Provando do cuidado de Deus

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Comentários do Antigo Testamento: Salmos (Salmo 23)
SALMO 23Salmo de Davi.É bem provável que nenhum salmo seja mais conhecido ou mais universalmente amado do que este. Em virtude da falta de detalhes, torna-se impossível datar este salmo, ou ligá-lo a qualquer evento específico. Sua natureza geral, contudo, nos ajuda a identificar-nos com ele, vendo-o proclamar as profundezas da relação pessoal entre o Senhor e o crente. Ele está repassado de linguagem pactual, e tem muitas afinidades com descrições da experiência do êxodo. Ele usa a metáfora do pastor para falar de Deus como amoravelmente preocupado com suas ovelhas e a riqueza da provisão que ele faz para elas.1. O Divino Pastor (vs. 1–4)A natureza pactual do salmo é enfatizada pelo fato de que a palavra inicial é o título pactual distintivo para Deus. O salmista declara que este Senhor é seu próprio pastor. Ele está adequando uma linguagem para si próprio, a qual se aplicava à nação como um todo (ver Sl 79.13; 95.7; 100.3; Is 40.11; Ez 34). Da mesma forma, os crentes em Cristo podem falar em termos pessoais da obra de Cristo (cf. Gl 2.20b: ele “me amou e se deu por mim”). Justamente como Deus providenciou que aos filhos de Israel nada faltasse após o êxodo, assim também ao crente individualmente nada faltará (cf. Dt 2.7).A função do pastor com respeito ao rebanho como um todo é agora particularizada por seu cuidado pelas ovelhas individualmente (vs. 2,3). Ele conduz às pastagens e às águas, e assim é como se trouxesse nova vida à alma. A primeira parte do versículo 3 define bem mais o que já foi dito no versículo 2. Todas as veredas do Senhor são veredas de justiça, e ele guia ou conduz nessas veredas “por amor de seu nome”. O verbo “levar” faz novo eco do uso do mesmo verbo em referência ao êxodo (15.13), enquanto “por amor de seu nome” é também usado em referência à experiência do êxodo (Sl 106.8).As muitas ravinas na Palestina sugerem a metáfora do versículo 4. Em todas as facetas da vida, inclusive as mais temidas (“o vale da sombra da morte”; ou, alternativamente, “o vale das trevas mais profundas”), a vara e o cajado do pastor dão conforto e segurança. Se Deus está com os crentes, então por que devam temer? (cf. Rm 8.31–39).2. A Provisão Graciosa (vs. 5,6)A cena muda de alimento e água destinados a ovelhas, para banquete farto para humanos. Embora seja possível que o salmista esteja pensando nas refeições especiais em momento de sacrifício, contudo é mais provável que esteja pensando em outros momentos de refeição, ou festas especiais. O pastor dispensa generosamente seu cuidado a seus filhos. Ele unge a cabeça e oferece um cálice de forma tão liberal, que este transborda. O óleo era usado em ocasiões festivas e, juntamente com perfumes, simbolizava a alegria (cf. Sl 133.2). Tudo isso se dá em virtude da relação pactual.O salmista está certo de que as bênçãos da aliança, e o amor inabalável de Deus, o perseguirão até o fim de sua vida. Ele se compromete a regressar constantemente à casa de Deus. O texto hebraico traz “voltarei”, enquanto a versão inglesa [e portuguesa] comumente aceita (“habitarei”, NIV) segue a LXX. Casa de Deus (o tabernáculo ou mais tarde o templo) seria a constante moradia de seu povo. A frase final no texto hebraico é simplesmente “extensão de dias”, que faz paralelos com “todos os dias de minha vida” na primeira parte do versículo. Uma vida longa que experimenta o terno cuidado de Deus envolve o compromisso de estar sempre na casa do Senhor.

Salmo 23

Este Salmo não se acha nem entrelaçado com orações, nem apresenta queixas de misérias com o propósito de se obter alívio. Contém simplesmente uma expressão de gratidão, à luz da qual evidencia-se que foi composta quando Davi granjeou a posse pacífica do reino e vivia em prosperidade e no usufruto de tudo quanto pudesse desejar. Portanto, para que não vivesse, no tempo de sua grande prosperidade, como os homens mundanos, os quais, quando parecem viver afortunadamente, sepultam a Deus no esquecimento, e concupiscentemente se precipitam em seus prazeres, ele se deleita em Deus, o autor de todas as bênçãos de que desfrutava. E não só reconhece que o estado de tranqüilidade no qual ora vive, bem como a isenção de toda e qualquer inconveniência e desventura, era devido à benevolência divina, mas também confia em que através do divina providência ele continuará feliz mesmo no encerramento de sua vida [terrena], e por isso termina dizendo que poderia gastar-se na prática de seu culto perfeito.

Salmo de Davi.

[vv. 1–4]

Jeová é o meu Pastor, não terei falta de nada. Ele me faz deitar-me em pastagens de gramas; ele me guia aos mananciais de águas tranqüilas.3 Restaura minha alma; guia-me pelas veredas da justiça por amor de seu nome. Ainda que eu ande no vale da sombra de morte, não temerei mal algum; porque tu está comigo; tua vara e teu cajado me confortam.

Jeová é o meu Pastor. Embora Deus, por meio de seus benefícios, amavelmente nos atrai a si, como que por meio do sabor de sua doçura paternal, no entanto não há nada em que mais facilmente caímos do que em esquecê-lo, quando desfrutamos de paz e conforto. Sim, a prosperidade não só intoxica a tantos, guiando-os para além de todos os limites de sua jovialidade, mas também engendra insolência, que os faz soberbamente erguer-se e pôr-se contra Deus. Conseqüentemente, dificilmente haja uma centésima parte dos que desfrutam em abundância das coisas excelentes de Deus e que conservam seu temor e vivem no exercício da humildade e temperança, as quais são tão recomendáveis. Por essa razão, devemos notar o mais cuidadosamente possível, o exemplo que é aqui posto diante de nós por Davi, o qual, elevado à dignidade do soberano poder, se cerca com o esplendor de riquezas e honras, de posse da maior abundância de excelentes coisas temporais e em meio a prazeres principescos, não só testifica que era alvo da atenção de Deus, mas, evocando a memória dos benefícios que Deus lhe conferira,5 faz deles degraus pelos quais pudesse subir para mais perto dele. Por esse meio ele não só refreia a depravação de sua carne, mas também se estimula à gratidão com mais intensa solicitude, bem como a outros exercícios da piedade, como transparece da frase conclusiva do Salmo, onde diz: “Habitarei na casa de Jeová por longos dias.” De modo semelhante, no Salmo 18, o qual foi composto num período de sua vida quando era aplaudido de todos os lados, chamando a si de servo de Deus, demonstrava humildade e simplicidade de coração a que atingira, e, ao mesmo tempo, publicamente testificava sua gratidão, aplicando-se à celebração dos louvores divinos.

Sob a similitude de um pastor, ele enaltece o cuidado com que Deus, em sua providência, havia exercido para com ele. Sua linguagem implica que Deus não tinha menor cuidado para com ele do que um pastor tinha para com as ovelhas que lhe são postas à sua responsabilidade. Deus, na Escritura, freqüentemente toma sobre si o nome e assume o caráter de um pastor, e isso de forma alguma é o emblema de um frágil amor para conosco. Visto ser essa uma despretensiosa e familiar forma de expressão, Aquele que se digna descer tão baixo por nossa causa, com certeza nutre uma afeição singularmente forte para conosco. Portanto, não é de admirar que, quando nos convida para si com tal mansidão e familiaridade, não nos deixamos ser atraídos ou fascinados por ele para que descansemos em segurança e paz sob sua guarda. Deve-se, porém, observar que Deus só é pastor em relação àqueles que, tocados com o senso de sua própria fragilidade e pobreza, sente-se dependente de sua proteção, e que espontaneamente habita o seu redil e se deixa governar por ele. Davi, que excedia tanto em poder quanto em riquezas, não obstante confessa francamente não passar de uma pobre ovelha, com o intuito de fazer de Deus o seu pastor. Quem há, pois, entre nós que se eximiria de tal necessidade, visto que nossa própria fragilidade sobejamente revela que seríamos mais que miseráveis caso não vivamos sob a proteção deste pastor? Tenhamos em mente, pois, que nossa felicidade consiste nisto: que sua mão se estende para governar-nos, a fim de que vivamos sob sua sombra, e para que sua providência mantenha-se insone e preserve nosso bem-estar. Portanto, ainda que tenhamos abundância de todas as coisas excelentes e temporais, no entanto asseguremo-nos de que não podemos ser realmente felizes a menos que Deus se digne de incluir-nos no rol de seu rebanho. Além disso, só atribuímos a Deus o ofício de Pastor com a devida e legítima honra, quando formos persuadidos de que sua exclusiva providência é suficiente para suprir todas as nossas necessidades.

Ele me faz deitar em pastagens de grama. Com respeito às palavras, no hebraico temos pastagens, ou campos de grama, em lugar de graminoso e terrenos férteis. Alguns, em vez de traduzir a palavra אנוש (neoth), a qual traduzimos por pastagens, traduzem-na por cabanas ou abrigo de pastor. Se tal tradução for considerada preferível, o significado do salmista será que os apriscos eram preparados em pastagens de terrenos férteis, sob os quais pudesse proteger-se do calor do sol. Se mesmo em países frios o incômodo calor que às vezes ocorre é insuportável ao rebanho de ovelhas, quanto mais suportar o calor do verão na Judéia, uma região calmosa, sem apriscos! O verbo רבף (rabats), deitar, ou repousar, parece fazer referência à mesma coisa. Davi usou a frase as águas tranqüilas para expressar o suave fluir das águas; pois as fortes correntezas se tornam inconvenientes para as ovelhas beberem, e são também quase sempre prejudicial.

Neste versículo, bem como nos versículos seguintes, ele explica a última cláusula do primeiro versículo: não terei falta de nada. Ele relata quão ricamente Deus o provera em todas as suas necessidades, e faz isso sem apartar da comparação que empregara no início. O equivalente do que se acha expresso é: que o Pastor celestial nada omitiu do que pode contribuir para fazê-lo viver vida feliz sob sua proteção. Ele, pois, compara a grande abundância de todas as coisas indispensáveis aos propósitos da presente vida das quais desfrutava, as colinas ricamente forradas de grama e mananciais de águas borbulhando suavemente; ou compara o benefício ou vantagem de tais coisas para os apriscos; pois não teria sido suficiente ter-se nutrido e sentir-se satisfeito em rica pastagem, não fosse também suprido de águas para beber e da sombra do aprisco para refrescá-lo e descansá-lo.

Ele restaura minha alma. Visto ser o dever de um bom pastor nutrir suas ovelhas, e quando adoecem ou se enfraquecem, assisti-las e defendê-las, Davi declara que essa era a forma em que ele era tratado por Deus. A restauração da alma, segundo nossa tradução, ou a conversão da alma, segundo literalmente traduzido, contém a mesma essência que dizer: tornar-se novo, ou restabelecido, como já ficou afirmado no Salmo 19, versículo 7. Por veredas da justiça ele quer dizer veredas acessíveis e planas. Visto que ainda prossegue com sua metáfora, seria fora de propósito entender isso como uma referência à direção do Espírito. Ele afirmara um pouco antes que Deus liberalmente o supre com tudo quando se requer para a manutenção da presente vida, e agora acrescenta que é defendido por ele de toda preocupação. O equivalente do que se diz aqui é o seguinte: Deus em nenhum aspecto deixa carente a seu povo, visto que o sustenta com seu poder, o revigora e o vivifica, e desvia dele tudo quanto é prejudicial, para que ele possa andar por veredas confortáveis em planura e retitude. Entretanto, para que não lhe fosse atribuído nada propriamente digno ou meritório, Davi apresenta a bondade de Deus como sendo a causa de tão grande liberalidade, declarando que Deus lhe havia concedido todas as coisas por amor de seu próprio nome. Certamente, ao escolher-nos para que fôssemos suas ovelhas, e ao executar em nosso favor as funções de um pastor, tal coisa se constitui numa bênção que procede inteiramente de sua livre e soberana benevolência, como veremos no Salmo 65.

Ainda que eu ande. Os verdadeiros crentes, ainda que habitem seguros sob a proteção de Deus, estão, não obstante, expostos a muitos perigos, ou, melhor, são passíveis a todo gênero de aflições que sobrevêm à humanidade em comum, para que eles possam melhor sentir o quanto necessitam da proteção divina. Davi, pois, neste ponto, expressamente declara que, se alguma adversidade lhe sobreviesse, ele se protegeria na providência de Deus. E assim ele não promete a si mesmo buscar apoio nos prazeres contínuos [e terrenos], senão que se fortifica, através do socorro divino, corajosamente a fim de suportar as diversas calamidades que porventura o visitassem. Prosseguindo sua metáfora, ele compara o cuidado que Deus assume ao governar os verdadeiros crentes com a vara e o cajado do pastor, declarando que está satisfeito com isso como sobejamente satisfatório para a proteção de sua vida. Como uma ovelha, quando vagueia e atravessa um vale escuro, é preservada imune dos ataques das feras selvagens e de outras formas de males, tão-somente mediante a presença do pastor, assim Davi ora declara que enquanto estiver exposto a algum perigo, contará com suficiente defesa e proteção, estando sob o cuidado pastoral de Deus.

E assim vemos como, em sua prosperidade, ele nunca esqueceu que era um homem, mas, mesmo assim, oportunamente meditava sobre as adversidades que mais tarde poderiam lhe sobrevir. E com toda certeza, a razão por que nos sentimos tão terrificados quando Deus se agrada em exercitar-nos com a cruz é porque toda pessoa, para que durma profunda e tranqüilamente, se abriga totalmente na segurança carnal. Mas há uma grande diferença entre esse sono do estúpido e o repouso que a fé produz. Visto que Deus prova a fé pela adversidade, segue-se que ninguém realmente confia em Deus, senão aquele que se arma com invencível constância para resistir todos os medos com que seja assaltado. Contudo Davi não quis dizer que estava destituído de todo medo, mas apenas que o superaria para então prosseguir sem medo sempre que seu pastor o guiasse. Isso transparece mais claramente do contexto. Ele diz, em primeiro lugar, não temerei mal algum; mas imediatamente acrescenta a razão disso, ou seja, publicamente reconhece que busca um antídoto contra seu medo ao contemplar e ao ter seus olhos fixos na vara de seu pastor: Porque tua vara e teu cajado me confortam. Que necessidade teria ele tido dessa consolação, não fosse o fato de sentir-se inquieto e agitado pelo medo? Deve-se, pois, ter em mente que, quando Davi refletiu sobre as adversidades que poderiam lhe sobrevir, tornou-se vitorioso sobre o medo e as tentações, e não de outra forma senão lançando-se sob a proteção divina. Isso ele havia também afirmado antes, embora um tanto obscuramente, nestas palavras: Porque tu estás comigo. Isso implica em que se havia afligido com o medo. Não houvera sido esse o caso, com que propósito desejaria ele a presença de Deus? Além disso, não é só contra as calamidades comuns e ordinárias da vida que ele opõe a proteção divina, mas também contra aqueles que distraem e confundem as mentes humanas com as trevas da morte. Pois os gramáticos judaicos acreditam que צלמות (tsalmaveth), que traduzimos por sombra da morte, é uma palavra composta, como se alguém dissesse: sombra mortal. Davi, neste ponto, faz uma alusão aos recessos ou covas escuras de animais selvagens, das quais, se alguém se aproxima, é subitamente dominado, logo na entrada, pela preocupação e pelo medo da morte. Ora, visto que, na pessoa de seu unigênito Filho, tem-se revelado como nosso pastor, muito mais claramente do que o fez nos tempos antigos a nossos pais que viveram sob o regime da lei, não rendemos suficiente honra ao seu protetor cuidado, se não erguermos nossos para mirá-lo e conservá-los fixos nele, pisoteando todos os temores e terrores sob a planta de nossos pés.

[vv. 5–6]

Tu prepararás uma mesa diante de mim na presença de meus perseguidores; tu ungirás minha cabeça com óleo; meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias de minha vida; e habitarei na casa de Jeová por longos dias.

Tu prepararás. Estas palavras, que são postas no tempo futuro, aqui denotam um ato contínuo. Davi, pois, repete agora, sem qualquer figura, o que até aqui declarou, concernente à beneficência divina, sob a similitude de um pastor. Ele nos diz que, pela liberalidade divina, é suprido com tudo quanto lhe é necessário para a manutenção desta vida. Ao dizer: Tu prepararás uma mesa perante mim, ele quer dizer que Deus lhe fornecerá o sustento sem problema ou dificuldade de sua parte, assim como um pai que estende sua mão para dar comida a seu filho. Ele enaltece esse benefício a partir de uma consideração adicional, dizendo que, embora muitas pessoas maliciosas invejem sua felicidade, e desejem sua ruína, sim, lutam por defraudá-lo da bênção divina, não obstante Deus não desiste de demonstrar-se liberal para com ele e de fazer-lhe o bem.

O que adiciona referente ao óleo tem referência ao costume então prevalecente. Sabemos que nos tempos antigos os ungüentos eram usados nas mais magnificentes festas, e ninguém imaginava ter honrosamente recebido seus convivas se não os perfumava imediatamente. Ora, esse exuberante suprimento de óleo, bem como esse transbordar de cálice, devem ser explicados como que denotando a abundância que vai além do mero suprimento das necessidades comuns da vida; pois ela é expressa no enaltecimento da riqueza real com que, segundo os registros da história sacra, Davi havia sido amplamente suprido. Todos os homens, é verdade, não são tratados com a mesma liberalidade com que Davi fora tratado; mas não há sequer um indivíduo que não esteja sob a obrigação para com Deus pelos benefícios que o mesmo lhe tenha conferido, de modo que são constrangidos a reconhecer que ele é um Pai bondoso e liberal para com todo o seu povo. Entrementes, que cada um de nós se incite à gratidão para com Deus por seus benefícios, e quanto mais abundantemente estes nos tenham sido concedidos, maior deve ser nossa gratidão. Se é ingrato aquele que, tendo apenas um pedaço de pão, não reconhece nele a providência paternal de Deus, quanto menos pode ser tolerada a estupidez daqueles que se saturam com grande abundância das coisas excelentes de Deus, que possuem, sem possuir qualquer senso ou experiência de sua benevolência para com eles? Davi, pois, movido por seu próprio exemplo, admoesta os ricos sobre seu dever, para que fossem mais fervorosos na expressão de sua gratidão a Deus, à medida em que os alimente mais fartamente. Além do mais, lembremo-nos que, os que possuem maior abundância do que outros são obrigados a observar a moderação não menos do que se possuíssem as coisas excelentes desta vida na medida que servisse para seu limitado e moderado desfruto. Somos demasiadamente inclinados, pela própria natureza, ao excesso. Portanto, quando Deus é, com respeito às coisas mundanas, generoso para com seu povo, não é para injetar nele nem fomentar-lhes essa doença. Todos os homens devem atentar para a regra de Paulo, a qual está delineada em Filipenses 4.12: “Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda maneira e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura quanto a ter fome; tanto a ter abundância quanto a padecer necessidade.” Para que a carência não nos precipite no desespero, carecemos ser sustentados por paciente persistência. E, em contrapartida, para que tão imensa abundância não nos ensoberbeça além da medida, carecemos ser refreados pelo freio da temperança. Conseqüentemente, o Senhor, ao enriquecer a seu próprio povo, ao mesmo tempo refreia os licenciosos desejos da carne pelo espírito de continência, de modo que, de seu próprio arbítrio, prescrevem para si mesmos normas de temperança. Não que seja ilícito aos homens ricos desfrutarem mais livremente da abundância que possuem do que se Deus lhes houvera dado uma porção menor; todos os homens, porém, devem precaver-se (e muito mais os reis) para que se envolvam em prazeres voluptuosos. Davi, não há dúvida, como era perfeitamente lícito, permitiu a si mesmo maior amplitude do que se fosse apenas um dentre a plebe, ou do que se habitasse ainda na choupana de seu pai, porém se precavia em meio à sua opulência, como se definitivamente se deleitasse em empanturrar e em cevar seu corpo. Ele sabia muito bem como distinguir entre a mesa que Deus preparara para ele e o cocho dos suínos. É também digno de nota especial que, embora Davi vivesse de suas próprias terras, do dinheiro dos tributos e de outras rendas do reino, ele dava graças a Deus justamente como se Deus lhe servisse a refeição diária com sua própria mão. Desse fato concluímos que ele não se deixava cegar pelas riquezas, mas sempre olhasse para Deus como anfitrião que retirava comida e água de seu próprio estoque e lhos distribuía no tempo próprio.

Certamente que a bondade e a misericórdia. Havendo relatado as bênçãos que Deus derramara sobre ele, agora expressa sua convicta persuasão da continuação delas até ao fim de sua vida. Mas, donde procedia tal confiança, pela qual se assegura de que a beneficência e misericórdia de Deus o acompanhariam para sempre, se não procedia da promessa pela qual Deus costumava sazonar as bênçãos que derramava sobre os verdadeiros crentes, para que não devorassem inconsideradamente sem sentir por elas qualquer sabor ou apetite? Ao dizer a si mesmo que mesmo em meio às trevas da morte, manteria seus olhos postos na providência divina, testificava sobejamente que não dependia das coisas exteriores, nem media a graça de Deus segundo o juízo da carne, senão que, ainda quando a assistência de todos os quadrantes da terra lhe falhasse, sua fé continuaria encarcerada na palavra de Deus. Portanto, embora a experiência o guiasse a esperar o bem, todavia esse bem estava principalmente na promessa pela qual Deus confirma seu povo com respeito ao futuro do qual dependia. Se se objeta ser presunção alguém prometer a si mesmo uma contínua trajetória de prosperidade neste mundo de incertezas e mudanças, respondo que Davi não falava desta forma com o propósito de impor a Deus uma lei; senão que esperava pelo exercício da beneficência divina para com ele segundo a condição deste mundo permitir, com o que ele estaria contente. Ele não diz: Meu cálice estará sempre cheio, ou: Minha cabeça será sempre perfumada com óleo; mas, em termos gerais, ele nutre a esperança de que, visto que a bondade divina jamais falha, Deus seria favorável para com ele até ao fim.

Habitarei na casa de Jeová. Com esta frase conclusiva ele manifestamente mostra que não delimitava seus pensamentos aos prazeres e confortos terrenos; senão que o alvo no qual ele mira está fixo no céu, e alcançá-lo era seu grande objetivo em todas as coisas. É como se quisesse dizer: Não vivo com o mero propósito de viver, mas para exercitar-me no temor e no serviço de Deus, e progredir diariamente em todos os aspectos de genuína piedade. Ele traça uma manifesta distinção entre si mesmo e os homens ímpios, os quais se deleitam tão-somente em encher seus ventres com luxuosas comidas. E não só isso, mas também notifica que viver para Deus é, em seu conceito, de tão grande importância, que avaliava todos os confortos de sua carne só na proporção em que serviam para capacitá-lo a viver para Deus. Francamente afirma que a razão por que ele contemplava todos os benefícios que Deus lhe conferira era para que pudesse habitar na casa do Senhor. Donde se segue que, quando se privava do desfruto dessa bênção, ele não levava em conta as demais coisas; como se dissesse: Não terei nenhum prazer nos confortos terrenos, a menos que ao mesmo tempo eu pertença ao rebanho de Deus, como igualmente escreve em outro lugar: “Bem-aventurado o povo ao qual assim sucede; bem-aventura o povo cujo Deus é o Senhor” [Sl 144.15]. Por que ele deseja tão intensamente freqüentar o templo, senão para oferecer sacrifícios juntamente com seus irmãos adoradores, e cultivar, por meio de outros exercícios da religião, a meditação sobre a vida celestial? Portanto, é indubitável que a mente de Davi, pelo auxílio da prosperidade temporal de que desfrutava, se elevava à esperança da herança eterna. Desse fato concluímos que, brutos são aqueles que se propõem qualquer felicidade além daquela que emana da intimidade com Deus.

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