Gênesis 21

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O autor bíblico demonstra o cumprimento da promessa divina como alicerce da obra redentiva, e exorta seus ouvintes/leitores a, através desse princípio, lembra-se de que a salvação é uma garantia alicerçada em sua fidelidade, a qual fará com que todos os seus eleitos, pela fé, desfrutem de sua graça.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 21
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Após a introdução do capítulo 20, em que a bênção divina mais uma vez persegue Abraão, mesmo frente ao seu vacilo na fé preservando-lhe a vida e apontando para o cumprimento da promessa de descendência, em Gn 21 o autor expõe que finalmente o SENHOR visitou a Sara e executou a aliança que firmara com o patriarca, dando-lhe um filho em sua velhice.
A narrativa então progridem e avança, se aproximando do momento apoteótico em que a fé do patriarca vê a movimentação histórica dos atos redentivos de Deus presentear-lhe com uma confirmação de que a salvação do SENHOR para com seu povo, vindo da parte de Abraão, está de pé e será levada a cabo (Gn 22).
Assim, o foco desta seção do livro de Gênesis é o cumprimento da promessa divina: a providência da linhagem santa como penhor da salvação.
Elucidação
O texto de Gênesis 21, estrutura-se em duas seções principais que lançam luz sobre um mesmo tema: o cumprimento da promessa do SENHOR ao seu povo por meio de Abraão. A primeira seção que vai dos versículos de 1 a 21, enfatiza o ponto central desse cumprimento nos termos das palavras proferidas pelo Criador em razão do pacto: o nascimento de Isaque como prova do comprometimento divino de providenciar o Descendente prometido (Gn 3.15) que salvará os eleitos de Deus dos efeitos da queda no pecado.
Porém, fazendo com o que a graça soberana do SENHOR ficasse evidente em sua eleição, o autor do texto demonstrará o desdobramento do cumprimento da promessa divina através de uma tensão entre a linhagem natural de Abraão (I.e. Ismael; que não faz parte da aliança com Deus), e a linhagem espiritual (I.e. Isaque; concebido miraculosamente), como símbolo da salvação a ser executada exclusivamente pelo próprio Criador sobre aqueles que elegeu. Esse tópico será desenvolvido com base na menção divina à dois pontos de sua promessa: a descendência prometida (vs. 1-21) e a terra de Canaã (vs. 22-33).
O capítulo é introduzido pelo momento em que Isaque é concebido (vs. 1-7), e de como a chegada dessa criança envolve grande alegria por parte de Abraão e Sara, que respondem ao favor divino de duas formas que são também destacadas no texto: Abraão põe o nome do menino de "Isaque", obedecendo ao dito do SENHOR em Gn 17.19, e o circuncida ao oitavo dia de nascido, como determinado por Deus. Sara, por sua vez, antes incrédula quanto a possibilidade de engravidar na velhice, tendo rido da menção divina de um filho, agora ri ao ver a promessa executada (v. 6).
Contudo, tais reações não são apenas demonstrativos do quanto Abraão e Sara estão felizes com o nascimento do filho prometido, mas, respostas ao plano salvífico do SENHOR; o modo como eles reagem é usado por Moisés para evidenciar a fé de ambos na salvação divina, isto é, Abraão e Sara, como membros do povo da aliança, exultam de alegria por entenderem a amplitude dos eventos para além da paternidade/maternidade: são a prova da redenção divina. Isso é deveras significativo porque no desenrolar da narrativa (vs. 8-21), essas posturas serão contrastadas com as de Agar e Ismael.
Por ocasião do desmame de Isaque, Ismael caçoa ("מְצַחֵֽק" = "mtsarêq" hb. rir, no caso, de maneira depreciativa) de Isaque. O riso então é usado pelo autor para fazer um constraste mediante o jogo da palavra "riso"(i.e. entre a reação de Sara, o nome de Isaque e o gracejo de Ismael) em relação a posição de Sara e Isaque - Agar e Ismael: enquanto que Sara ri de alegria de pela fé poder contemplar a benção de Deus que cumpriu o pacto (que apontava para a salvação), Ismael ri fazendo pouco caso do nascimento de Isaque ("יִצְחָֽק" = hb. "filho do riso"), e, mediante o comentário de Sara no verso 10, o riso de Ismael deve-se a sua crença de que ocupará o lugar de Isaque como herdeiro de Abraão, seu pai. O ponto então, é que Ismael opõem-se aos planos redentivos do SENHOR, desejando usurpar o lugar que não é seu.
Em termos desse jogo de palavras apresentado por Moisés no texto, que embasa o contraste entre Isaque e Ismael, Calvino declara:
É preciso observar que o epíteto que aqui se aplica a Ismael, e o nome Isaque, são ambos derivados da mesma raiz. Isaque foi, para seu pai e dos demais, motivo de santo e lícito riso; por isso o nome lhe foi divinamente atribuído. Ismael converte em ridículo a bênção de Deus, da qual fluía tal alegria. Portanto, como um ímpio zombador, ele se pôs em oposição a seu irmão Isaque. Ambos (por assim dizer) são "filhos de riso"; porém, em um sentido bem diferente. Isaque trouxera riso consigo, desde o ventre de sua mãe, visto que ele trazia - gravado em si - o evidente sinal da graça de Deus. [...] Por outro lado, Ismael, com um riso canino e profano, tenta destruir aquele santo júbilo da fé. E não há dúvida de que sua manifesta impiedade contra Deus se revelou nesso comportamento ridículo [...] e ainda - orgulhoso e confiante em si -, ele insulta, na pessoa pessoa de seu irmão, tanto Deus como sua palavra, da mesma forma a fé de Abraão (CALVINO, 2018, p. 581.)
O gracejo de Ismael com relação a Isaque (v.9) envolve o desprezo dele em relação a possibilidade de Isaque ser o herdeiro escolhido de Abraão, tendo em vista que, mesmo sendo filho de uma escrava, Ismael era o primogênito.
A primogenitura, tal como concebida no antigo Oriente Próximo, garantia que o primeiro filho recebesse maior honra e atenção da parte de seu pai, e portanto, maior responsabilidade estava sobre ele, ficando no lugar do pai, assumindo seus bens em face da morte deste. No caso de Abraão, ainda que tenha concebido um filho anteriormente, já houvera ficado claro para o patriarca que a benção de Deus estaria sobre Isaque, com quem o SENHOR havia firmado uma aliança (Gn 15.21).
O fato de ser descendência de Abraão não garantirá a Ismael participação na salvação. Desde o início da saga abraâmica, já havia ficado evidente que os esforços humanos não podem providenciar a salvação divina como ocorre em Gn 14.20; 15.17; 16, até por fim em Gn 17.21 a exclusividade da graça salvadora recai de maneira eletiva sobre Isaque, excluindo simultaneamente Ismael.
Com isso, Gênesis 21 demonstra a tensão não somente entre os dois filhos de Abraão, mas estes figuram a tensão entre a autoconfiança como meio de obtenção da redenção e a fé na graça eletiva de Deus; de um lado Agar e Ismael, do outro, Sara e Isaque. A resolução do conflito se dá quando Deus referenda a vontade de Sara de que Agar e Ismael sejam expulsos da casa de Abraão, sob o argumento de que Ismael "não será herdeiro com Isaque" (v. 10), porque a linhagem redimida "será chamada em Isaque" (v.12). Como complementa Bruce Waltke:
Não serão os filhos naturais a herdar a promessa (Rm 9.8); antes, perseguem os filhos da promessa. Estão em oposição à semente de Abraão por meio de Sara. Os descendentes de Ismael, ainda que descendentes de Abraão, em sua hostilidade para com os descendentes de Israel, pertencem à semente da serpente. Não obstante, a relação do Senhor com Agar e seu filho é ambígua. Agar demonstrou desdém para com Sara, e agora seu filho demonstra desdém para com Isaque. O Senhor os rejeita para a história da salvação e não lhes concede nenhuma herança na terra. Não obstante, ele ouve suas orações e lhes provê proteção e progênie em decorrência de sua relação com Abraão (WALTKE, 2010, P. 365).
A partir desse ponto, a saída da casa de Abraão e peregrinação de Agar e Ismael no deserto é resumida e desfechada de maneira a categorizar a distinção entre Isaque e Ismael em relação ao favor divino: Deus demonstra misericórdia para com Ismael e o salva da seca no deserto, prometendo-lhe também uma descendência (vs.13, 14-20), porém o autor enfatiza o contraste com Isaque com um breve comentário sobre o casamento de Ismael: "e sua mãe o casou com uma mulher da terra do Egito" (v.21). Diferente de Isaque que na continuação da narrativa se casará com uma mulher que demonstra a mesma fé de Abraão (Gn 24), Ismael contraí matrimônio com uma egípcia, que não conhecia o Deus de seu pai.
Concentrando-se por sua vez numa tensão que leva em consideração o teor da promessa divina a Abraão em relação à terra de Canaã, o autor destaca um relacionamento difícil entre Abimeleque (provavelmente outro personagem com o mesmo nome do rei de Gn 20, já que no caso, este é rei na terra dos filisteus, enquanto aquele, na terra de Gerar) e Abraão. Apesar de a relação entre eles ser mediada através de um juramento seguido do estabelecimento de um pacto, um conflito origina-se quando alguns servos de Abimeleque tomam de Abraão a posse de um poço. A rixa então encaminha-se a exibir uma rivalidade de intenções: Abraão como possuidor da promessa de herdar a terra, vê sua possessão ser usurpada por outros.
Porém, embora mais uma vez outro personagem esteja buscando usurpar o lugar que é de Abraão por direito (posição em que se colocou Ismael em referência a Isaque), duas cenas demonstram como Deus garante a posse da terra ao patriarca: o pacto firmado entre Abraão e Abimeleque, garantindo a este a posse daquelas terras (vs. 27-32), e a declaração representativa que o patriarca faz demarcando o território em que estava como pertencente ao SENHOR (vs. 33-34). Por vias deste último ato, Moisés traça um comentário que se desdobra em dois argumentos: 1) Abraão refere-se ao SENHOR como "o Deus Eterno" (hb. "יְהוָ֖ה אֵ֥ל עֹולָֽם" = SENHOR, Deus Eterno), como uma referência a fé do patriarca de que cria que futuramente obteria da parte de Deus o cumprimento da promessa em relação a terra (embora não em termos da terra de Canaã, mas da pátria que aguardava a construção (Hb 11.9-10), e aliado a isso, é registrada a informação de que "foi Abraão, por muito tempo, morador na terra dos filisteu", dado que foi compreensível para os ouvintes/leitores do texto Gênesis, e que remetia a promessa de que a terra de Canaã era possessão de Israel, tal como garantido por Deus a Abraão, o que também é usado pelo escritor como exortação à confiança em Deus, pois assim como o patriarca viu a execução das promessas do SENHOR (por ocasião do nascimento de Isaque e da relação com Abimeleque), Israel também haveria de receber da parte de Deus a herança prometida que apontava para o favor redentivo divino para com seu povo.
Transição
O texto de Gênesis 21 certamente nos mostra o quanto o SENHOR é fiel em cumprir seu pacto. Indo além disso, o texto exorta o povo de Israel à confiança de que aquele que certamente os têm guiado pelo deserto, os fará possuir a terra de Canaã. A base dessa certeza, porém, reside no tema central abarcado pelo texto: a descendência abraâmica é o instrumento usado por Deus para a chegada do herdeiro final, responsável por redimir o povo para sempre, e este é Cristo Jesus.
O nascimento de Isaque expande a visão de Abraão e Sara para compreenderem que a salvação será executada pela providência de um ente sobre o qual as bênçãos de Deus serão administradas em favor de seu povo. Assim como em Isaque, Abraão viu o percurso histórico que lhe garantia o recebimento da promessa divina, Israel deveria "manter-se na fé de Abraão", crendo que o SENHOR lhes faria usufruir da restauração prometida. Isaque não era o descendente, era um lembrete: a ação sobrenatural e soberana de Deus em prover a salvação é real, e sua graça há de ser derramada sobre a vida daqueles que ele têm chamado para serem parte do seu povo.
Essas considerações nos fazem ver alguns princípios a serem aplicados à nossa vida, de acordo com o texto.
Aplicações
1. A salvação está reservada àqueles que, pela fé conferida pelo Espírito Santo, creem nas promessas redentivas de Deus.
Assim como Isaque, Ismael também é um símbolo. A representação feita através do riso pejorativo de Ismael remete aquela impossibilidade de um não-eleito usufruir dos benefícios que estão reservados aos descendentes de Abraão, não pela hereditariedade, mais sim, pela fé. O restritivo que o apóstolo Paulo usa em Efésios 2.8 é de que a esta fé salvadora é um "dom de Deus", concedido gratuitamente aos eleitos por ele.
A única postura que o ímpio pode ter diante da apresentação do cumprimento da promessa de Deus é a completa rejeição. Lembremo-nos, por exemplo, de todas aquelas cidades que contemplaram os prodígios realizados por nosso Senhor, Jesus Cristo, e que ainda assim não creram nele como o Messias enviado da parte de Deus para inaugurar o Reino e restaurar a criação. Ou mesmo de que em alguns capítulos anteriores, mediante o anúncio do juízo de Deus, os genros de Ló não levaram a sério a advertência, e rejeitaram o convite à salvação da destruição iminente.
O ímpio não terá parte com os justos (Sl 1.5) e o demonstrativo disso é de que seu coração permanece endurecido e incrédulo; mantém-se num estado de oposição aos planos redentivos. Por outro lado, àqueles que recebem a fé para crer no cumprimento da promessa divina, lhes é dado não somente o contemplar a bênção da salvação, mas o regozijo que lhes sustenta na caminhada de peregrinação por esse mundo. O riso contente de Abraão e Sara exibem a transbordante alegria daqueles que contemplam a salvação.
O testemunho do apóstolo João é enfático ao sustentar essa perspectiva. Escrevendo a uma igreja que estava sendo minada pelo ataque de falsos mestres que tentavam desvirtuar o caminho do povo com heresias e libertinagem, o apóstolo reforça a fé da igreja afirmando que seus "olhos viram a manifestação do Verbo da vida" (1Jo 1.1-2), e que essa convicção de ter contemplado o cumprimento da promessa divina da salvação em Cristo Jesus, está sendo testemunhada àqueles irmãos "para que a nossa alegria seja completa" (v.4). João, assim como Abraão, viu que Deus é fiel em cumprir o que prometera, e como reação própria dos filhos de Deus, ambos alegram-se (i.e. riem), pois a redenção profetizada foi cumprida.
Essa alegria por outro lado, nutre também uma convicção, que nos leva ao segundo tópico de nossa aplicação do texto de Gênesis 21.
2. A salvação será entregue ao povo de Deus, não havendo nada nem ninguém que a possa usurpar.
Abimeleque e os homens de sua terra, tentaram tirar de Abraão a posse de um poço, que representava por sua vez, a posse de toda a terra. Porém, o Deus que não mente nem permite que sua palavra seja desfeita por ninguém, garantiu que a propriedade da terra permanecesse com o patriarca. Mais uma vez, o favor divino é representativo: o Deus de Abraão mostra-lhe que, a despeito da vontade dos homens de impedir que seus planos se cumpram, o Criador converte o coração dos homens para que sua vontade seja levada a cabo.
A certeza de que a herança prometida em Cristo nos será finalmente entregue, não consiste no quanto somos capazes de mantê-la, ou do quanto conseguimos viver de maneira a assegurar a obtenção de seus benefícios. A frase muitas vezes dita "Deus é fiel"precisa ser compreendida do ponto de vista bíblico. Deus não é fiel a nós, pois não merecemos sua fidelidade. Deus não é fiel às circunstâncias, pois não está preso a nenhuma delas, sendo ele mesmo quem as molda de acordo com sua vontade. o Criador é fiel a si, e ao seu maravilhoso plano de glorificação de seu nome.
Aprouve, porém, ao SENHOR que nesse planos, estivesse incluso nosso bem-estar espiritual. Tendo caído de nosso estado de perfeição em nossos primeiros pais, Deus veio em nosso resgate e executou sua obra redentora em Cristo Jesus, dando-nos o penhor que assegura o cumprimento de sua promessa.
Abraão, ao contemplar toda a benção de Deus que lhe garantiu a descendência e a terra (símbolos da obra salvadora), invocou o nome do SENHOR, Deus eterno, publicando que, nem mesmo o tempo pode apagar as palavras divinas que lhe asseguraram a salvação. Da mesma forma, aguardamos a consumação da obra salvadora realizada pelo Deus de Abraão, que garante a vitória e a redenção, não por um dia ou dois, mas para toda a eternidade.
Conclusão
Deus, em Cristo, cumpre todas as sua promessas, garantindo que nós usufruiremos de toda sua bondade e graça, fazendo com que pela fé, nos alegremos nesse mundo, exibindo a obra graciosa que está realizando em nós, para que, no dia final, possamos adentrar pelas portas da Cidade Santa, quando riremos, pois o SENHOR nos têm dado e dará motivo de riso (Gn 21.6).
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