram aceitos à mesa do Senhor pelo capelão Gerecke na base da profissão crível de sua fé em Cristo.

A misericórdia dos marinheiros

Nem todos estão dispostos a aceitar a ideia de que até os piores pecadores possam encontrar salvação em Cristo. Isso explica por que Gerecke recebeu tantas cartas ofensivas quando retornou para os Estados Unidos por ter ministrado aos nazistas. Se o profeta Jonas estivesse vivo na época, ele poderia ter enviado uma dessas cartas.
Deus havia ordenado a Jonas que pregasse pela salvação dos assassinos selvagens em Nínive, mas Jonas decidiu abandonar Deus em vez de aceitar o trabalho. A experiência de Jonas demonstra a futilidade de fugir de Deus.
Mas, na medida em que a história se desdobra e Jonas cai sob o julgamento, a ironia de sua rebelião é revelada por meio das ações dos marinheiros pagãos a bordo do navio de Jonas.
Aterrorizados pela grande tempestade que Deus havia enviado por causa de Jonas, os marinheiros oraram primeiro aos seus próprios deuses falsos. Então lançaram a sorte para identificar o pecador responsável pela ira divina. Quando a sorte caiu sobre Jonas, eles começaram a interrogá-lo. Jonas confessou: “Sou hebreu e temo ao Senhor, o Deus do céu, que fez o mar e a terra” (Jn 1.9).
Os marinheiros ficaram “possuídos de grande temor” quando perceberam que Jonas estava se rebelando contra um Deus tão grande. Então apelaram a Jonas, que ainda era um profeta de Deus, apesar de seus atos: “Que te faremos, para que o mar se nos acalme?” (Jn 1.11). Jonas respondeu: “Tomai-me e lançai-me ao mar, e o mar se aquietará, porque eu sei que, por minha causa, vos sobreveio esta grande tempestade” (Jn 1.12).
O que aconteceu em seguida é notável por causa da nobreza da conduta dos marinheiros. Hugh Martin escreve:
“Ele era um completo estranho para eles. Ele não podia alegar laços de amizade, de família ou nação; era o sujeito de um Deus estranho, mas forte, que havia levado até eles a ira de Deus – de fato, tinham muito pouco pelo que agradecer-lhe”.
A única coisa que Jonas havia feito por eles fora causar-lhes dificuldades. Poderíamos, então, desculpá-los se simplesmente o tivessem jogado no mar, em especial por serem pagãos e pelo fato de o próprio Jonas ter sugerido essa solução.
Em vez disso, os marinheiros se sentiram tocados pela santidade da vida de Jonas, ou talvez pelo medo das consequências divinas se derramassem sangue sem necessidade. Assim, em vez de lançarem Jonas no mar, “… os homens remavam, esforçando-se por alcançar a terra, mas não podiam, porquanto o mar se ia tornando cada vez mais tempestuoso contra eles” (Jn 1.13).
O texto hebraico dá a entender que os marinheiros deram tudo de si, remaram o máximo que puderam para devolver Jonas à segurança da terra firme. Eles entenderam que sua segurança pessoal dependia da remoção de Jonas, mas fizeram de tudo para poupar sua vida.
Não importa se seu respeito se devia ao status especial de Jonas como profeta ou apenas à sua condição de ser humano, mas o temor ao Senhor se manifestou em sua conduta.
Esses homens nos mostram que assim como qualquer desrespeito a Deus se manifesta em crueldade contra o ser humano, o temor ao Senhor produz invariavelmente justiça e misericórdia.
Que repreensão a Jonas isso deve ter sido! Afinal de contas, a razão pela qual ele se encontrava naquele navio era a dureza de seu coração contra os gentios. O. Palmer Robertson comenta:
Ele, o fiel, fecha seu coração contra a grande metrópole de Nínive. Apesar de seu povo ter experimentado a graça de Deus durante gerações, ele fecha seu coração contra outras pessoas. Mas, num contraste dramático, esses marinheiros rudes fazem de tudo para poupar a vida de Jonas, mesmo após ele ter causado a perda de toda a sua carga e agora poder causar a perda de suas vidas.
Aparentemente, Deus não cooperou com esses marinheiros misericordiosos. Por mais que se esforçassem e remassem, eles não conseguiram vencer as ondas cada vez mais altas. Deus queria que a correção de Jonas continuasse, por isso nada que os marinheiros fizessem poderia salvar a vida dele.
“Então, clamaram ao Senhor e disseram: Ah! Senhor! Rogamos-te que não pereçamos por causa da vida deste homem, e não faças cair sobre nós este sangue, quanto a nós, inocente; porque tu, Senhor, fizeste como te aprouve. E levantaram a Jonas e o lançaram ao mar; e cessou o mar da sua fúria” (Jn 1.14–15).
Aqui, também, vemos o impacto do testemunho involuntário de Jonas sobre os marinheiros. Sem alternativa senão aceitar o conselho de Jonas, eles oraram primeiro a Yahweh pedindo que não os responsabilizasse, já que era evidentemente a sua vontade soberana que controlava a situação deles.
Como explicamos a nobreza desses homens, que não conheciam o Senhor?
Encontramos a resposta na graça comum de Deus. A graça comum significa que Deus opera no mundo mesmo fora do domínio da salvação. Deus instila virtude em reis pagãos e inspira reverência pela vida até entre os gentios.
Deus fornece essa graça comum pelo bem do evangelho, para que o mundo possa continuar e para que sua igreja seja preservada em meio a esse mundo perverso, e para preservar o mundo pelo bem daqueles que ainda serão salvos.
Às vezes, a virtude dos pagãos envergonha o povo de Deus, que possui a graça salvífica de Deus e conhece a lei escrita de Deus.
Pensamos, por exemplo, em instituições como médicos sem fronteiras, ou os capacetes brancos, que sacrificaram suas vidas tentando salvar pessoas em contexto de guerra e extrema pobreza. Muitos deles não são cristãos, mas sua coragem excede a de muitos cristãos.
Sempre que o povo de Deus testemunha esse tipo de virtude em incrédulos, devemos nos sentir desafiados a responder à graça salvífica de Deus transformando-nos nos homens e nas mulheres que o Senhor deseja que sejamos.

Os marinheiros se converteram?

A essa altura, surge uma pergunta referente à qual os estudiosos não conseguiram chegar a um consenso. A pergunta é se o relato em Jonas revela uma conversão verdadeira dos marinheiros.
Eles estavam agindo estritamente na base da graça comum ou será que, em algum momento, eles chegaram a um conhecimento autêntico e salvífico do Senhor?
Alguns chegam à conclusão de que não existem razões suficientes para considerar isso uma conversão genuína.
Mesmo assim, creio que existem muitas evidências para acreditar que esses marinheiros foram realmente convertidos por meio de sua experiência com o Deus de Jonas. É o que defendem alguns teólogos.
Quais são as evidências para essa visão positiva?
Em primeiro lugar, essa conversão se encaixa muito bem na narrativa geral de Jonas. O profeta temia que sua pregação em Nínive fizesse com que os pagãos encontrassem misericórdia na graça de Deus.
Segue disso que Deus o queria dar uma lição com a conversão dos marinheiros pagãos. Além do mais, a conversão dos marinheiros não deveria ser considerada mais implausível do que a conversão dos criminosos de guerra nazistas pelo pastor Gerecke – ou do que a conversão de qualquer um. Não foi preciso uma graça maior para salvá-los do que para salvar qualquer cristão.
Além disso, a linguagem da oração dos marinheiros sugere mais do que simplesmente que eles tenham acrescentado o Deus de Jonas à sua lista de deuses falsos. Calvino escreve: “Os marinheiros e os passageiros foram tomados não só pelo temor de Deus, mas também tiveram a impressão de que o Deus de Israel era o Rei supremo do céu e da terra”.
Ao entenderem isso, viram também que “anteriormente haviam sido iludidos e que tudo que o mundo havia inventado era mera ilusão, e que os deuses criados pelos caprichos do homem eram nada mais do que meros ídolos”.
Além do mais, lemos que os marinheiros “… ofereceram sacrifícios ao Senhor e fizeram votos” (Jn 1.16). Eles apelaram ao nome da aliança de Deus, Yahweh, e, mesmo não conhecendo os procedimentos corretos para os sacrifícios levíticos em Jerusalém, eles parecem ter entendido que precisavam fazer algum tipo de oferta para a expiação de seu pecado.
Os votos devem, provavelmente, ser entendidos como uma confissão de fidelidade pactual. Calvino comenta:
“Quando, então, os marinheiros fizeram um voto a Deus, eles renunciaram a seus próprios ídolos […]. Agora, então, fizeram seus votos ao único Deus verdadeiro; pois sabiam que suas vidas estavam em sua mão”.
Os marinheiros haviam vivenciado um encontro divino inesquecível que ocorre apenas uma vez na vida. Dessa forma, Deus havia enviado sua tempestade não só para despertar seu profeta desviado, mas também para fornecer aos pagãos uma manifestação de seu poder salvífico.
Quem sabe esses marinheiros a caminho de Társis tenham sido a semente para o conhecimento posterior e mais amplo de Deus na Espanha; talvez Deus estivesse preparando o solo por meio desses marinheiros (veja Rm 15.24).
Que lições devemos aprender dessa conversão?
Uma lição é que não devemos deixar-nos intimidar pela descrença do mundo, a ponto de baixarmos a nossa mensagem ao seu nível. O mesmo Deus “… que fez o mar e a terra” (Jn 1.9) e que converteu os marinheiros pagãos é capaz de converter qualquer pessoa por meio do nosso testemunho e pregação.
Deveríamos aprender também que Deus salva quem quer, independentemente de nós sermos fiéis e obedientes ou não.
A disposição de Jonas em dar testemunho aos gentios não determinou a vontade de Deus de salvá-los; tudo o que sua disposição determinou foi se ele seria abençoado por isso.
Aqui, porém, Jonas mergulhou nas ondas sem testemunhar o sacrifício dos marinheiros e sem ouvir seus votos. James Boice escreve:
O que Deus pretende fazer, ele fará […]. Mas preste atenção, Deus pode fazer isso por meio da obediência de seus filhos, como o faz mais tarde com Nínive por meio de Jonas, caso em que eles compartilham das bênçãos. Ou ele pode fazê-lo por meio da desobediência de seus filhos, como aqui, caso em que eles perdem a bênção […]. Qual dos dois você prefere? Você resistirá a ele? Você se recusará à sua Grande Comissão? Ou você lhe obedecerá neste e em todos os outros assuntos?

Jonas, o bode expiatório

Quando voltamos nossa atenção para Jonas, também nos deparamos com uma pergunta referente à qual não existe consenso.
Quando Jonas pediu que o lançassem no mar, isso era uma expressão de seu arrependimento sincero ou sua decisão endurecida de preferir a morte a ceder à vontade de Deus?
Aqueles que defendem o arrependimento de Jonas dizem que a confissão de seu pecado o tornou disposto a sofrer a morte para poupar os marinheiros pagãos.
Mas existe uma razão pela qual não parece que Jonas já teria desistido de sua rebelião contra Deus: em momento algum, o texto indica que ele decidiu voltar e executar a comissão que Deus lhe havia dado. Jonas se arrepende apenas no capítulo 2 e, quando ele realmente se arrepende, vai para Nínive e prega conforme a ordem de Deus.
William Banks comenta:
“Se a tempestade serviu para endurecer a vontade de Jonas, isso significa que Jonas estava disposto a morrer para não ter que pregar. Fanatismo pode se arraigar tanto na personalidade humana que nem mesmo a ameaça de danos físicos ou castigo consegue expulsá-lo, tampouco argumentos e apelos à razão”.
Com esse espírito amargurado, Jonas encarou as águas de seu destino. Ele preferia morrer a pregar a salvação à tão odiada cidade de Nínive. Enquanto os marinheiros estavam dispostos a se submeter à vontade revelada de Deus, Jonas, que conhecia muito bem a vontade de Deus, preferia ser entregue às ondas.
Todos os marinheiros esperavam que o sacrifício de Jonas acalmasse a tempestade, assim como reconheciam que isso era um castigo justo pelo pecado de Jonas.
Mas se existir algo que possa provar que um fiel pode se endurecer tanto por meio do pecado a ponto de destruir sua vida neste mundo, a experiência de Jonas o prova.
Não surpreende, então, que o autor de Hebreus nos diz: “… exortai-vos mutuamente cada dia, durante o tempo que se chama Hoje, a fim de que nenhum de vós seja endurecido pelo engano do pecado” (Hb 3.13).
Mas mais importante do que o estado mental subjetivo de Jonas é o papel objetivo que ele exerce na história redentora de Deus.
Dentro do ensinamento da redenção na Bíblia, a “morte” de Jonas sob as ondas olha tanto para trás quanto para frente.
Olhando para trás, Jonas exerce o mesmo papel do bode expiatório no Dia da Expiação de Israel.
Naquele dia do ano, em que Israel lidava com seu pecado, Deus ordenou que o sumo sacerdote viesse até o tabernáculo com dois bodes vivos. Um dos bodes, escolhido pela sorte, seria sacrificado pelo pecado; o outro – o bode expiatório – era solto no deserto (Lv 16.7–10).
Este foi o papel que Jonas exerceu na salvação dos marinheiros. Assim como Arão colocou suas mãos no bode expiatório, colocando os pecados de Israel sobre sua cabeça e soltando-o no deserto (Lv 16.21–22), Jonas também removeu a ira de Deus levando seu pecado para o deserto da profundeza.
Até mesmo o uso da sorte para identificar Jonas sugere uma conexão intencional. Seu sacrifício removeu a ira de Deus do navio para que a paz pudesse ser restaurada entre o homem e Deus.
A “morte” de Jonas nas profundezas também antecipa a história redentora, encontrando seu sentido último na morte de Jesus Cristo. Foi o próprio Jesus que comparou sua morte à de Jonas: “… assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra” (Mt 12.40).
É claro que existem diferenças grandes entre Jonas e Jesus. Jonas é culpado de seu próprio pecado por ter recusado a vontade de Deus.
Jesus tomou sobre si apenas os pecados de outros, em obediência à vontade do Pai. No entanto, Jonas é um tipo de Cristo; é uma figura do Antigo Testamento que representa pelo menos um aspecto de Jesus e de sua obra salvífica.
Jacques Ellul explica o vínculo:
“Se é verdade que o sacrifício de um homem que aceita sua condenação pode salvar outros a sua volta, então isso vale muito mais se o homem sacrificado é o Filho de Deus”.
A “morte” de Jonas nas ondas, que encerrou a tempestade, mostra que o caminho da salvação de Deus envolve colocar os pecados em alguém que morrerá. E assim como a salvação de Nínive resulta da salvação de Jonas (parecida com uma ressurreição) após três dias no túmulo frio do grande peixe, a ressurreição de Jesus Cristo traz salvação para o mundo.
Em Jonas, explica Robertson,
“Deus persegue um homem até a morte para que ele possa abençoar muitos”. Semelhantemente, “Deus perseguiu seu próprio Filho até a morte para que muitos de todas as nação sob o céu pudessem ser salvos”.
Deus usou o testemunho adormecido de seu profeta rebelde para se revelar aos marinheiros. O profeta rebelde foi superado pelo Senhor soberano que enviou a tempestade.
Quantas vezes isso tem ocorrido com o povo de Deus: “O fato de a igreja não ser o que deveria ser no presente não significa que Deus não possa nos usar. Deus pode usar um bastão torto para desenhar uma linha reta, e foi exatamente isso que aconteceu no caso de Jonas”.
Mas como teria sido melhor se Jonas tivesse amolecido seu coração para a vontade graciosa de Deus! Nesse caso, ele poderia ter permanecido a bordo em vez de cair no mar frio quando os marinheiros convertidos começaram a adorar no navio.
É também para nós muito melhor aceitar o chamado soberano de Deus para a nossa vida, servindo à causa do evangelho sempre que Deus nos envia e maravilhando-nos diante da graça pela qual nós e os outros somos salvos.
S.D.G
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