Mateus 17.14-22
Série expositiva no Evangelho de Mateus • Sermon • Submitted
0 ratings
· 14 viewsO autor demonstra a fragilidade da fé humana, exortando e consolando a igreja a perceber que tais episódios de lapso fazem parte do trajeto redentivo proposto, que os levará ao amadurecimento da fé e à glorificação, no dia final, quando o Reino for publicado.
Notes
Transcript
“[...] Porque é chegado o Reino dos céus” (Mateus 3.2).
Pr. Paulo Ulisses
Introdução
Após o encorajador relato da transfiguração, Mateus encaminha-se para concluir essa seção de seu Evangelho, ainda reforçando o caráter da fé como instrumento para o reconhecimento da identidade messiânica. Porém, de maneira sucinta, o redator descreve através da passagem em questão, a fragilidade da fé dos agentes do Reino, mesmo tendo recebido como reforço, a contemplação do Cristo glorificado.
Essa intenção autoral atinge seu público-alvo de maneira contundente, levando em consideração o contexto de forte opressão e perseguição em que se encontra. Apesar de extraírem forças da profunda certeza de que seriam glorificados pelo poder do Deus Triuno quando do retorno do Messias, a fé que os discípulos têm não é uma força constante e inabalável, mas poderia oscilar ao longo do caminho, sem nunca abandoná-los por completo, pois a salvação não pode ser revertida ou anulada por quaisquer falhas ou pecados humanos.
É precisamente fortuito ao autor demonstrar a fraqueza da fé dos discípulos, mediante o relato de um exorcismo mau sucedido, para que a confiança que seus leitores depositavam em Cristo Jesus e na obra redentiva de estabelecimento do Reino, não fosse corrompida por um otimismo irrealista, ou um triunfalismo ingênuo, ao ponto de acharem que agora, professando a fé no Rei prometido, não enfrentariam dificuldades, quer externas, devido a perseguição, ou internas, por causa da natureza corrompida que os leva a pecar e a falhar.
A fé no Filho de Deus não objetiva suprir os agentes do Reino com uma invulnerabilidade ou blindagem contra questionamentos ou dúvidas existenciais, ou contra decepções e dores oriundas da vivência em um mundo caído. A fé nutre esperança convicta, o que não quer dizer que ao longo da caminhada neste mundo, não se depare com momentos de profunda fraqueza, desestimulo ou até agonias.
O realismo do evangelista consola a fé da igreja, a fim de que perceba que, embora tenham sido instruídos a esperarem pela glorificação do Senhor Jesus, as lutas e oscilações na caminhada fazem parte da carreira messiânica proposta à igreja (como será novamente repetido a nos versículos de 22 à 23), e esse lembrete conforta-os, pois lhes recorda que a imperfeição da nossa natureza não significa ausência de fé.
Assim, a temática central do texto em questão sintetiza o princípio da realidade da fé como consolo para a caminhada cristã.
Elucidação
O presente episódio narra outro milagre de Cristo, em que o tópico da fé é abordado novamente. Desta feita, "um homem", designado no Evangelho de Mateus apenas dessa forma, apresenta seu filho a Cristo, rogando a este que o liberte de uma possessão maligna que o deixa "lunático" (gr. σεληνιάζεται = trad. lit. "preso em si mesmo"), e que nesse estado, era atormentado, sendo ferido até fisicamente.
Segundo o Evangelho de Marcos, essa ocasião ocorreu no momento em que uma grande multidão aguardava Cristo descer do monte, e nesse ínterim, uma discussão iniciou-se entre os escribas e o grupo de discípulos que não acompanharam o Senhor quando subiu a montanha(cf. Mt 17.1). O relato segue igual ao de Mateus e Lucas no que tange a apresentação da identidade do homem e do filho endemoniado, com uma diferença: um diálogo aparece no texto de Marcos, não registrado pelos demais evangelistas, em que a fé do pai do jovem é explicitada:
Perguntou Jesus ao pai do menino: Há quanto tempo isto lhe sucede? Desde a infância, respondeu; e muitas vezes o tem lançado no fogo e na água, para o matar; mas, se tu podes alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos. Ao que lhe respondeu Jesus: Se podes! Tudo é possível ao que crê. E imediatamente o pai do menino exclamou [com lágrimas]: Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé!
A fala do pai do jovem encontrada no Evangelho de Marcos, justifica a inclusão desse relato logo após a visão da transfiguração em Mateus. Levando em consideração que Mateus tenha usado Marcos como fonte primária ou na qual baseou seu próprio texto, a relevância da informação do diálogo parece ter sido encarada como um ponto redundante pelo segundo autor, principalmente pelo fato de ambos os evangelistas observarem a temática da fé, centralizada na narrativa. Quer seja a pequenez da fé do pai do jovem que, embora tenha sido dito que lhe faltava fé no Messias, buscou no Senhor o socorro de que necessitava, quer seja a fragilidade da fé dos discípulos em não ter conseguido expulsar o demônio, ambos os personagens refletem a mesma dificuldade: uma fé débil no Messias.
Tal debilidade é revelada na resposta de Cristo à pergunta dos discípulos:
Então, os discípulos, aproximando-se de Jesus, perguntaram em particular: Por que motivo não pudemos nós expulsá-lo? E ele lhes respondeu: Por causa da pequenez da vossa fé. Pois em verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará. Nada vos será impossível.
Mesmo recebendo do Senhor o encorajamento necessário para seguir a trajetória cristã, o fato apresentado por Mateus, inclusive com o objetivo de encorajar a igreja para a qual escreve, é a natureza humana como ponto debilitante para a fé. Como dito, o calor da perseguição ou a complexidade da caminhada cristã na luta contra o pecado podem, em determinado momento da vida de um cristão, desestimulá-lo ao ponto de ver-se abalado com incertezas, dúvidas e questionamentos. Longe de ser algo anormal ou indicativo de perda total da fé ou da confiança em Cristo como o Messias, Mateus está preocupado em exibir que a ocorrência desse lapso não é algo distante dos crentes. Mesmo os homens mais próximos de Cristo, falharam na tarefa de confiar totalmente no Salvador, e por causa disso não puderam expulsar aquele demônio. E o próprio homem que recorreu ao Senhor para salvar seu filho daquela opressão, retinha em seu coração algum grau de incerteza quanto possibilidade de ver o fim daquele quadro terrível ao qual estava sendo submetido o jovem.
Mesmo diante de um cenário tão desconcertante, as palavra do Salvador são direcionadas pelo redator como fonte de esperança e alívio aos cristãos persguidos: [...] "se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este monte: Passa daqui para acolá, e ele passará. Nada vos será impossível" (Mt 17.20). O contexto em que a expressão "nada vos será impossível" é dito, não deve ser retirado de seu contexto proximal. Cristo não está afirmando que, através da fé, os discípulos podem esperar poder realizar qualquer coisa, e sim, que a fé lhes fará continuar crendo no Senhor, o que inclusive perpassará por demonstrações e testemunhos do evangelho, quer milagres estejam inclusos nesse processo, ou não.
O verso 21 (aparecendo apenas em manuscritos mais recentes), complementa a resposta de Cristo aos discípulos, tal como aparece no evangelho de Marcos:
Quando entrou em casa, os seus discípulos lhe perguntaram em particular: Por que não pudemos nós expulsá-lo? Respondeu-lhes: Esta casta não pode sair senão por meio de oração [e jejum].
Uma leitura descuidada de ambos os textos pode sugerir uma aparente contradição entre as narrativas: Por que esses dois evangelhos, apesar de retratarem o mesmo episódio, apresentam respostas diferentes por parte de Cristo? Mateus teria omitido a explicação quanto a razão para os discípulos não terem expulsado os demônios, ou foi Marcos que não registrou a ênfase do Senhor na fragilidade da fé deles? Se tomarmos como pressuposto a informação (tal como cremos) de que Mateus tenha usado o Evangelho de Marcos como base de seu texto, a questão pode ser explicada através do fato de que Marcos foi sucinto em seu registro, por estar interessado em narrar o milagre em si e a fé do homem em Jesus (apesar da debilidade de sua confiança), enquanto que Mateus expande essa compreensão, por meio da exortação do Messias com relação ao poder da fé.
Isso posto, o encerramento da seção torna a imagem da fé - que embora frágil, permanece presente no coração dos homens - mais vívida, quando novamente o Senhor Jesus repete a predição de sua morte e ressurreição, com um detalhe a mais, se compararmos o que aconteceu quando Cristo anunciou essa informação pela primeira vez:
Reunidos eles na Galileia, disse-lhes Jesus: O Filho do Homem está para ser entregue nas mãos dos homens; e estes o matarão; mas, ao terceiro dia, ressuscitará. Então, os discípulos se entristeceram grandemente.
Embora a expressão emotiva dos discípulos ainda exiba desapontamento diante do anúncio, eles não mais resistem ou se opõem as determinações do Mestre. Antes (cf. 16.22), os discípulos (representados por Pedro), não compreendiam que fazia parte dos planos do Altíssimo que o Messias fosse morto a fim de que o Reino fosse estabelecido. Agora, após a transfiguração e a explicação da fragilidade de sua fé, embora ainda lamentem que esteja se aproximando do momento em que o sacrifício deverá acontecer, não mais se põem contra, ainda que se entristeçam. A fé começa a amadurecer seus corações para compreender mais profundamente o glorioso plano da redenção e da publicação do Reino dos céus.
Transição
A visão do Cristo glorificado como adiantamento da inevitável realidade por vir, certamente encorajou os discípulos ( e a igreja que recebeu esse relato) a permanecerem firmes na fé. Porém, mais do que encorajamento, o texto fornece um entendimento mais aprofundado da dinâmica da fé no coração de um eleito de Deus, pois mesmo tendo confiando e crendo no Messias, todo cristãos verá que os efeitos da queda interferem em sua confiança no Redentor, que ao longo da vida, não é sempre a mesma ou tem o mesmo vigor.
Apesar disso, a certeza que de lapsos na fé não podem tirar do crente sua convicção de salvação, pois a obra redentiva foi posta em Cristo, que jamais falhará em cumpri-la, revigora o ânimo dos filhos de Deus, a fim de seguirem adiante em sua jornada. E essa compreensão nos encaminha para ao princípio exposto pelo autor divino/humano por meio do texto.
Aplicação
Por causa de nossa natureza caída, a fé no Messias pode sofrer oscilações, mas jamais a perderemos, devido a obra redentiva realizada por Cristo, a qual somos chamados a proclamá-la com nosso testemunho.
Embora os discípulos que não foram bem-sucedidos na expulsão do demônio de dentro do menino, não tivessem ido ao cume do monte onde Cristo havia se transfigurado, eles possuíam a mesma fé que Pedro, Tiago e João tinham no messias. Isso quer dizer que o fato de não terem participado daquele evento, não causou a fragilização na fé que sofreram. Entretanto, Mateus une os dois eventos numa sequência narrativa, a fim e expor exatamente esse ponto: a fé no coração dos eleitos, sofre abalos, lapsos que, durante a nossa peregrinação nesse mundo, nos farão ter dúvidas quanto a nossa salvação, quanto a presença providente de Deus em nossas vidas e outras coisas.
Porém, nunca foi prometido que a fé salvífica corrigiria todos os defeitos legados pela queda à nossa natureza. A fé não tem esse propósito. A fé alimenta nosso espírito com a convicção e certeza de que, embora sejamos fracos e pequenos, principalmente por causa desses nossos tropeços, o Rei nos acolheu como seus filhos, e assim como mesmo depois do episódio de fracasso, os discípulos ouviram do Messias que seus planos de publicação do Reino e redenção do seu povo estavam firmes, o Deus Triuno mantém-se intacto em seu desejo de glorificar seu nome através de nossa salvação.
Mesmo falhando miseravelmente em servi-lo como devido mediante uma fé sempre firme, o Senhor não se desiste de levar à cabo a determinação de fazer seu nome grande por meio de nós, míseros vasos de barro, e para isso, o Espírito Santo implanta em nossos corações a fé em Cristo, a fim de que ela, mesmo cambaleante, nos leve ao final da carreira cristã, testemunhando ao mundo das grandezas do Deus Todo-poderoso.
Conclusão
Nossa fé no Senhor Jesus é um fato; cremos nele por meio da iluminação do Espírito mediante o testemunho das Escrituras. Porém, não creremos nele todos os dias com a mesma força e vigor: por causa do pecado, do mundo e de algumas circunstâncias, veremos nossa convicção abalada. Contudo, a força para continuarmos caminhando e crendo não vem de nós, vem daquele que atendeu o pedido do pai do jovem lunático: “Ajuda-me na minha falta de fé!” (Mc 9.24).