Gênesis 35.1-15

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O autor exibe o chamado divino a Jacó o levando a desfrutar da graça restauradora mediante a reafirmação do pacto redentivo que lhe garante o usufruto das bençãos patriarcais, fundamentadas sobre a promessa do Descendente Prometido, Rei do povo de Deus - Jesus Cristo.

Notes
Transcript
“Este é o livro das gerações ...” (Gênesis 5.1).
Gênesis 35.1-15
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Após a resolução da tensão que introduziu o reencontro de Jacó com seu irmão, Esaú, o texto fluiu mais uma vez demonstrando a dinâmica oscilante (do ponto de vista humano) da saga patriarcal, quando o autor revela a fidelidade de Deus em cumprir seus planos redentivos através dos descendentes de Abraão, mesmo diante da falha de um deles em ser fiel ao SENHOR que lhe aparecera (Gn 28.10-22).
O episódio de Gn 33.18-34.31 cria um anticlímax em relação aos fatos anteriores: Deus, sendo gracioso, demonstra a Jacó seus planos de reconciliar consigo a linhagem santa continuada em Abraão, quando o abençoa com a troca de seu nome, indicando sua condição redimida diante do SENHOR. Porém, logo após tamanho sinal de graça ter sido exibido, Jacó falha em cumprir o que havia dito ao Criador, e atrai para si e sua casa consequências desastrosas: o estupro de Diná, e a oposição dos heveus e demais povos da terra de Canaã, ao ter seus filhos violado um acordo (acordo esse que era por si só indevido, pois colocava em risco a pureza da linhagem eleita) feito com os habitantes daquela terra.
A resolução dessa tensão na história de Jacó, apresenta-se na referida seção quando a graça divina triunfará sobre a falha do patriarca, quando o SENHOR reafirma seu compromisso pactual com seu eleito, garantindo que os planos redentivos não foram alterados. O núcleo temático da presente seção é a reafirmação do compromisso pactual como demonstrativo da graça restauradora.
Elucidação
A seção inicia-se com uma ordem direta do Criador a Jacó: "Levanta-te, sobe a Betel e habita ali; faze ali um altar ao Deus que te apareceu quando fugias da presença de Esaú" (v.1). O imperativo divino conecta o texto à pericope de 33.18-20, quando o redator apresentou uma alteração no percurso geográfico de Jacó que era estranho ao esperado do patriarca. Como dito, mediante o estabelecimento de um voto em Gn 28.20-22, a postura aguardada era que Jacó continuasse sua peregrinação de volta a Betel. Porém, ao estabelecer-se em Siquém (cf. 33.18), demonstra um afastamento daquele plano.
Agora, mediante a ordem divina, aquela narrativa é retomada, porém, a conotação sugerida pelo autor exibe contornos teológicos diferentes a serem percebidos nessa retomada. O retorno de Jacó à caminhada não procede de uma iniciativa do próprio patriarca; é o SENHOR quem lhe ordena subir à Betel. A apresentação abrupta do personagem (i.e. Deus), indica uma intensão de destacá-lo: Moisés exibe claramente que o regresso de Jacó ao centro dos planos divinos é fruto da ação soberana do SENHOR, e não do homem.
A expectativa de Jacó ao fim da narrativa anterior é de que devido os atos de seus filhos (desencadeados por causa de sua própria fraqueza), ele e sua casa seriam destruídos:
Gênesis 34.30 RA
Então, disse Jacó a Simeão e a Levi: Vós me afligistes e me fizestes odioso entre os moradores desta terra, entre os cananeus e os ferezeus; sendo nós pouca gente, reunir-se-ão contra mim, e serei destruído, eu e minha casa.
Contudo, novamente (assim como aconteceu no reencontro com Esaú) o patriarca é surpreendido com fatos que apresentam-se de maneira oposta ao que esperava: ao invés de ser destruído, Deus se apresenta ordenando que siga para Betel e cumpra seu voto. A graça divina o encaminha novamente à jornada através da qual as bênçãos prometidas a Abraão deverão recair sobre ele, fazendo com que a Aliança anteriormente estabelecida seja respeitada, e seu desfecho aponte ao povo de Deus a redenção a ser executada pelo Descendente Prometido.
A resposta de Jacó a isso exibe a compreensão que o patriarca tinha quanto ao que estava acontecendo: o Criador o estava encaminhando de volta ao percurso previamente traçado, e a reação do patriarca mediante o derramar da misericórdia divina é afirmar o princípio prefigurado pelo voto que fizera: somente o Deus de Abraão e Isaque, seu pai, era o seu Deus (cf. Gn 28.21). Assim Jacó convoca todos os que estavam com ele (v. 2) a lançarem fora seus deuses e ídolos, mandando que também se purificassem, a fim de que pudessem juntamente com ele, ir à Betel construir um altar "ao Deus que me respondeu no dia da minha angústia, e me acompanhou no caminho por onde andei" (v.3), como esclarece Walton:
A purificação geralmente era acompanhada de procedimentos rituais, mas nesse caso também pode ter sido uma reação ao derramamento de sangue do capítulo 34. [...] A preparação para a adoração e para os rituais também incluía abrir mão de qualquer sinal de lealdade a outros deuses. [...] A adoração é representada como uma peregrinação, como indica a expressão do versículo 1 (WALTON, 2018, p. 83).
Em face dessas conclusões, o autor sugere uma nova imagem de Jacó: o apático e calado homem que em sua fraqueza, permite que sua casa sofra com o pecado de seus filhos, agora, os conduz à adoração ao SENHOR, reconhecendo-o como único Deus sobre seu lar, a quem é devida a sincera obediência.
Mediante esta postura de Jacó, Moisés organiza tanto um cenário em que a mesma reação é incentivada para com o povo de Israel sob sua tutela, quanto adianta os resultados advindos de tal ação. A partir do versículo 5, a narrativa é mais uma vez entremeada por um comentário autoral: "E, tendo eles partido, o terror de Deus invadiu as cidades que lhes eram circunvizinhas, e não perseguiram aos filhos de Jacó". Essa expressão da ação divina demarca a surpresa proporcionada pelo Criador ao patriarca, demonstrando sua graça benevolente: a aliança está intacta, e seus benefícios perduram, pois ao invés de ser destruído pelos povos vizinhos, a mão divina os fará tremer ante a fama do Deus de Jacó.
Além de uma confirmação do favor divino para com o eleito de Deus, o autor exibe outra conexão entre as histórias patriarcais e a peregrinação do próprio povo de Israel. A redenção que garantiu a saída do povo do Egito foi conhecida por todos povos da terra de Canaã para onde o povo estava se dirigindo, os fazendo tremer o nome do SENHOR que protegia os hebreus, o que aconteceu também como cumprimento da aliança feita por Deus com Israel (cf. Êx 23.27; Dt 2.25). Logo, há uma conexão tácita entre o perdão divino e a aliança: o primeiro é consequência direta do segundo, como é percebido também na sequência do texto em questão.
Ao chegar em Betel, após edificar um altar e consagrá-lo ao SENHOR (vs. 6-8), novamente o Criador apresenta-se a Jacó, e como visto, as teofanias demarcam o interesse divino de confirmar pessoalmente as promessas pactuais feitas antes, e os termos desta última confirmação, além de reforçarem o episódio em Peniel, remontam à Gênesis 15 e 17:
Gênesis 35.9–12 RA
Vindo Jacó de Padã-Arã, outra vez lhe apareceu Deus e o abençoou. Disse-lhe Deus: O teu nome é Jacó. Já não te chamarás Jacó, porém Israel será o teu nome. E lhe chamou Israel. Disse-lhe mais: Eu sou o Deus Todo-Poderoso; sê fecundo e multiplica-te; uma nação e multidão de nações sairão de ti, e reis procederão de ti. A terra que dei a Abraão e a Isaque dar-te-ei a ti e, depois de ti, à tua descendência.
A menção à morte de Débora e deliberada omissão da morte de Rebeca, introduzem também de maneira marcante essa intenção divina de abençoar Jacó. Rebeca havia prometido que, no tempo devido, após a ira de Esaú diminuir, haveria de chamar o patriarca de volta à sua casa e terra (Gn 27.42-45), porém ela morre não podendo consumar sua promessa. Entretanto, o que fora impossível à matriarca foi executado amorosamente pelo Criador, que agora o recebe em Betel, confirmando para ele a benção de seus pais.
Além da repetição dos termos da aliança que garantem descendência, tal como dito a Abraão, a menção especial a linhagem real oriunda do patriarca no final do versículo 11, reaviva a consideração redentiva tendo em vista que, por meio dessa linhagem o próprio messias haveria de vir, ou seja, o caráter de reafirmação da palavra pactual a Jacó tem em vista não somente apresentar-lhe o mantenimento da aliança e seus benefícios gerais, mas situar o patriarca no centro do plano redentivo, estabelecendo-o como parte do processo através do qual o Descendente Prometido virá para consumar a promessa.
Isto aplicado ao povo de Israel, também transmite o ideal salvador como fundamento do curso histórico que estão vivenciando em sua jornada. Todos os benefícios do pacto, convergem para que o povo de Deus ao longo da história perceba a movimentação progressiva dos planos divinos de restaurar sua criação por meio do ente prometido a Adão, encarregado de ser a base da ação soberana, garantindo o triunfo da glória de Deus expandida sobre o cosmo.
Transição
Jacó é exortado à subir a Betel, para que perceba a graça soberana abundando sobre seu pecado, e assim possa também ver - assim como todo o povo de Israel deveria por meio desta narrativa e de sua própria história - que os planos redentivos fluem intactos, e isso lhes garante a vitória final sobre a corrupção do pecado que pôs a criação em desordem, mas que será ao final destruído, dando lugar ao reino ininterrupto do Criador por meio de seu Rei enviado - Jesus Cristo.
O aprofundamento da temática salvadora conectando a linhagem real messiânica a reafirmação do pacto abraâmico, exibe o quadro geral que elenca as exortações direcionadas pelo autor divino/humano para o povo de Deus, através da narrativa em que Jacó contempla a bondade divina em lhe perdoar seu pecado. De igual forma, tais princípios devem ser direcionados à igreja de Cristo hoje, por meio da observação das seguintes aplicações:
Aplicações
1. A restauração de um pecador à presença de Deus, o fazendo usufruir das bençãos pactuais, é uma iniciativa exclusivamente monergista.
Como visto, é Deus quem chama Jacó à sua presença, ordenando-lhe que cumpra o voto, através qual a graça redentiva será declarada e a benção pactual será reafirmada.
Com isso, segundo já abordado, Moisés exibe o processo de restauração que seria executado futuramente em favor do povo de Deus: assim como demonstrado a Abraão e Isaque, Jacó testemunha que a obra salvadora é unicamente monergista, isto é, é Deus e somente Deus quem busca o pecador e o traz de volta à sua presença.
Os esforços humanos só afastam o homem de seu Criador, assim como aconteceu com Jacó, que ao invés de manter-se firme no propósito de servir ao SENHOR, tal como havia dito que faria, estabelece-se numa terra que lhe proporciona pecado e sofrimento, e ainda que lá tenha sido abençoado por Deus com a vitória sobre os inimigos que ameaçavam seu relacionamento com o SENHOR, experimentou a vergonha e o temor de que fosse ser destruído pela fúria dos adversários.
Conosco a dinâmica é exatamente a mesma. Tenho nos afastado de nosso Criador, fomos resgatados não por uma parceria de nossa "força de vontade" somada à graça salvadora. Deus nos buscou em nosso pecado, e nos trouxe ao seu Reino, mediante a confirmação da Aliança que nos garante a vida eterna, e fez isso em seu Messias; o alicerce da salvação. O que nos encaminha ao ponto seguinte.
2. A base da restauração redentiva executada pelo SENHOR é o descendente prometido, oriundo da linhagem real prometida aos patriarcas (v. 11b) - Jesus Cristo, o Rei.
Tanto para Sara quanto para Jacó, a menção honrosa de uma linhagem real dentro da linhagem santa, garantiu ao povo de Deus a expectativa de ver surgir na história o homem que seria responsável por conectar o povo caído ao Deus gracioso.
O pacto - a revelação condescendente do Soberano (CFW, cap VII, prgf 1) - encerra a maior promessa já feita na história: eu serei o seu Deus e eles serão meu povo (cf. Jr 31.33), e o alicerce dessa promessa é a vinda do Rei da linhagem davídica, que se assentaria no trono de Deus em Israel para de lá governa todo o reino cósmico, levando a restauração e cura do pecado à todo o império.
Na cruz, o pacto foi cumprido, e o Rei revelado em sua encarnação recebeu o nome acima de todos (Fp 2.9-11), garantindo a glória do Deus Triuno. Jesus Cristo é a razão de nossa esperança: assim como Jacó teve sua restauração exibida mediante a reafirmação do pacto da graça entregue a Abraão, Cristo nos concedeu a ratificação da Aliança, não somente quando sofreu vivendo entre pecadores e por fim, sacrificando-se por eles, mas também quando assentou-se à direita da Majestade, reservando nosso lugar no seu reino vindouro.
Não cremos numa promessa vazia feita há muito tempo atrás, cujo o próprio decorrer dos anos, a empobrece e esvanece. Nossa fé está fundamentada no compromisso divino de restaurar a criação para ser o lar da relação amorosa de Deus com o seu povo, por meio do reinado daquele que se sacrificou em nosso lugar: Jesus Cristo, o Rei. Nisso cremos, e com base nisso aguardamos a descida daquele que elevou-se sobre Jacó, ao ter prometido a redenção (Gn 35.13).
3. A obra restauradora executada em nós pelo Espírito, resulta em obediência e serviço ao SENHOR.
Ao ter Deus reafirmado os benefícios da Aliança, tendo convocado Jacó à Betel para lá cumprir seu voto, a resposta do patriarca não foi outra, senão obediência e serviço ao Criador.
Como dito, ele levou sua casa e todos os que com ele estavam à abandonarem tudo o que desagradava a Deus, o que mostra que havia entendido que errara ao ser apático diante da desordem que causou ao seu próprio lar.
Embora em diversos momentos a apatia e omissão nos acometam, nunca será tarde para reestruturarmos nossa vida diante do SENHOR, arrependendo-nos de nossos pecados e tornando a ele em temor e piedade.
João Calvino, usando a experiência de Jacó como guia exortativo a igreja, comenta:
Se, em algum tempo, entorpecimento e negligência sorrateiramente nos assaltarem, que a disciplina paternal de Deus nos excite e nos estimule diligentemente a nos purificar de toda e qualquer impureza que, por nossa negligência, tenhamos contraído (CALVINO, 2019, p.259 (adaptado)).
Jacó sentiu a disciplina divina ao ter sido ferido por seu próprio pecado na terra de Siquém, e agora, vendo o perdão divino lhe abrir a portas da graça, responde em sincera veneração e piedade, conduzindo sua casa ao temor do SENHOR.
Entretanto, em relação a nós, não é lícito esperar que primeiro venha pesar sobre a nós a mão de Deus, para que então o obedeçamos, nos afastando de tudo o que o desagrada. Em Cristo, sabemos que nosso pecado foi punido, e isso por si, é estímulo suficiente para que possamos glorificar ao nosso Deus, pelo perdão que nos concedeu, quando em nosso entorpecimento, permitimo-nos viver em pecado.
Conclusão
As trevas que enegreceram as vistas do patriarca Jacó (Gn 33.18-34.31), foram dissipadas pela luz da graça divina (Gn 35.1-15), que brilhou também em nossas vidas, mostrando-nos Cristo, aquele em quem a benção da aliança repousa, administrando sobre nós, o favor do SENHOR e sua redenção.
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