Gênesis 33.18-34.31
Série expositiva no Livro de Gênesis • Sermon • Submitted
0 ratings
· 18 viewsO autor desdobra a temática da impossibilidade de união entre os filhos de Deus e os filhos da serpente através da narrativa, demonstrando as consequências catastróficas da insistência nesse pecado, e também apontando para a soberania divina em preservar seu povo da artimanha dos ímpios, conduzindo a história redentiva à fruição dos propósitos divinos estabelecidos.
Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 33.18-34.31
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Progredindo a saga patriarcal, após o episódio em que a reconciliação de Jacó com seu irmão Esaú foi usada como referência que demonstra sua condição diante de Deus, isto é, tendo agora recebido da parte do próprio Criador uma demonstração de sua eleição mediante redenção, o autor avança a história salvadora através do patriarca, desdobrando os fatos a seguir conectando-os ao todo na narrativa genealógica que vem traçando desde o capítulo 1.
É mister ao público para o qual o autor se dirige, entender que a jornada patriarcal não está alheia a temática central que vem sendo traçada desde o início do livro. A lembrança de que os planos redentivos não foram iniciados em Abraão, mas vêm sendo desenvolvidos a partir de personagens anteriores que também foram usados por Deus no avanço de suas intenções salvadoras, ratifica a fidelidade do SENHOR em cumprir tais propósitos. Porém, a reconexão àquelas narrativas primevas, também retoma ou reforça alguns princípios que devem ser mantidos em evidência na mente do povo de Israel (e consequentemente, de toda a igreja de Deus), princípios esses que definem e delimitam o relacionamento entre o Soberano e seu povo eleito.
Um desses temas é a separação entre os povos originais, isto é, entre as linhagens traçadas e determinadas em Gênesis 3.15, como sendo a divisão fundante de toda a humanidade: os filhos da mulher; descendentes do próprio Deus (cf. genealogia Gn 5), e os filhos da serpente; aliados de Satanás em seu fracassado levante contra o Criador (cf. Gn 4.17-24).
Como dissemos anteriormente, a dinâmica desse conflito movimenta a história; a cada novo confronto entre as descendências, aspectos mais específicos e característicos tanto das linhagens em si - promovendo ao povo de Deus o conhecimento necessário para que se esquivem do comprometimento ou união com seu rival -, quanto do próprio plano redentivo são clarificados, e a exortação autoral se intensifica, fazendo com que a atenção dos eleitos concentrem-se no cumprimento da Aliança que garante a vitória final sobre o reino parasita e rebelde.
No caso da seção em destaque, o primeiro princípio é o enfatizado; uma advertência em forma narrativa é desdobrada, expondo os fatos que desencadearam a inimizade entre alguns povos habitantes da terra de Canaã para com Israel, inimizade que no nível espiritual, é alimentada pela antagonia entre os filhos de Deus e os filhos dos homens, e providenciada pelo próprio Criador para manter pura sua linhagem.
Em face disso, conclui-se que a tese central do texto de Gênesis 33.18-34.31 é a ação providencial divina na saga patriarcal na separação das linhagens como confirmação da obra redentiva.
Elucidação
A narrativa é iniciada, precisamente, a partir do versículo 18 do capítulo 33, quando, após encontrar-se com Esaú, Jacó se estabelece junto a cidade de Siquém, pertencente a um povo possivelmente oriundo e descendente de Cam filho de Noé (cf. Gn 10.17), e tendo aqui comprado um lote de terra, fixa residência, inclusive erigindo um altar, lhe chamando "Deus, o Deus de Israel" (v.20). Como dito, esse rito de construção de altares, consagra a localidade como propriedade de uma divindade, ou como marco do favorecimento da mesma em relação a alguém, no caso, Jacó dedica um altar ao SENHOR, provavelmente em memória de ter Deus restaurado a relação entre seu irmão e ele, que como dito, apontava para uma confirmação de comunhão com o próprio SENHOR (WALTON, 2018, p. 81).
Porém, a localização dessas informações como introdução aos fatos seguintes, aliadas ao contexto anterior, apontam o grave erro de Jacó em estabelecer-se junto a Siquém. Em Gn 28.18-22, Jacó firma um voto com Deus, de lhe construir um altar no lugar onde o Soberano lhe aparecera, devotando-lhe também o dízimo. O detalhamento da fixação de residência de Jacó em Siquém indica a quebra do voto, ou pelo menos, o não cumprimento imediato do mesmo, o que proporciona a compreensão que os eventos a seguir sobrevém a Jacó por sua infidelidade para com Deus.
As consequências da negligência do patriarca em guardar a aliança que fizera com o SENHOR, incidem sobre ele e sua casa, ao proporcionar o ambiente em que o pecado haverá de provocar desastres e perdas gravíssimas. A exortação direta ao povo de Israel mediante tais palavras é clara: Moisés estaria demonstrando as consequências da desobediência ao pacto, primeiro num nível mais amplo e em seguida através de princípios mais específicos, como a inclinação em unir-se à povos pagãos.
A partir do versículo 1 do capítulo 34, o episódio em questão começa mediante a ação de um dos filhos de Jacó, e seu comportamento é conectado a temática da narrativa: "Diná, filha que Lia dera à luz a Jacó, saiu para ver as filhas da terra" (v.1). O ato de "ver" ("רְאֹ֖ות" hb. lit. "observar", "olhar atentamente") é intensificado pelo autor ao situar essa atitude no início da narrativa. Logo, não se trata de um recorte leviano ou uma descrição descompromissada da parte de Moisés; Diná estaria observando acuradamente as filhas da terra, e como esta situação monta o palco para a situação por vir, deduz-se que sua observação restringe-se aos costumes das filhas daquela terra, costumes que causaram repulsa a Abraão, Isaque e Rebeca (WALTKE, 2010, p.573).
Além disso, o termo "filhas da terra" (hb. lit “לִרְאֹ֖ות בִּבְנֹ֥ות הָאָֽרֶץ ") pode ser um designativo qualificativo, isto é, Moisés diferencia Diná - apesar de sua atitude de aproximação - das filhas do homens, caracterizando ambos os personagens como em posição antagônica.
No verso seguinte, Moisés dá sequência a construção cênica que iniciará a tensão do enredo: "Viu-a Siquém, filho do heveu Hamor, que era príncipe daquela terra, e tomando-a, a possuiu e assim a humilhou" (v.2). Ambos os verbos "ver" empregados nos primeiros versos, fazem uma ponte conceitual entre as atitudes: Diná viu as filhas da terra, e cobiçou seu modo de vida, tornando-se - pelo menos exteriormente - semelhante a elas, como ação resultante, Siquém a viu, não fazendo distinção entre ela e as demais mulheres; ele a cobiçou e possuiu, humilhando-a (fig. de ling. eufemismo para estupro).
As ações tanto de Diná quanto de Siquém foram direcionadas por sua "visão", e as consequências manifestam-se imediatamente quando, surpreendentemente, o príncipe de Siquém se apaixona por Diná, e, a partir do verso 4, tencionando casar-se com a jovem, uma negociação é iniciada por seu pai e Jacó, a fim de que os dois povos se unissem, proporcionando o ambiente ideal para o casamento dos filhos de ambos. Contudo, tal a união é adiantada como estranha, quando Moisés redige a narrativa de maneira a situar aquela união como contrária a Lei de Deus, por meio de um adiantamento dos princípios legais da Aliança que tornavam a união dos filhos de Israel com os filhos de outros povos algo proibido (cf. Êx 34.11-16; Dt 7.1-11), ecoando a expressão encontrada naqueles textos:
Gênesis 34.8–10 (RA)
Disse-lhes Hamor: A alma de meu filho Siquém está enamorada fortemente de vossa filha; peço-vos que lha deis por esposa. Aparentai-vos conosco, dai-nos as vossas filhas e tomai as nossas; habitareis conosco, a terra estará ao vosso dispor; habitai e negociai nela e nela tende possessões.
A negociação entre os povos de Israel e Siquém põe em risco a continuidade pura da linhagem da Aliança, o que ao longo da história patriarcal sempre foi um risco anulado pela ação divina, entretanto, mais uma vez a saga apresenta um episódio onde a iminência de tal desastre é real.
Além disso, outro fator complicador nesta possível união, é também a perda a ser infligida aos filhos de Israel. Ao longo da história patriarcal, um padrão de despojo dos adversários mediante a bênção divina é estabelecido. Porém, através da fala de Hamor aos seus conterrâneos, um problema surge: "O seu gado, as suas possessões e todos os animais não serão nossos?" (v.23). Os bens que Jacó possuía, assim como foi com Isaque e Abraão seus pais, haviam sido transferidos aos eleitos mediante a concessão divina de vitória sobre os inimigos, uma marca da ação redentiva de Deus em favorecer seu povo em detrimento dos seus adversários.
Ao declarar que a fusão de povos resultaria na fusão de bens, Moisés aponta que o princípio de vitória e despojo dos inimigos seria invertido: a prosperidade que o SENHOR havia feito Israel usufruir, seria anexada à riqueza de outros povos, uma reversão no fluxo redentivo traçado até este ponto na história do povo de Deus.
A partir deste ponto o modus operandi divino é introduzido, isto é, a ação soberana do Criador por trás da cortina da realidade é evidenciada. Após a fala de Hamor, o próprio príncipe confirma suas intenções de casar-se com Diná, alegando pagar o preço que fosse pedido: "Majorai de muito o dote de casamento e as dádivas, e darei o que me pedirdes, dai-me, porém, a jovem por esposa" (v.12), ao que nesse momento, o autor apresenta a entrada de outros dois personagens ao episódio que são responsáveis por ocasionar o clímax na tensão entre Jacó e Siquém.
O fluxo narrativo é entremeado por um comentário onisciente do narrador: "Então, os filhos de Jacó, por causa de lhes haver Siquém violado a irmã, Diná, responderam com dolo a Siquém e a seu pai Hamor [...]" (v.13). A trama adentra o momento em que intenções negativas da parte de alguns dos filhos de Jacó desencadeiam uma série de eventos catastróficos.
Tomando parte nas negociações, os filhos de Jacó, que no momento não são nomeados, afirmam a impossibilidade de união sem que haja a aquiescência de Siquém, Hamor e todos os homens em sua cidade, em circuncidarem-se. O dolo da afirmação é revelado pelo desprezo dos filhos de Jacó ao princípio norteador da prática do sacramento entregue a Abraão: a circuncisão deve ser feita mediante confissão de fé no Deus que se revelara a Abraão, Isaque e Jacó, como obediência à sua Aliança (Gn 17.10).
Porém, Siquém, cego pelo interesse de receber Diná como esposa, e seu pai Hamor, em expandir seu reino mediante a fusão de bens com Jacó, aceitam a proposta, e com eles, "deram ouvidos [...] todos os que saíam da porta da cidade; e todo homem foi circuncidado, dos que saíam pela porta da cidade" (v.24).
Ao terceiro dia após terem sido circuncidados, "quando os homens sentiam mais forte a dor"(v.25), Simeão e Levi, irmãos diretos de Diná e filhos de Jacó, traem o acordo, e matam todos os homens daquela cidade. A ruína pré-anunciada pela visão de Diná é efetivada: a união entre os filhos de Deus e os filhos dos homens acarretou mais uma vez a destruição dos ímpios, contudo, também trouxe tragédia para a casa de Jacó, como fruto da disciplina divina, em ter o patriarca permitido unir-se ao filhos da serpente.
A advertência autoral é nítida: a cobiça pelo modo de vida dos ímpios acarreta humilhação, e a união com eles, sempre atrairá juízo para os filhos da serpente, e disciplina para os filho de Deus, que jamais serão exterminados, mas sentirão o amargor de terem cogitado estabelecer comunhão entre luz e trevas.
Transição
O texto de Gênesis 33.18-34.31 apresenta um lapso na história patriarcal, como já tem sido visto ser próprio dos personagens através dos quais o Criador está levando adiante a redenção. Esse contraste entre os vícios dos patriarcas e a soberania divina garantindo êxito em seus planos, mantém em riste a perspectiva de que o mau não poderá impedir que a glória do Criador cubra toda a terra, e que a salvação seja executada pelo enviado da parte de Deus.
Entretanto, a narrativa relembra todos esses princípios através da negatividade dos atos dos personagens, que serve como um lembrete de que o pecado jamais poderá ficará sem resposta ou disciplina. A infidelidade de Jacó em cumpri sua aliança com o SENHOR, e sua omissão em guiar sua casa de acordo com a ética divina, aquiescendo à um pacto com ímpios que macularia a linhagem da Aliança; a cobiça de Diná de viver como mundana ou semelhante às filhas da serpente; o dolo ou malícia de Simeão e Levi ao enganar e matar homens através de uma vingança dolosa, são advertências ao povo de Israel: distanciar-se do Criador acarretará danos graves... alguns até irreversíveis até a restauração final.
Mediante a observação desse quadro geral, os mesmos princípios tencionados pelo autor divino/humano, alcançam-nos hoje. Quais sejam:
Aplicações
1. A infidelidade para com Deus e seus mandamentos sempre abrirá a porta para outros pecados.
A descrição da narrativa aponta a morosidade de Jacó em cumprir o voto feito anteriormente. Deus o havia levado em segurança à terra de Padã-Arã; o fez prosperar, e trouxe-o de volta à salvo (cf. Gn 33.18 ) para a terra de Canaã. Porém sua retribuição foi infidelidade e fraqueza. Como resultado, se colocou numa situação em que o pecado reinou, adentrando pelas portas de seu coração, atingindo toda a sua casa.
Evidentemente, a situação não pode ser restringida ao fato de fazer um voto a Deus, pois nossa fidelidade para com o Criador independe de termos feito um juramento ou não. O fato de existir, por si, nos coloca numa posição de subserviência para com o Soberano (CFW, cap. XII, prgf 1). Porém, a graça da redenção intensifica ainda mais esse princípio em nosso coração. Rejeitar os mandamentos do SENHOR sendo morosos em os cumprir, ou negligenciar a Lei de Deus, sempre nos colocará numa situação em que o pecado - que já está dentro de nós - ganhará forças, nos arrastando para longe do Criador, tal como Jacó estava longe de Betel.
Nosso dever como filhos da Aliança é nos comprometermos com a vontade divina, considerando-a sempre em primeiro lugar, acima de quaisquer outras coisas. Se aceitarmos a conveniência de algumas situações que favorecem o pecado e o erro, acabaremos nos desviando do caminho que precisamos seguir, e as consequências para isso serão gravíssimas.
2. Cobiçar viver como mundo, trará a vergonha de sermos tratados como mundanos.
Diná viu o costume das filhas da terra e quis ser igual. Achando que ali estava o melhor para si, a filha de Jacó buscou viver como mundana, e o resultado é que foi tratada como tal. Trouxe a vergonha de ser violada sexualmente por um ímpio que, embora posteriormente a tenha amado, não deixou de ser um filho da serpente. Como já dito, a união entre luz e trevas sempre acarretará juízo para os ímpios, e disciplina para os servos de Deus.
Os procedimentos mundanos, embora pareçam ser efetivos, isto é, parecem atrair o sucesso, o bem-estar e prosperidade de maneiras mais rápidas, estão eivados de desobediência e rebeldia, além de não poderem furigr de sua condição de perdidos, que receberão, neste mundo ou no vindouro, a justa punição por seus pecados.
Certamente, a salvação nos está garantida em Cristo e jamais será sustada ou removida. Porém, como diz o ditado popular: "quem se ajunta com porcos, farelo come", o que neste contexto significa, que se desejarmos viver como o mundo, seremos em certa medida tratados como o mundo, e à luz do texto presente, não haverá felicidade enquanto nossas obras se assemelharem a dos que não foram agraciados com a luz do Espírito.
3. A resposta para as injustiças que sofremos não é a ira ímpia, mas a confiança na soberania de Deus.
Simeão e Levi são retratos claros da iniciativa carnal que muitas vezes temos, em responder as injustiças que sofremos de maneira pecaminosa. Já disse o apóstolo Tiago "[...] A ira do homem não produz a justiça de Deus" (Tg 1.20), muita pelo contrário, se buscarmos retribuir o mal com o mal, somente o mau triunfará.
Cercados como estamos pelo pecados que nos assediam de todos os lados, vivendo num mundo obscurecido pelas trevas do pecado e malícia de Satanás, o furor do nosso coração contra a maldade se acende com facilidade. Porém, assim como o autor divino/humano instou o povo de Deus no passado, através de nesta narrativa, a não executarem juízo por conta própria, do contrário, estariam replicando a tola e dolosa ação dos filhos de Jacó, devemos nós também confiar que o Justo Juiz a tudo vê, e no momento certo, dará cabo de seus inimigos, especialmente daqueles que ousam maltratar a noiva de Cristo.
4. A derrota dos ímpios é inevitável, não importa o quanto tentem.
Hamor buscou uma forma de fundir os povos originais. O tolo rei de Siquém achou que podia ser favorecido pela união com Israel, desfrutando de seus bens e riquezas, e consequentemente, bênçãos. Porém, a mão da divina providência o fez ver (da prior maneira possível; com a morte), que nenhum dos inimigos do povo de Deus poderá prevalecer.
A gana por sucesso e riqueza foi a ruína dos heveus, assim como a ganância dos mundanos que militam contra igreja os levará ao fracasso e derrota, pois a vitória pertence a Deus, aquele que antes da fundação do mundo, elegeu seu povo para participar de sua vitória sobre o mau, sendo este usado como instrumento da publicação de sua soberania e glória sobre toda a criação.
Como visto desde Gênesis 6 a 9, não poderá haver união entre luz e trevas, sem que as trevas sofram o dano por suas intenções malignas de tentar subverter o povo de Deus em escravos de seus anseios. Ao longo da história da redenção, Satanás está fadado a lamber o pó da derrota, sempre que tentar se levantar contra os eleitos; uma referência do que acontecerá de uma vez por todas, quando o golpe em sua cabeça for consumado pelo Descendente de Israel, que retornará para assentar-se no trono dos céus.
Conclusão
Jacó foi infiel, não cumprindo com diligência seu voto a Deus, e isso trouxe-lhe danos que se irradiaram para toda a sua casa. Porém, os danos causados pelo pecado, foram convertidos em bens, pois a graça do SENHOR agiu para que do meio da tempestade, surgisse um novo ambiente para que Jacó conhecesse mais profundamente a extensão dos planos redentivos, em manter a salvo seu povo para honra e glória do Criador.